Capítulo 1

   

   

                                                     Não existe coincidência

A sala era grande, coisa de casa antiga. Ao redor, móveis que pareciam ter saído de um museu. Na parede sem janelas, havia uma lareira, contudo, não fazia tanto frio assim e muito menos nevava em Santos. “Isso é coisa de inglês”, eu pensei.

Havia ali três sofás de couro marrom e uma mesa de centro, em mogno. Nela havia um cavalo de bronze, que mais tarde eu saberia de onde viera e por qual motivo estava ali. Com um blazer preto, eu estava de acordo, contudo, aquele momento era para mim crucial, em frente à tal lareira.

Ao lado direito, numa das poltronas, Joseph parecia um lorde inglês. Alto e loiro, com traços britânicos, olhava para seu copo de uísque escocês com duas pedras de gelo. Meditava talvez sobre o que esperar de mais um “intruso”.

Do outro lado, sua mulher Ana Maria, me olhava com ar de interrogação. Parecia querer ler a minha mente, saber de minhas reais intenções e eu tinha mais medo dela que do “sir”. Em pé, ao lado dela, uma pessoa me observava com ar esperançoso.

Então, Joseph inicia o interrogatório, exatamente às 19h15. “Pontualidade britânica em ação”, pensei.

— Aonde vocês se conheceram? - perguntou Joseph com semblante sério, ainda olhando para o copo e depois lançando seu olhar “verde” sobre mim.

O jogo começara e os dados estavam lançados, mas eu não era o único a competir ali. Ela – a qual representa tudo isso - não disse nada, pois, seu pai havia dado a dica com o olhar: “Deixe-o falar”. Devolvendo-o, mas com alguma satisfação, pois acreditava nisso, respondi:

— O senhor acredita em coincidências?

Joseph, surpreso, respondeu que não pois, para ele, tudo havia um propósito. Isso era muito dele, esse filho de inglês e leitor assíduo de livros científicos. Engenheiro, ele sabia exatamente do que eu falava.

Então comecei a contar com mais tranquilidade, afinal, havia encontrado um cara que pensava “mais ou menos” como eu.

— Eu também não, pois acredito que tudo tem um propósito...

                                                               Linha 20

Era uma sexta-feira, dia 13 de junho de 2003. O inverno estava iniciando em Santos, e no centro da cidade, o tempo já estava ruim desde cedo. Como geralmente acontece nessa época, ao fim da tarde a chuva começou.

Saí correndo sem guarda-chuva em direção à Praça Mauá, subindo um trecho pequeno da Rua XV de Novembro, histórica e linda, como sempre, buscando alcançar o ponto de ônibus quanto antes.

Ao chegar ao Paço Municipal, um trólebus partiu, mas logo percebi haver outro e suspirei. Com passos largos, alcancei o Mafersa da linha 20, que me levaria até o bairro do Gonzaga.

Molhado, chacoalhei um pouco a roupa, mas suportei, já que não estava tão frio assim. Não liguei, só queria sentar naquele banco acolchoado e relaxar.

De repente, uma garota morena e bem bonita, sentou-se no banco virado em minha direção. Para mim era uma bela visão. Tinha cabelos pretos e longos, pele rosada e belo corpo.

Ela acabou olhando para trás e viu mais bancos vazios. Levantou, passou a catraca e foi embora. Que pena! Esse foi meu pensamento, mas não deveria ter pensado isso se soubesse o que aconteceria a seguir. Até ali, a roda que movia minha vida não mudara de direção.

Nem deu tempo para lamentar o infortúnio de ver a morena ir embora. Olhei para fora resignado e então percebi que alguém havia sentado no mesmo lugar. Quando encarei, não pude conter meus olhos ao vê-la e percebi logo: ela era “simplesmente” linda!

Loira, com 1,70 m ou pouco mais – arrisquei – tinha cabelos além dos ombros e belos olhos verdes. Eles eram tão lindos que não pude resistir em dar umas fixadas, apenas para vislumbrá-los. Sua boca parecia perfeita em pele branca e ausente de pintas.

Bem vestida e deslumbrante, tinha um ar triste, no entanto. Devido a essa impressão, refleti: O que essa linda mulher estaria pensando agora? Não havia resposta, porém, mais perguntas surgiram. Namorado? Marido? Dívidas? Vai saber.

