O1

Atualmente...

Guardo as chaves na bolsa depois de verificar a tranca da porta duas vezes. Fechar a floricultura nas sextas-feiras é meu trabalho e verificar que continue fechada até o sábado de manhã para que ninguém entre “por acidente” e roube algumas flores ou notas do caixa faz parte das minhas obrigações. Dáhlia – a doce e gentil senhora, dona da loja – acena para mim da janela acima e sorri em forma de adeus, a mão enrugada de veias saltadas sacode as pulseiras no pulso direito. A aliança do falecido marido ainda no dedo. Ela vive em um apartamento sobre a floricultura e tira os fins de semana para descansar e jogar bingo com outras senhoras amigas, algum tipo de retiro sabático aos fins de semana e por isso, eu trabalho no dia seguinte por meio período.

É quando os turistas apaixonados chegam em Nova Orleans e compram flores para suas amadas. Ela vive dizendo.

Não que eu me importe em fazer buquês aos sábados, na verdade, amo estar cercada por flores e seus aromas afrodisíacos, doces, amadeirados e cítricos. Além, dos incensos que Dáhlia me deixa acender nos dias em que sinto as energias pesadas pairando sobre nós. Aroma terapia salva minhas tardes, às vezes. Nem todas as pessoas carregam boas intenções, mesmo na cidade do Jazz, onde a música toma conta das ruas trazendo alegria e esperança para os moradores e visitantes.

As ruas estreitas feitas de paralelepípedos, as luzes amarelas e reconfortantes e a arquitetura característica local torna qualquer noite apaixonante e calorosa, perfeita para caminhadas no fim do dia. As casas obviamente carregam a herança crioula com o charme francês, apesar de apenas uma parte da cidade falar a língua por aqui.

Desvio de algumas pessoas pela calçada e espero o carro passar para cruzar até o outro lado. A floricultura fica no centro e por algum motivo, meus pés me guiam para a praça virando a esquina a uma quadra dali. Pude sentir o cheiro das árvores, do canal e o frescor do vento espalhando água da fonte central, fazendo com que um casal sentado em um banco por perto deixe o mesmo por terem se molhado.

Como eu amo isso. Nova Orleans me escolheu como se fosse minha casa e me deixou ficar à vontade para me aprofundar na cultura humana local o quanto quisesse. Levei pouco mais de três semanas para me acostumar com as roupas, a língua e tudo o que os mortais precisavam para sobreviver. Sinto falta do reino das fadas, mas estou feliz aqui, feliz e sem as leis cruéis da rainha que meu povo reverencia.

O tempo passa voando quando se tem ocupações e preocupações na vida e sou grata por ter recebido ajuda de pessoas boas desde que fui julgada. Levo a mão ao colar em meu pescoço e o rosto de Duvessa aparece em minha mente. Nunca mais a vi e sinto falta dela, das nossas danças de primavera e das fogueiras nos rituais de inverno. Também sinto falta dos meus pais e pensar neles reabre as mínimas partes da ferida que demorou a cicatrizar.

Pisco voltando a realidade e ignorando a dor em meu peito e o bolo no estômago quando duas crianças passam por mim correndo atrás de um cachorro de pelos amarelos e língua de fora. A risada delas estanca a tristeza que sinto ao me lembrar do que causei e do porquê estou aqui. Se estou bem, segura e feliz na cidade do Jazz, porque essa culpa ainda me corrói?

O cheiro das velas aromáticas se mistura com café e massa frita ao atravessar a praça. Várias mesas se espalham com cartomantes lendo suas bolas de cristais e enganando os clientes, em sua maioria turistas, com as cartas de tarô. Nem todas são farsantes. Contudo, é raro encontrar uma bruxa de verdade depois que elas foram caçadas e queimadas no século dezesseis por extremistas religiosos, mas elas existem e estão por aí em algum lugar, camufladas e seguras dos homens ambiciosos e amedrontados.

Os mortais sempre tiveram medo do desconhecido, pois, não podem controla-lo. Eles queimam e destroem o que sua escassa inteligência não explica. Meu pai costumava dizer todas as vezes em que eu expressava a minha curiosidade em relação aos humanos. Nunca consegui evitar ou entender por que eles me fascinam tanto assim. Se eles queimaram as bruxas, o que acha que fariam se descobrissem as fadas? Duvessa acrescentava em seguida.

Eles descobriram. Eu as revelei e centenas delas morreram.

— Isso é ridículo! Sua farsante!

O tom acusador vem da minha esquerda, de uma das mesas. Franzo a testa tentando compreender o que está acontecendo naquela mesinha redonda coberta por toalhas laranjas e roxas. Um homem – vinte e poucos anos, talvez? – está em pé gesticulando para a cartomante de ombros retraídos. Mais um pouco e ele se jogaria sobre ela, dando as pessoas ao redor um espetáculo de machismos e ceticismo cheio de força patriarcal. Aprendi muitas coisas desde o meu banimento e nunca aceitar ódio gratuito foi uma delas, principalmente de garotos como ele.

