Capítulo 2

                                                            

                                                            Meu mundinho

O domingo amanheceu de um jeito diferente... Era o primeiro dia em que eu acordara sob os cuidados de outra pessoa, que não fosse a minha mãe, é claro. Agora pertencia a ela e aquele sentimento me deixava muito feliz.

Antes que eu pudesse chegar ao banheiro, meu celular tocou. Levei um pequeno susto, mas sabia quem podia estar ligando naquele momento.

— Bom dia! Tudo bem com o senhor?

Beth, do outro lado da linha, disse palavras que eu precisava ouvir para começar bem o dia.

— O dia começou muito bom! – respondi.

Ela deu risada e, com aquela voz doce que poderia me acalmar em qualquer situação, continuou:

— Ainda bem que seu dia começou assim, pois o meu também. Infelizmente, não sei se eu te disse ontem, mas terei que pajear meus tios que chegam logo.

Elizabeth não havia falado nada ou talvez tivesse esquecido. Senti uma ponta de arrependimento em sua voz. Claro, ela não queria estar lá e sim comigo, contudo, não escondi minha decepção ao responder. Ela sabia como eu me sentia naquele momento.

— Tudo bem minha linda! Não vou sumir não. Ficarei em casa para arrumar umas coisas e fazer meu Fusca funcionar de vez. Logo vamos passear com ele.

Nesse momento, me lembrei de que havia uma loja de autopeças em São Vicente, que abria também aos domingos. Pronto! Poderia finalmente colocá-lo para andar. Aquilo me animou, mas também a ela, que respondeu:

— Sim, será ótimo! Como eu disse ontem, você é meu guia por este mundo. Me leve até onde nós possamos ir. Eu, você e ele (o Fusca), formaremos um trio inseparável.

— É claro meu doce. Passaremos momentos maravilhosos a bordo do meu “bólido”.

Notei a risada dela e completei:

— Mas, você terá de me ajudar com ele, viu?

 Rimos. Ela sabia bem que o Fusca era um carro antigo, fadado sempre a problemas. Seu pai possuía um Chevrolet Opala 1973, dissera ela.

— Vou deixar você agora, pois parece que eles chegaram.

Ela falava de William, outro dos “britânicos”, mas não consegui responder. Elizabeth me animou:

— Não se preocupe. Eles não devem ficar até muito tarde. Aí, quando forem embora, eu ligo para você e saímos ainda hoje. Quero muito estar com você!

— Sim meu amor, vamos sair com certeza. Se ele não pegar, vamos do jeito que nos encontramos.

— Então tá. Um milhão de beijos! Muitos beijos! Até daqui a pouco!

— Para você, uma infinidade de beijos minha linda! Até...

Ela riu e desligou. Bom, agora eu tinha uma missão: limpar a casa, tarefa fácil, pois, eu sempre fora organizado. Além disso, precisava ainda ir até a loja e comprar a peça do Fusca.

Assim o fiz e, nesse meio tempo, minha mãe ligou. Falamos brevemente, mas eu não tinha intenção de subir o morro, não naquele dia. Enquanto ainda dava uma “geral” rápida em casa, ouvi uma música vinda da casa da frente.

Estranhei o estilo. Romântica? Só podia ser a dona Letícia, uma “senhora” de 45 anos. Morena, ela era bonita, mais até que a filha, Amanda. Seus olhos castanhos claros devem ter afetado demais seu Moacir há alguns anos... Achei graça nesse pensamento meu, mas, obviamente eu poderia estar certo disso.

Contudo, o som não vinha da cozinha, onde geralmente ela ficava e nem da sala. Pelo tempo que eu morava ali, sabia exatamente de onde saíam os sons, mas este vinha do quarto de Amanda.

Guilherme Arantes? Pensei: “Nossa... Ela só ouve aqueles sons pop atuais e nada muito além”. Devia estar inspirada, ponderei. Não liguei mais para isso. Nem deveria. Nunca gostei dela, pois, sempre me parecera antipática.

Naquela altura do campeonato, meu time estava jogando outra partida e essa eu não poderia perder. Ah! Se eu conhecesse os juízes desse torneio que estava ao meu favor...