Contudo, minha incapacidade de iniciar uma conversa me deixou desanimado, ainda mais que ela parecia fechada para bate-papo. O ônibus elétrico começou a andar e, vez ou outra nesta breve viagem, eu passava os olhos nela.

Aquela “lindeza” superava suas formas sensuais, pensava eu. Por duas ou três vezes, não lembro, nossos olhos se cruzaram e fixaram-se por um segundo ou menos que isso. Era um pequeno ganho diante daquela beldade santista.

Ainda assim, sabia que um cara como eu, que nunca se achou bonito ou atraente diante das mulheres, jamais, teria alguém como ela. Pensamento ruim, eu reconheço, sendo esse o meu estado naquele momento.

Entretanto, mal sabia que o curso já havia mudado e nem em um milhão de anos, poderia imaginar o que aconteceria naquela noite. Ah! Destino! A escuridão já havia tomado Santos, quando o ônibus entrou na Avenida Ana Costa.

Pensei que desceria também no Gonzaga, onde eu iria comprar um livro, mas, de repente ela se levantou e desceu na esquina da Rua Carvalho de Mendonça. Ainda tentei um último olhar, mas o trólebus avançou rápido. Voltei para a monotonia.

Deixei aquele sonho momentâneo ao despertar para a realidade: “Cara, acorda! Você tem 25 anos e só ficou com uma garota, bem chata, por sinal”. Concordei e segui com o ônibus.

Comprei o tal livro, intitulado Deborah, o mais recente de Alexander Moriah, um desconhecido escritor santista. Havia lido um artigo de boa crítica e decidi comprá-lo, afinal, já conhecia o autor por outros dois títulos.

                                                                    #

Comecei a ler já no caminho de volta, rumo à distante Zona Noroeste, onde fica o Jardim Rádio Clube. A casa alugada era uma edícula nos fundos de uma residência maior, do senhor Moacir. Conhecia a esposa desde os tempos de escola, a dona Letícia. O casal tinha três filhos e Amanda morava com eles.

Esta figura era, para mim, arrogante e cheia de si. Namorava o tal de Erick, um cara fortão, desses de academia. Bonita, tinha o corpo malhado, porém, o que tinha de atraente por fora, tinha de ruim por dentro, eu acreditava.

Na rua ficava meu Fusca 1500 1975 de cor azul. Estava impecável, contudo, faltava um regulador de voltagem para voltar a andar. Naquele dia, fiquei olhando para ele e pensei: “Amanhã à tarde eu vou fazê-lo funcionar novamente!”

Bastava comprar o regulador e trocar para meu fusquinha voltar a andar após alguns dias. Esse era meu plano, porém, as coisas não saíram como desejava. Antes de entrar, Amanda, no portão de sua casa, aproximou-se com aquele ar de deboche:

— Reginaldo, acabou de chegar essa carta para você. O carteiro “novamente” deixou na caixa errada...

— Obrigado Amanda, vou avisá-lo novamente.

Por dentro, sentia desprezo, mas, decidido a não me envolver mais, limitei-me a abrir o portãozinho e acessar o longo corredor. Pequena, a casa tinha um quarto, sala, cozinha e uma área com espaço de serviço.

Preferi morar ali do que na Nova Cintra, um bairro que fica no alto do morro, também em Santos. É lá que moram meus pais e meus dois irmãos. Cansado, tomei um bom banho e aprontei algo para comer, após ver um jornal na TV. Então, retomei o livro, que começava por um encontro iniciado na internet.

                                                                  O chat

Lá pelas 23h30, após longa leitura, fiquei tentado a experimentar o “ciberespaço”, do qual o livro comentara. Nunca havia entrado em um chat de internet e talvez fosse uma forma de encontrar alguém também, imaginei.

Com conexão discada, sabia ter que esperar aquelas doze badaladas para poder entrar na Matrix. Entretanto, eu era como Neo sem Morpheus para guiar. Não havia pílula naquele mundo de salas virtuais.

Cidades, idades, namoro, sexo, tinha de tudo. Eu não pensei duas vezes ao buscar a “minha” Santos. Passando por mensagens coloridas, apelidos diversos e aquele bip chato, pulei para outras duas salas, mas sem nenhum progresso. Até que, na sala 29, me deparei com uma resposta feminina, comemorei.