— É contraditório perguntar se não deseja lidar com as respostas. – Aproximo-me em passos lentos e cruzo os braços sobre o peito. A bolsa pendurada em meu antebraço balança levemente e apoio meu peso nos saltos altos para segurar o olhar incomodado do homem imbecil.

— Por acaso pedi a sua opinião? – Arrogante. Subo e desço os olhos pelo corpo dele notando alguns detalhes que confirmam a minha teoria. A camisa com os primeiros botões desabotoados contém uma mancha de batom e o blazer preto está amaçado junto as calças sociais com gotas de bebidas, pelo cheiro uísque. Jovem, rico e idiota. Típico estereótipo de um mortal que pensa ser esperto e merecedor das regalias somente por ter dinheiro. — Deve ser uma delas, certo? Um pouco mais – É a vez dele me analisar, cheio de perversão e pensamentos impróprios. — Arrogante e bonita.

Deixo escapar um sorriso indignado com certa carga de deboche e olho para a cartomante, fixa e tensa ao meu lado antes de me voltar para o homem.

— Pessoas como você podem comprar joias e prédios, até mesmo votos para conseguir a presidência da empresa do papai, mas não podem comprar a sorte ou o destino.

— Ela disse que vou morrer em alguns dias! Não a paguei para a ver desgraças em meu futuro! – Ele berra querendo que eu faça o mesmo e me rebaixe a altura daquela birra de criança mimada.

— Como eu disse, ninguém pode comprar o destino para ouvir o que querem. A não ser que queria ouvir mentiras. – Eu explico caso ele tenha entendido errado na primeira vez. — Se não consegue arcar com as consequências da sua curiosidade, então, sugiro que saia daqui. Céticos não são bem-vindos!

Ele entreabre os lábios, provavelmente para retrucar a minha fala, mas desiste ao perceber que aquela conversa já acabou. Por fim, se vira e vai embora, se embrenhando na multidão com passos pesados e irritados.

— Obrigada. – A voz da cartomante soa aliviada. — Sempre que me acontece isso, não sei como lidar. Eu geralmente não respondo quando me perguntam sobre a morte, mas ele insistiu.

Sorrio para a mulher a minha frente. Aparentávamos ter a mesma idade, tirando o fato que eu parei de contar depois dos meus quatrocentos anos. Cogitei começar a contar depois que cheguei ao mundo humano, mas acho que seria estranho dizer por aí que eu faço seis anos na semana que vem. Então, para todo e qualquer curioso, faço vinte em alguns dias. Uma idade apropriada para a aparência jovem que me possibilita fazer coisas que seriam no mínimo estranho para alguém com séculos de idade.

— Eu respeito os céticos, mas não os tolos. – Digo ainda sorrindo para ela. Sua saia longa na cor coral balança com a brisa fresca e seus anéis nos dedos me chama a atenção, coloridos e de formas e pedras diferentes.

— E há diferença entre eles? – A cartomante brinca, segurando o que seria uma risada, contendo-a em um sorriso de gratidão.

— Poderia ler as cartas para mim? – Pergunto já me sentando na cadeira que o homem ocupou há pouco. Ela olha de cima, surpresa com meus atos.

— Isso depende. Está disposta a aceitar as consequências da sua curiosidade? – Apoio a bolsa na beirada da mesa, decidida a permanecer ali. Ela deixa cair os braços ao lado do corpo escultural e moreno. — Então, tudo bem!

A cartomante se senta à minha frente abrindo espaço para cortar as cartas de tarô. As chamas das velas titubeiam e o incenso queima um pouco mais, com se uma força invisível os tivesse assoprado. Existem farsantes, de fato. Contudo, ela passa longe de ser uma. Os dedos ágeis hipnotizam os olhos, obrigando que os que a consultam mantenham o olhar nas cartas, mas, não os meus. Noto pequenas e suaves cicatrizes ao redor dos pulsos dela. Algo como símbolos entalhados na pele, singelos, quase imperceptíveis para aqueles com mentes avoadas.

Definitivamente, não uma cartomante qualquer. Uma legítima bruxa.

— Pegue uma carta, por favor. – A cartomante ordena e o faço, puxando uma das cartas do meio do baralho vermelho e a entrego. Ela distribui o restante na mesa em duas fileiras de três, deixando as outras de lado e passa as mãos sobre as seis cartas, fechando os olhos e murmurando palavras que pensei serem latim. Bruxas, tão previsíveis. — Diga-me, o que deseja saber?

Paro por um momento com a pergunta do milênio. As pessoas sempre querem saber sobre o futuro, se ficarão milionárias, se encontrarão o amor da sua vida, ou se vão viver até os noventa e tantos anos. Perguntas tão fúteis e egoístas que ela está esperando que eu as faça igual aos outros clientes.