Fui até a loja em São Vicente. Grande, ela tinha exatamente o que eu procurava: o tal regulador de voltagem.

                                                           “Comparativo”

Ao chegar, meu Fusca – todo empoeirado – me esperava silencioso, porém, se tivesse vida, estaria animado. Abri a tampa traseira e procedi como sabia.

Com as ferramentas que deixara no próprio (e diminuto) cofre do motor, eu comecei o serviço. Mexendo no Fusca 1500 1975 “azul calcinha”, nem notei uma presença próxima de mim.

Em pé, junto ao portão da casa da frente, Amanda observava o que eu fazia. Encarei-a e notei que seu rosto estampava curiosidade. Com um shortinho jeans bem minúsculo, ela deixara à mostra suas pernas bem torneadas e atraentes.

Minha análise visual de Amanda me afetou exatamente 0%. Não, talvez uns 10%... Naquele momento, eu era o cara mais fiel do mundo! Sim, merecia uma medalha de honra da Associação de Esposas, se esta existisse, é claro.

Ela rapidamente veio em minha direção e, com aquele ar de deboche que lhe era próprio, perguntou:

— Regi, agora esse Fusca anda, não é mesmo?

Com aquele olhar de decepção com o ser humano, devolvi:

— Com certeza! Já até acabei.

Levantei e disse:

— Agora é só ligar e ele estará “zerado” de novo.

Olhei para ela com aquele ar de segurança, não só pelo Fusca que ia funcionar, mas também por ser um “novo” Regi. Sorri levemente, enquanto ela me fitava com ar de quem torce pelo contrário. Dei partida e o motor boxer refrigerado a ar pegou sem delongas, cuspindo uma breve fumaça branca.

Corri até o motor e mantive a rotação alta, acelerando pelo cabo preso ao carburador. Então, ajustei a alimentação como aprendi com o Fusca do meu pai, um 1300 1970.

Amanda, de braços cruzados, parecia séria. Mas, ao perceber que eu olhava direto em seus olhos castanhos claros, como os de sua mãe, ela sorriu levemente.

— Finalmente Regi... Parece que agora ele vai – disse, mexendo rapidamente em seus cabelos castanhos escuros.

Com um rosto levemente arredondado, Amanda tinha um nariz de tamanho médio e uma boca pequena. Não era feia, nem de longe, porém, Elizabeth era mais bonita, mesmo com seu nariz um pouco mais arrebitado que o da minha vizinha.

Ali, diante de Amanda, comecei a fazer um comparativo, infeliz, diga-se de passagem. Não entrarei em mais detalhes, mas, naquele momento, minha Elizabeth levava larga vantagem. Nem era por ser loira de olhos verdes, contudo, eu não estava vendo o todo...

Entendo que o mundo dita regras, mas quando o assunto é mulher, eu não tenho preferências tão específicas. Claro, se for feia não dá muito entusiasmo, mas enfim... Desligando o carro, notei que Amanda olhava para a rua com olhar perdido.

Devolveu-me a atenção e voltou ao portão, adentrando rapidamente. Pensei comigo: Como ela teve a “manha” de vir até aqui para me encher o saco?  Deixei para lá e levei o carro para uma limpeza.

Não demorou e Elizabeth ligou. Queria saber se eu já havia almoçado e arrumado o Fusca. Respondi que ainda não comera nada, mas daria um jeito. No caso do VW, estava de banho tomado e pronto para ela.

— Tadinho de você... – disse Elizabeth sentindo pena.

Pensei: “eu a deixaria cuidar de mim para sempre!” Durante a semana, nem sempre eu almoçava. Fazia lanche e estava feito... Não sabia eu, mas meus hábitos alimentares mudariam dali em diante.

— Que bom que seu Fusca está pronto. Quero andar logo mais, viu?

Beth, com ar mais animado, me revelou que o almoço saíra pontualmente meio-dia. Regras da casa, disse ela. Pensei: “meu Deus, me salve da pontualidade britânica!”.

— Meu amor, eu vou ter que desligar. Mas, quando eles partirem, eu retorno e você vem!