Seu nick era “Elisa”. Eu, como “Regi25”, iniciei a conversa com perguntas básicas, como: “Oi, tudo bem?”, “Tc de onde?”, “Quantos anos?”, etc. Ela foi respondendo e devolvendo as questões. Algum tempo depois, já estávamos conversando sobre outras coisas.

Ela disse trabalhar no centro de Santos e morava perto da Vila Belmiro. Disse ser loira, mas pensei comigo: “Deve ser feia para estar aqui”. Confesso que sorri maliciosamente, mas fui perdoado pelo destino, desta vez...

Elisa disse que não estava namorando. Havia terminado recentemente. Tinha 22 anos e se descreveu como tendo olhos verdes, pele clara e 1,75 m. Ela fez-me lembrar da loira do trólebus. Quanta ironia...

Num dado momento, pedi foto, mas não respondeu sobre isso. Pensei que a conversa não devia estar agradando. Então, comecei a contar mais de mim, que trabalhava numa empresa de exportação na Rua XV de Novembro e tinha um velho Fusca.

Elisa pareceu achar legal essa combinação, ainda mais por saber que meu trabalho era perto do dela. Nessa parte, a conversa começou a tomar outro rumo.

“Pode ser que já tenhamos nos visto ali, não acha?”, escreveu ela. Eu respondi com um “talvez”. Nesta rua, cheia de empresas de comércio exterior e arquitetura da época gloriosa da capital mundial do café, trabalhavam milhares de pessoas. As chances eram mínimas, mas possíveis.

Revelou então seu verdadeiro nome: Elizabeth. Eu reafirmei que me chamava Reginaldo. Durante a conversa, me fazia perguntas sobre o que pensava da vida e objetivos. De meu lado, era apenas curiosa, por isso respondia sem muitas esperanças de progresso.

De repente, Elisa, ou melhor, Elizabeth, me alerta: “Nossa! Já são quase 5h da manhã!”, escreveu. Pensei: “Como assim? Começamos a conversar antes da 1:00h.” O tempo voou e animei-me então a pedir seu telefone, o que prontamente atendeu.

Dei o meu também e, nos “45 do segundo tempo” das 5 da manhã, apressadamente marcamos um encontro. Fiquei surpreso, pois, eu sou tímido, porém, tomei a iniciativa. Ela escreveu: “Tudo bem. Pode ser amanhã?”. Eu devolvi: “Claro, por que não?”.

Marcamos na Praça Barão do Rio Branco, perto da Rua XV, às 13h de sábado. Planejei: “Saio do trabalho meio-dia, devoro algo e vou para lá”. Despedimo-nos e saí da sala com certa alegria, afinal, após três anos teria um novo encontro.

Já não me importava se era bonita ou feia, apenas queria conhecer alguém. Por dentro, ela parecia bem interessante.

Antes de adormecer, no entanto, lembrei-me da loira do trólebus e cheguei à conclusão: o que eu estava vivendo era a minha realidade e não aquele sonho passageiro, a bordo daquele ônibus.

Dormi na certeza de que isso era a realidade e que aquele encontro, se não desse certo, pelo menos me daria tempo de arrumar meu carro... Queria retornar com meus passeios solitários, curtindo sua companhia. Contudo, a roda moveu mais após o chat...

                                                         Meu mundo parou

Amanheceu tão rápido quanto eu podia imaginar. Nem bem acordei e o corpo queria ficar na cama, porém, meu espírito dizia para levantar, e rápido! Diante do meu guarda-roupa cheio de histórias não contadas, me deparei com aquele blazer preto que usei no casamento do meu irmão, Rogério.

Tinha uns dois anos que não o usava. Nunca achei necessário, mas a ocasião exigia uma boa apresentação, pensei.

— Imbecil! – disse a mim mesmo.

Para que tudo isso? Vai que ela simplesmente não goste de você? Sim, havia o risco de não dar certo.

Todo esporte-fino e com o perfume Quasar no pescoço, poderia ir mais seguro. Ao chegar ao escritório, logo notaram meu visual “diferente”. Isabela, a secretária de cabelos curtos bem penteados e olhos castanhos, me fitou com curiosidade. Passei por ela e por outros que entreolhavam.

Natália, com seus 30 e poucos anos, chegou até mim na velocidade “5” e interrogou logo de cara. A alta e magra, com seus seios pequenos e quadril fino, olhou para este e disparou:

— Regi, hoje tem encontro né?