— Todos que vem até você desejam ter o conhecimento sobre o destino e não percebem que ele é consequência das próprias ações. – Arrumo a postura ao sorri dos lábios cor de vinho dela e da expressão confusa. — Elas querem dinheiro e sequer se esforçam para isso, querem alguém que as ame quando nem amam a si mesmas, querem viver por muitos anos e se entopem do que consideram ser comida, sem falar no álcool e entorpecentes.

— O meu último cliente tinha razão, acredito? – A sobrancelha esquerda dela se arqueia solitária. — Sabe ler as cartas, não sabe? – A cartomante apoia os cotovelos sobre a mesa e junta as mãos abaixo do queijo. Ela repara no colar entre minhas clavículas.

— Algo parecido eu diria. – Respondo e indico o baralho na mesa. — Conheço meu passado, tenho palpites sobre meu futuro e acredite, ele não será diferente do que meu presente é agora. Chame de intuição se quiser.

— Se está tão certa sobre seu futuro, então porque me pediu para lê-las? – Suas unhas compridas gesticulam para as cartas e suas costas relaxam no encosto da cadeira de metal envelhecido e estofado de couro craquelado.

A cartomante corre os olhos por mim, lendo-me como um livro aberto, enxergando a verdade estampada na minha cara. Uma verdade que me recuso a aceitar e engolir, por que é amarga demais. Penso que sei sobre meu futuro e me agarro a isso, a essa pseudoverdade que criei para acalmar o monstro feroz e faminto da culpa pelo passado. Porém, não passa disso: uma pseudoverdade. E a possibilidade de que se torne uma mentira completa que me cega, apenas porque tenho medo de encarar a realidade do mal que fiz a tantas pessoas – a pessoas que amava – me assusta. O medo crescente alimentando o monstro se revirando no estômago, acelerando o coração e martelando na mente.

E se. E se continuar como imagino? E se for diferente do que espero que seja? E se for... Bom? E se? Essa incerteza me destrói, me consome.

Ela parece notar o debate inteiror e sorri gentil e minimamente.

— Posso parar se desejar?

— Continue. – Peço e pisco para o rosto dela. Os traços fortemente marcados por séculos da herança escrava que carrega em seu sangue, olhos negros e profundos, a pele jovem e brilhante ressaltando as bochechas rosadas e os lábios pintados. O cabelo cai em longas tranças castanhas pelos ombros magros. A cartomante suspira e vira a primeira carta.

Um homem e duas mulheres unidos amorosamente com um cupido apontando uma flecha acima das cabeças deles, em frente a um sol amarelo. A carta parece velha o bastante para ter mais de séculos de idade e a tinta está desbotada, até o brilho do sol se tornou fosco. Traços belos, porém, irregulares me dizem que todas elas foram pintadas por mãos habilidosas e delicadas. Mãos de feiticeira. Os enamorados.

— Vejo dúvidas em relação a si mesma, tanta dúvida e medo que outras pessoas paguem pelo que você fez no passado que teme tomar decisões no presente. – Ela engole as próprias palavras como se estivesse arrependida de ter começado aquela leitura. Então, vira mais duas do baralho. A sacerdotisa, uma mulher de mantos verdes e véus rosa surge entre dois pilares com um pergaminho nas mãos. E a lua, grande e cheia entre nuvens vigiando torres sobre terras e rios. — Teme as decisões, mas terá de decidir em algum momento e eu teria cuidado com ilusões e mentiras, talvez traição. Tem namorado? Amigos que possam te fazer mal?

— Não. – Respondo prontamente agarrando meus próprios dedos repousados no colo, puxando-os até as articulações doerem e partindo para o próximo e o outro. Eles tremem e as palmas suam.

Não vejo por que alguém queira me fazer mal nessa cidade. Estou aqui faz pouco tempo e posso contar nos dedos as pessoas que conheço. Um deles morreu há dois anos. A outra é doce e gentil demais para cogitar gritar comigo ou, na pior das hipóteses, bater em mim. Na melhor, Dáhlia me repreende às vezes, mais como uma mãe ou avó do que qualquer outra coisa e sempre é por alguma flor que esqueci de regar ou porque não encomendei mais ursinhos de pelúcia, papéis de embrulho e laços de fita.

— É difícil para você expressar o que sente e arcar com os sentimentos e isso a torna confusa e manipulável. Tudo bem ser assim, a maioria de nós não tem uma relação boa com nosso íntimo e preferimos ignorá-lo. – A cartomante desencosta da cadeira e apoia um dos cotovelos na ponta da mesa, mantendo a mão ao lado do maxilar arredondado. Seus olhos amendoados correm pelas cartas viradas, vidrados. — Eu não ignoraria.

Ela completa e me encara de novo com atenção, enquanto vira as últimas três cartas dispostas na toalha esvoaçando com a brisa. Alguns fios azuis ficam presos nos meus cílios e os coloco atrás da orelha, depois volto a torturar meus dedos suados, gelados e trêmulos. Estou nervosa. Por que estou nervosa? Pelas quatro luas, Amara! Acalme-se!

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