Concordei. Ficaria esperando ansiosamente e após os beijos protocolares, o botão de on/off do aparelho parecia ser a ponta de uma agulha. Era difícil dizer tchau, mas era preciso. Voltei para casa, porém, parei num barzinho que servia refeição.

Sem a “patrulha” de Amanda por perto, entrei pelo meu portão estreito em segurança. Tentei ver TV, mas domingo, mesmo com canais a cabo, não era tão legal. Cochilei sentado em meu sofá... Sonhei.

O lugar parecia uma praia. Não, aquilo não era uma praia, mas um deserto. No horizonte, além das ondas de calor que enganavam simulando o mar, em pé e vestido de cinza, havia alguém que me fitava.

Pensei que fosse um homem, mas apertei os olhos sob aquele céu estranho, como uma penumbra, e percebi que seus cabelos eram negros como breu. Não sei por que, mas senti medo. Quem seria? Não consegui ir adiante... Atrás de mim, ouvi uma voz:

— Regi, me salva! Me salva agora!

Soou familiar, mas ao me virar, divisei somente minha rua e sem meu Fusca. Escura e fria, eu notei que chovia... Então, um alerta me fez acordar: meu celular. Beth acabara de ligar e me salvara daquele que estava se transformando num pesadelo.

Atordoado, ouvi sua voz doce no fone e meu coração desacelerou. Já era quase 17 horas. Como eu havia dormido tanto? Ainda me refazendo, Beth perguntou se tinha me acordado. Confessei que sim, mas que não ligava para isso.

Amável como sempre, ela se lamentou e pediu desculpas.

— Não precisa se desculpar meu amor. Eu precisava acordar mesmo – respondi.

Em realidade, precisava sair daquele sonho ruim, isso sim. Combinamos de nos encontrar à noite, às 19h na porta da casa dela. Ficamos pouco tempo no celular, pois, ela precisava se despedir do tio William e da tia Margareth.

                                                         Primeiro contato

Após o banho, notei que precisaria atualizar meu guarda-roupa. Pensei: “segunda-feira eu vou passar o cartão”. Renovar meu armário era obrigatório! Mulheres são observadoras (e boas de memória!) e Elizabeth certamente passaria em revista a tropa... Sorri.

Troquei o Quasar pelo Senhor N e me arrependeria disso.  Com meus 1,79 m e pesando 78 kg, não era um cara muito magro e nem muito gordo. O bom é que não tinha barriga.

— Obrigado senhor, por morar sozinho e ser mal alimentado! – comemorei.

Com meu cabelo crespo em nível quase um, olhos castanhos claros e pele escura, bem mulata, estava pronto para zarpar. Portando minha correntinha banhada a ouro e o “R” estilizado no pescoço, parti. Peguei a chave do Fusca e saí pelo longo corredor.

Domingo certamente Amanda estaria do lado de fora de casa, esfregando seu corpo sarado no Erick, o “fortão”. Amanda não era novinha, tinha 23 anos, sendo mais velha até que minha rainha Elizabeth. Certamente, naquele momento, os dois me fitariam e provocariam. Não deu outra!

Ao abrir o portão, lá estavam os dois “me esperando”. Puta merda! Fingi que não os vi, agarrados junto ao Peugeot 306 amarelo, dele.

Em pé, me olharam e, na primeira menção em ir ao Fusca, ela me desejou “boa noite”. Amanda ficou me observando com aquele olhar que eu odeio, enquanto Erick – com uma cara mais simpática – apenas fez um movimento positivo com a cabeça.

— Boa noite Amanda. Tudo bem, Erick? – cumprimentei.

Ela forçou um sorriso falso, enquanto seu sarado namorado apenas moveu a cabeça novamente. Acessei meu Volkswagen e liguei o rádio. Tinha essa mania antes de dar partida. Para minha surpresa, tocava uma música do Guilherme Arantes: “Um dia, Um adeus”. Isso me deu uma ideia ruim.  

Acontece que, algumas horas antes, ouvira a mesma música e vinha do quarto da Amanda. Ladinamente pensei: “vou dar o troco!” Abri o vidro do Fusca e aumentei o volume antes de dar a partida. O som era audível até onde eles estavam, visto que não havia outros ruídos maiores na rua.

