Capt.4 :

Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel.

Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço.

Como será a minha noiva? Dizem que as galo e as luso-romanas são boas a organizar a casa, ao contrário das suevas, são piores que os homens, excepto nos trabalhos agrícolas. As mulheres suevas foram feitas para andar atrás dos homens a combater e a caçar, umas verdadeiras amazonas, agora, com a sedentarização à vista, os hábitos forçosamente terão que se alterar.

Estou triste e carrancudo. Odoacro, vendo meu estado melancólico, pega na harpa dedilhando uma suave melodia. Ele já foi iniciado dos bardos, da época que todos tínhamos sonhos! Ó bastarzinho! Canta com a sua melodiosa voz a epopeia dos burgundos que pereceram sob Átila rei dos huns:

Triste Sirmium, cercada estás

Gunterico, volker e seus sequazes

Miram tristes por detrás das barricadas

Os godos, hunos e saxões

Rodeando o acampamento

O harpista continua dedilhando as cordas melodiosas, entoando a traição de Brunilda e o incêndio do castellum dos burgundos. Casar?! Meter uma desconhecida por mim adentro, ainda por cima não tenho casa, tenho esta choça com que me deito com a guarnição. Olho a velha e poeirenta torre, onde nas traves uma galinha dorme. Isto não é sítio para receber uma dona. Emborco mais hidromel. Como estaria eu nos montes gerião agora? Se meu pai não tivesse morrido e meus tios me tivessem dado a terra que é minha? UM SENHOR? Mas aqui sou um senhor, um senhor de merda, mas um senhor e só respondo perante o rei, tais como todos os alcaides espalhados em Ibéria.

Estava todo enregelado sentindo os fémures e as tíbias a doerem-me, estou nu e com as águas gélidas do tuda abaixo um bocadito dos tomates. Odoacro e Frumário tem o gozo estampado na cara. Eles não são cristãos, ou se algum dia forem, creio que se converterão no pico do Verão para não terem que tomar banho no pico do Inverno. Estou abraçado a mim mesmo como maneira de tentar reter algum calor, enquanto Cassiano, coadjuvado pelo jovem eremita, tenta ganhar coragem para entrar com seus ricos pés no Inferno gelado do vagaroso rio. Por fim, lá toma coragem e chapinha na água até onde eu estou, sua cara roboriza, o sangue é obrigado a correr dum lado para o outro do seu esquelético corpo, o jovem eremita atira-lhe uma garrafinha de vidro contendo um óleo santo, sinto o padre a tremer, enquanto retira a pequena rolhinda e unta a ponta do dedo indicador:

- O poder de Cristo Salvador vos defenda. Em sinal desse poder eu vos faço esta unção em nome do mesmo Cristo nosso senhor que vive e reina por todos os séculos.

Unta-me fazendo uma cruz na minha testa. Os lobos uivaram, Odoacro e Frumário ficaram apreensivos, os lobos são sinais de Woden, o velho pai. A cruz untada recebe vento frio, provocando-me uma sensação esquisita de remorso, os montes escuros estão recortados sobre um pálido luar, a sensação de remorso acentua-se, pensei que fosse mais fácil, as lágrimas querem aflorar em meu duro rosto. Cassiano diz-me para ajoelhar, respiro fundo, ajoelho-me, meus colhões são alagados de água fria:

- Ahhhhhh!

- Que se passa?

- Nada senhor padre, espere um bocadito. – minhas bolas encolhem e parece que rebentam, raios! acho que assim não vou poder receber condignamente a minha noiva cristã no leito. Cassiano continuou:

- Crês em Deus Pai Todo-poderoso Criador do Céu e da Terra? – penso em Woden, com a sua lança e seus dois corvos percorrendo o  mundo e honestamente respondo:

- Creio.

- Crês em Jesus Cristo, seu único filho, nosso senhor, que nasceu da Virgem Maria, padeceu e foi sepultado, ressuscitou dos mortos e está à direita do Pai?

- Sim, creio. – miro Odoacro a encolher-me os ombros.

- Crês no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna?

- Sim, creio. – pisco o olho a Frumário, eu acreditava na vida eterna e na festa com as valquírias e nos banquetes de caça no palácio de estacas do velho pai. Cassiano guarda o santo óleo na bolsa. Aproxima-se de mim e pondo as mãos na nuca e na minha testa dizendo:

- Eu te baptizo em nome do Pai… - faz a primeira imersão….do Filho… - Faz a segunda imersão. - … e do Espirito Santo. - faz a terceira imersão.

- Agora sois Luz em Cristo. Caminhai sempre como filhos da Luz. Permanecei firmes na fé, para que, quando o senhor vier, estejais prontos a ir ao seu encontro com todos os santos no Reino do Céu.

- Já posso sair daqui padre? Nem sinto o meu nariz.

            De regresso a Saturnring fizemos um banquete em honra à minha conversão e às minhas expensas, servimos queijo, pão de centeio, borrego e carne de pato nas brasas, juntamente com uma sopa de pedra que Hermelinda fez e que estava divinal. Frumário produziu bom hidromel e cerveja amarga, que nos conseguia pôr de rastos.

Cassiano discute com o eremita de nome Teófilo, que hoje interrompeu a sua solidão imposta em nome do criador. “solidão imposta pelo criador”, hoje retenho muito os pensamentos, tou com a testa quente, deve ter sido a acção do frio na mona. Já aqueci os pés e o vinho tolda-me o raciocínio. “ solidão imposta pelo criador”, que bonito! Cassiano discute a Santíssima trindade com Teófilo, batendo duro com o punho na mesa e salpicando-me vinho da terra quente.

- Desde Niceia que Anastasio defende uma natureza, três pessoas. - ergue três dedos da mão.

- Diabo dos arianos, dizem que o filho foi criado no tempo, logo tem principio e não é eterno nem igual ao pai. Pró inferno todos com eles! – grita exaltado Cassiano toldado pelo vinho da sacristia. Téofilo põe-se a reflectir na co-eternidade de Cristo com o Pai, trincando uma asa de pato salteada com alho e orégãos, e pela cara de satisfeito dele a co-eternidade devia estar a saber bem. Pusemos a escrava a ajudar Hermelinda com a ameaça de que, se não ajudasse a púnhamos a ferros lá fora, no frio das muralhas. Nunca a vi tão diligentemente a servirmos e a cortar as carnes dos espetos para os pratos de estanho, a avõ de Hermelinda está sentada num banquinho e parece mais viçosa, é! Sou um grande runamal. Levanto-me, cristão converso, ordenando:

- Camalo, toca-me essa gaita de foles, dancemos pois! - O pastor ainda tem de encher o fole, mas desiste e é Brigo que o substitui pegando na gaita longa celta de fole de carneiro negro e enchendo-a de ar. Do seu tubo de sobreiro saíam notas cutilantes duma beligerante melodia arcaica conhecida pela dança-das-espadas. Ébrio e de tronco nu, dou um ágil salto de gato, pondo-me em cima da mesa e dançando intrincados passos antes da eterna batalha. Todos marcavam o ritmo aplaudindo e cantando

Cantemos pois companheiros, todos archeiros entre fundeiros

Entre as falanges que romperemos

Entre o ouro que sacaremos

Vitoriosos sairemos

Entoando a canção da vitória

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