Olhei para o retrovisor satisfeito, contudo, meu sorriso logo se transformou em algo sério. Pelo espelho direito do Fusca, vi Amanda me encarando com um ar nada agradável, enquanto Erick parecia perdido, olhando para o outro lado.

Mesmo já com a noite posta no firmamento e a rua pouco escura, eu podia ver o brilho daqueles olhos castanhos, me fuzilando com o poder de um pelotão de execução.

Exatamente. Essa devia ser a vontade dela, visto que sabia que eu tinha sua canção secreta. Senti um calafrio e questionei: “que poder aquela garota teria sobre mim?” Temi pela minha sorte e abaixei o volume.

Confesso que senti um calor naquele momento, pois Amanda tinha jeito de vingativa. O que eu verdadeiramente poderia temer naquela jovem? Não sabia responder.

Raciocinando brevemente, pensei que ela poderia fazer uma cena se visse Beth. Entretanto, pensando melhor, deixei isso de lado, pois, estava mesmo empolgado para ver minha loira.

                                                                    #

    

Ao chegar à casa de Elizabeth, ela já se encontrava junto ao portão de ferro. Estava deslumbrante como uma ninfa. De vestido azul com temas floridos, era um pouco mais curto que o do primeiro encontro, deixando à mostra seus joelhos.

Brilhava sua correntinha de ouro 18K e que tinha sua própria assinatura em baixo relevo. Com lápis negros nos olhos verdes e um batom vermelho vivo, era uma imagem divina. Empolgada, disse:

— Estava com tanta saudade de você, meu amor!

Senti algo indescritível naquele momento e respondi antes de conjecturar uma coisa em minha mente:

— Você não imagina o quanto eu desejei este momento.

Seus olhos verdes e profundos brilharam. Abraçou-me e pude sentir um novo perfume, ainda mais doce e inebriante que o primeiro. Aquela fragrância me doparia de tanta paixão, certamente.

Ficamos uns minutos ali, presos um ao outro. Seus cabelos tinham o cheiro da primavera. Sorrindo como sempre, Beth perguntou que perfume eu estava usando.

— Senhor N.

Ela baixou o olhar e disse:

— Reginaldo, eu amei aquele que você usou ontem. O cheiro dele ficou em mim. Marcou-me e faz-me lembrar daquele nosso momento.

Aquele olhar sincero de Elizabeth me desmontou e eu sabia o destino daquele vidro de perfume... Ainda assim, ela não era qualquer pessoa. Percebeu minha frustração e me salvou, dizendo palavras que eu jamais poderia esquecer:

— Tudo o que vem de você, eu amo! – disse isso enquanto tocava minha face, de um jeito que eu não poderia me sentir triste jamais.

Pensei que ainda era cedo para ela sentir ou dizer algo assim, mas não a censuraria jamais. Era seu coração que falava e isso era o essencial. Como um cavalheiro, coloquei-a no banco do passageiro do meu pequeno carro. Notei que ela me seguia com os olhos ao passar na frente do Fusca e senti-me protegido.

Eu ainda não sabia o tamanho de sua força e de seu amor, mas futuramente teria a certeza que moveria céu e terra para ter aquilo em que acreditava. Só não sabia que isso ocorreria em uma situação impensável...

Partimos e Beth disse enigmaticamente:

— Quero ir a dois lugares hoje.

Olhei para ela com ar de surpresa, mas não disse nada. Beth, sorrindo marotamente, continuou:

— Primeiro vamos à praia. Quero muito estar na praia esta noite. Sentir a brisa... Sabe? Aquele ar de friozinho... O som do mar. Namorar muito...

Nessa hora, me lançou um olhar sensual. No meu corpo, ativou aquela área que todo homem sente quando a hora está chegando... No entanto, me acalmei e sorri de volta.

Àquela altura, eu estava totalmente comedido. Não queria avançar o sinal vermelho e já começar com uma multa. Não queria desagradá-la em nada, apenas deixaria rolar naturalmente. Ela merecia isso e eu também, após anos de solidão.

— Depois, eu direi para aonde iremos – concluiu.

Sorriu para mim com aquele ar de segredo, que as mulheres bem sabem fazer.

— Hoje, amanhã e depois de amanhã, você é quem manda Elizabeth. Irei para onde você quiser.

Ela se encostou ao meu ombro, agradecida. Por dentro, eu imaginava o imaginável e com esse pensamento, me veio outro: “não tenho proteção, se rolar o que imagino, eu vou precisar fazer pit stop numa farmácia”.

Não me preocupei de momento, apenas teria de fazê-lo “se” de fato acontecesse. Ela não podia engravidar. Nem pensar! De minha parte, não teria esse “problema” para resolver. 

                                                                     #

Ao chegarmos à praia, abri a porta para Beth sair do carro, quando passava um casal de meia idade correndo na ciclofaixa do calçadão. A mulher disse para eu ouvir:

— É assim que se trata uma mulher!

Ofegante, ela continuou a correr, indo embora. O marido, ao lado, apenas olhou sem esboçar reação. Beth deu risada e eu fiquei sem graça. No entanto, continuei meu ato heroico de cavalheirismo. Afinal, Elizabeth era minha rainha.

Merecia tudo o que eu pudesse oferecer e, naquele momento, podia me dar a esse luxo. Luxo? Não se trata disso e sim de respeito. Saberia muito adiante que seria igualmente recíproco.

Andamos pelo calçadão da praia do Gonzaga, uma das mais famosas de Santos, mas não a mais badalada. Sentamos em um dos bancos de pedra e divisamos a escuridão do mar. Ela era carinho em estado puro, com suas mãos suaves deslizando pelos meus braços.

Seus cabelos loiros invadiam-me o corpo, como se fizessem parte de mim. Olhávamos o limite entre a terra dos homens e o reino dos atlantes, na divisa onde a luz das cidades encontra as trevas da noite sobre o mar.

Conversamos muito. Ela me disse seu nome completo e sua origem. Nascera em Santos e se chamava Elizabeth Smith. Seu pai, Joseph Smith Armstrong era filho de ingleses. O pai dele havia trabalhado na extinta Cia City of Santos, uma empresa de controle britânico e que dominara os serviços públicos na cidade desde o século 19.

Joseph era casado com Ana Maria, filha de portugueses. Beth disse ainda que tinha um irmão mais velho, chamado George, com 32 anos e casado com Mary Carlson, inglesa. Eles moravam em Londres, Inglaterra, e tinham dois filhos, os pequenos Miguel e Paul Jones.

Fazia um ano mais ou menos que Elizabeth não via o irmão, sua esposa e os dois pequenos sobrinhos, de cinco e três anos, respectivamente. Eles vinham ao Brasil ocasionalmente.

Beth revelou que já morara na Inglaterra com o irmão, por dois anos, quando tinha 16. Aos 18, decidiu ficar perto dos pais, para minha sorte, é claro. Meio brasileira, meio britânica, Elizabeth era uma moça simples, sem luxos.

Gostava de vestidos, usando a moda que é comum aos países anglo-saxônicos, assim como adorava soltar os cabelos loiros, que já foram mais longos. Ela decidira reduzir um ano antes de nos conhecermos, mas eu a preferi como estava naquele momento. Afinal, aquela era a “nova” Beth.

Depois de algum tempo, que não me recordo, decidimos comer um lanche, mas eu não iria até a badalação do CPE (Centro de Paquera do Embaré), ainda mais levando uma presa para tubarões, que rondam aquelas águas atrás de sereias descuidadas.

Perto havia um quiosque e lá comemos aquele cachorro-quente para dois que, em realidade, alimenta quatro! Não demos conta daquilo tudo, é claro. Entre uma garfada e outra – não dá para comer com as mãos – ríamos sobre quem não conseguiria ir até o fim. Nenhum dos dois venceu.

Alimentados e felizes, vimos que a hora ainda havia nos dado uma trégua. Eram 22h e dava para ficarmos mais tempo juntos. Beth lembrou-me de seu segundo pedido, ir a outro lugar. Pensei comigo: “de barriga cheia vai ser desconfortável”. Como poderia pensar no meu estômago primeiro?

Lancei esses pensamentos vis de lado. Faria o que ela quisesse ou pelo menos concordasse. Então, voltando para o carro, Beth disse:

— Quero ir a sua casa.

Surpreso, olhei para ela com algum espanto. Ela sorriu, movendo a cabeça para baixo como sinal de submissão e perguntou:

— Posso?

Diante daquele olhar pedinte, concordei:

— Claro meu amor, se você quer, então iremos.

Beth ainda pensou que, pela minha reação, não tivesse gostado da ideia. Então continuou:

— Se não for incômodo para você ir a sua casa...

Respondi sorrindo:

— Jamais me incomodaria ver você em minha humilde residência.

Elizabeth sorriu e me beijou carinhosamente, dizendo depois:

— Então não percamos tempo aqui!

                                                                     #

Partimos para a distante Zona Noroeste e, no caminho, contei que meus pais moravam na Nova Cintra, aquele bairro santista que fica no alto de um morro.

Beth confessou que fora poucas vezes à região em fica o Jardim Rádio Clube, onde moro. Eu não quis pensar na questão social que envolve esses dois lados da cidade, mas quem mora lá sabe bem do que eu falo.

De qualquer forma, Beth poderia ir a qualquer lugar sem preconceito. Mesmo vindo de uma família de classe média da aristocracia santista, ela era realmente simples e sem reservas sociais. Eu amei isso nela.

Pensei que ela jamais seria arrogante e prepotente apenas porque sua família tinha dinheiro ou vinha de uma classe social mais abastada. Nunca ligou de andar de fusquinha. Amava a simplicidade do meu carro.

Ela adorava ficar perto da janela e deixar o vento mover seus cabelos sem controle e olhava para mim, apoiando seu corpo curvilíneo no meu, enquanto eu dirigia.

Ao virar a esquina – havia me esquecido da “patrulha” e do confronto musical que ocorrera há poucas horas – me deparei com o Peugeot 306 amarelo. Uma mistura de tensão e satisfação percorreu meu corpo.

Então, junto ao carro, estavam eles sentados em dois banquinhos. Erick e Amanda pareciam ter acabado de comer algo, talvez um lanche. Assim, parei meu Fusca na vaga de sempre. Saí do carro e fiz o mesmo processo de antes, abrir a porta para ela.  

Sabia que havia um risco enorme de Amanda tentar tirar o sarro, achando brega aquela atitude gentil. Não pensei em olhar para ela, mas ao fazê-lo, foi inevitável perceber sua surpresa. Quando Elizabeth saiu do carro, os dois ficaram com os olhos cravados nela.

A morena ficou sem reação alguma e eu festejei em silêncio. O namorado, ao lado, arregalou os olhos. Claro, Beth era realmente uma mulher linda, então, me atrevi:

— Boa noite Amanda.

Disse a ela, fingindo um leve sorriso, daqueles bem falsos quando se tem uma surpresa desagradável e não se pode esboçar a verdade no rosto. Amanda respondeu, balançando positivamente a cabeça:

— A noite agora está realmente muito boa.

Insinuava algo e Beth percebeu de cara, mas, do alto de sua educação britânica, apenas desejou boa noite aos dois e completou:

 — Eu conheço você de algum lugar...

Fiquei surpreso, afinal, de onde elas poderiam se conhecer? Pensei que Beth fazia confusão, dada a falta de memória de nosso primeiro encontro. Contudo, Amanda prontamente respondeu:

— Sim, eu me lembro de você. Foi na faculdade, não é?

Nesse momento, lembrei que Amanda fizera faculdade também e penso ser de administração. Beth respondeu:

— Acredito que sim. Bom, até mais...

Amanda despediu-se com um “até”, então entramos. Não queria que aquela conversa se estendesse mais. Beth não parecia ter se importado com a atitude da morena. Continuava doce e alegre como sempre.

                                                                  Bronca

Elizabeth entrou em casa e observou cada detalhe com curiosidade. No pequeno rack da sala, junto da janela de cortinas curtas e amarelas, ela divisou algumas fotos minhas.

Por sorte, eu não cultuava o passado de tentativas fracassadas com mulheres e não havia imagens delas. Não havia o que questionar e Beth gostou do que viu. Casinha pequena, mas bem arrumada e limpa, coisa que boa parte dos solteiros tem dificuldade em lidar.

Perguntou dos meus pais e contei um pouco sobre eles. Falei que meu pai se chamava Carlos Alberto e minha mãe Maria de Fátima. Já aposentado das Docas, ele tinha três filhos, sendo que eu era caçula, assim como Beth.

Robson, o mais velho, tinha três filhos. Rogério era o segundo, casado há dois anos e sem filhos. Não mencionei seus sobrenomes como Beth havia feito.

Essa era a criação que ela tivera, onde se identificava as pessoas por nome e sobrenome. Sei lá, soou meio burguês... No entanto, não era culpa dela e sim do sistema onde cresceu.

Ao chegar à cozinha, Beth logo abriu a geladeira e acredito que é o que todo mundo faz quando entra nessa parte da casa. Bem vazia por dentro, só havia uma garrafa de água e uma cartela de 12 ovos pela metade. Isso gerou outra pergunta:

— Como você vive sem nada para comer?

Dei risada, pois, achei engraçado o modo como ela perguntou. Parecia mesmo séria e pensei estar brincando, mas não estava...

— Não é para rir não! – disse ela com uma expressão discordante.

Foi a primeira “bronca” que levei dela, de verdade. Veio em minha direção e, já preocupado, busquei uma cadeira. Ela puxou outra e fixamente olhando, disse:

— Você precisa se alimentar direito. Não pode ficar comendo aqui e ali, somente besteiras.

Fiquei sem reação com as mãos postas na mesa, mas Beth percebeu que tinha indo um pouco além de Tordesilhas e decidiu voltar. Com ar mais doce, ela pegou em minhas mãos e sorriu. O que ela disse me desmanchou por dentro.

Eu, um cara sozinho, quem ligaria para o que comesse ou não? Só minha mãe mesmo. Beth então falou:

 — Você me tirou daquele trólebus e trouxe-me até aqui. Deu-me vida novamente, por isso, não podia deixar que você continuasse como antes. Desculpa-me...

Deu vontade de chorar e senti-me como um órfão naquele momento. Estava sendo adotado pelo amor daquela mulher. Antes eu estava esquecido, agora envolvido.

Aquelas palavras de Elizabeth entraram no meu coração de uma forma, que pensei: “ela tem toda a razão”. O “velho” Regi morreu e o novo precisava mudar. Aproximei-me dela e a beijei ternamente. Não houve lágrimas ali, mas um sentimento de gratidão que exalava nos doces lábios dela.

Estávamos ali, sobre a mesa, nos alimentando mutuamente com nossa paixão. Presenteávamos um ao outro com aquilo que tínhamos de melhor.

Depois de um bom tempo, voltamos para a sala e ela quis conhecer o meu quarto. Fique de sobreaviso. A coisa poderia esquentar e talvez resistisse sem a proteção de Vênus.

Achou o quarto bem arrumado e passou a mão pelo lençol, num gesto que me intrigou. Por que ela estaria fazendo isso? Então, curioso, questionei. Beth carinhosamente disse ser assim que sua avó materna fazia, quando botava os netos para dormir.

Ela “passava” o lençol antes de apagar a luz e sair. Já falecida, Clarinda Mendonça era a avó que Beth mais gostara. Sua outra avó, Helena Smith, era distante. Diplomática como o marido, Henry Armstrong.

Com ela, aprendera o inglês britânico ainda criança e a como se comportar numa sociedade inglesa. Nacionalista, reclamava que sua nora era “estrangeira”. Beth não tem muitas recordações dela, que morrera quando tinha nove anos.

Elizabeth gostava de visitar sua avó Clarinda, mais doce com ela e o irmão. Carregava no sotaque português e adorava contar histórias, explicou Beth, que também esclareceu uma dúvida que eu tinha: o sotaque.

Talvez tenha me esquecido, mas Elizabeth tinha um sotaque “meio gringo”, mas não chegava a ser como um Henry Sobel da vida ou como uma portuguesa da propaganda do Azeite Galo. Era gostoso ouvi-la falar daquele jeito que o santista não fala.

Uma mistura de português nativo e inglês com um toque caiçara. Amei! Sentou-se na cama e me convidou a fazer o mesmo, o que prontamente atendi. Num gesto rápido, deitou para trás e me puxou...

Ao cair, ela virou-se para cima de mim. Aí pensei: “essa noite será nossa!” Entretanto, o mecanismo não girava dessa forma naquele momento e após longos beijos e carícias, a coisa começou a esquentar. Sentir seus seios durinhos sobre o meu peito foi maravilhoso!

Seu corpo – não malhado como de Amanda, mas como deve ser um corpo natural de mulher – parecia todo meu e sentir suas formas nos meus braços foi tentador.

A respiração não parava e os cabelos dela no meu rosto me cegavam de amor...  Ali, deitada sobre mim, Elizabeth era a pura essência da paixão. Desejei que aqueles minutos fossem eternos. Infelizmente, não fomos além. Por um tempo, me olhando entre seus cabelos loiros, Beth confessou:

— Estou com muita vontade de me entregar a você Regi, meu amor, no entanto, hoje eu não posso. Você entende, não é mesmo?

Respondi:

— Sim meu amor. Somente quando você desejar, eu serei totalmente seu.

Abrindo um largo sorriso, ela disse:

— Você já é totalmente meu!

Após minutos maravilhosos, Beth sacou o celular e ligou para casa. Avisou o pai que já estava voltando e para mim, aquilo era um sinal de despedida. Já era tarde mesmo e passava bem da meia noite.

Fui ao banheiro e, diante do vaso, pensei: “vou ter que ter muita paciência com ela e comigo mesmo...” Antes de sairmos, Beth tirou algo da pequena bolsa. Era muito pequeno, em forma oval. Então, olhou em volta, caçando o melhor lugar e depositou a peça no rack, próximo da TV. Não consegui divisá-lo.

— A partir de agora, você tem algo meu, além do meu espírito e da minha presença – disse Beth.

Percebi ser uma foto dela, linda como sempre. Ela continuou, dizendo:

— Nunca mais você se sentirá sozinho enquanto eu existir em sua vida.

Meus olhos se encheram d´água e ela rapidamente veio me abraçar. Apertei-a com força, porque eu não queria mais deixa-la ir embora, não depois dessas palavras tão sinceras.

No entanto, ela precisava ir, porém, antes eu devia compensa-la da mesma forma. Pensando em tudo o que eu tinha de mais valioso em casa, lembrei-me do “R” que carregava no pescoço naquele dia. Usava sempre aquela correntinha e então pus em sua mão.  

Ela não aceitou, pelo menos, não como eu estava oferecendo. Quis que colocasse nela, com a que carregava.   Enquanto o fazia, pensei que tinha me sobressaído demais diante do presente dela, ao dar algo que eu carregava comigo e ela não.

Ao virar-se para mim, Beth falou:

— Com o tempo, terá muito mais de mim, em todos os sentidos, minha vida.

Queria muito que a roda que engrenava minha vida corroborasse com essa promessa, mas as coisas não nos pertencem, realmente... Sem mais problemas, levei-a até em casa. Que noite maravilhosa foi aquela! Ao retornar, antes de cair na cama, o celular tocou:

— Liguei apenas para te dizer (após breve pausa): Eu estou te amando muito!

— Também estou amando muito, Elizabeth Smith! Que amanhã e todos os outros dias sejam nossos, sempre!

Ela não respondeu e eu insisti:

— Beth? Tudo bem?

Esperei um pouco e ela retornou. Ainda continuava na linha, mas tinha a voz embargada e enxugava o nariz... Chorava no outro lado do telefone. Suspirei, mas não chorei, confortando-a:

— Não chore meu amor. Durma comigo em seus sonhos.

Ela concordou com um “sim”. Ao desligar, minhas lágrimas escorreram pelo rosto... Foi inevitável e chamei por Hipnos, que me atendeu.

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