 Um sorriso malicioso formou-se em sua boca devidamente untada com batom brilhante. Pensei: “respondo ou não?” Decidi responder, mas sem palavras, apenas acenei positivamente. Então, ela disse:

 — Eu sabia! Boa sorte com ela...

Natália, eu te agradecerei sempre por essa pequena intromissão em minha vida particular, gostei. A tensão por causa daqueles olhares com pensamentos que eu nem quero imaginar, passou.

Esperei as doze badaladas do dia com o toque diário da sirene de altíssimos decibéis, instalada no prédio da redação do jornal A Tribuna. Clássica, ela é a implacável salvadora dos famintos e cansados de tanto trabalhar.

Desci para um pequeno (e necessário) desjejum ali na XV de Novembro, longe ainda das 13h. Até a praça do encontro, apenas alguns metros. Fui olhando à procura de qualquer loira suspeita, mas nada.  

                                                                   #

Essa Praça Barão do Rio Branco não tem bancos de pedra como na Praça Mauá, aquela da linha 20. Contudo, é contornada com uma mureta que tem base de assento. Fiquei um pouco afastado da banca de jornal ali perto, estando, assim, em frente ao prédio do Banco do Brasil.

O relógio marcava 13h. Faltava ela chegar, mas enquanto aguardava, reparei que o céu estava azul, bem diferente da sexta-feira. Eu podia ouvir os pássaros nas árvores também.

Da mesma forma, o quicar os pneus dos carros sobre os paralelepípedos de “trocentos” anos eram bem audíveis, assim como o vento suave e levemente gélido, marcando a entrada do inverno.

13h10. Meu relógio Casio acusou o atraso. Pensei em ligar, mas me contive, pois, deixaria passar meia hora. Abortar não era legal, mas para consolo, havia meu Fusca me esperando.

Ponderei: “Calma, ela já vem... Espere!” Do outro lado da rua, surge uma loira que vem em minha direção. Pensei: “Agora vai!” Contudo, olhando mais de perto, conforme ela se aproximava, reparei em seus cabelos curtos e bem escurecidos no alto.

Seu rosto denunciava sua idade, infelizmente. Social, carregava uma bolsa vermelha. Devia ter uns 50 e poucos anos. Decerto não era Elizabeth se passando por “novinha”.

Passou por mim, mas ainda deu uma olhada e um leve sorriso... Na minha cabeça surgiu: “Ela se passando por mais nova?” Talvez... O livro falava que algumas pessoas fazem isso.

13h15. Metade do prazo para abortagem havia se passado. Olhei para trás e a loira “mais velha” entrara num ônibus. O celular marca 13h16. Então, ao retornar meu olhar de volta à direção do banco, vi uma figura se aproximar rapidamente.

Ela estava a uns sete metros de mim, quando consegui fixar o olhar. Nesse momento, meu mundo parou! Em um segundo, minha mente iniciava uma luta para converter a imagem e processá-la como real.

Fiquei petrificado! Não podia ser! Era virtualmente impossível. Naquele eterno segundo os pensamentos passaram pelos neurônios com um relâmpago. Aqueles impulsos elétricos me diziam: você está tendo uma visão. Não é real!    

Sim, era real. A grande engrenagem que move o mundo, simplesmente se encaixou na minha pobre existência. Pensei: “Meu Deus! Como pode ser ela?” Era ela!

Não a Elisa do chat ou Elizabeth que conhecera e marcara aquele encontro. Nem uma, nem outra. Ali, diante deste pobre mortal que vos conta sua vida, estava a loira do trólebus! Sim, aquela arrebatadora de corações da linha 20!

Perdi o sorriso, porque não tinha como não ficar impressionado. Era ela mesma! Estava em um lindo vestido florido com um fundo avermelhado. Seus cabelos loiros brilhavam como ouro, avolumados em relação ao dia anterior. Aqueles olhos verdes conquistaram minha alma!

— Oi, tudo bem? Reginaldo? – perguntou-me curiosa e um pouco assustada.

Afinal, conhecer alguém que você nunca viu, não, é algo que se faça todo dia, não é mesmo? Não tinha erro. Como ela poderia saber meu nome, se não fosse a... Elizabeth? Eu imitei um sorriso e disse:

— Sim, o próprio.

Não pensei em outras palavras, fora pego de surpresa. Então, ela abriu sorriso lindo e seus olhos transpassaram-me como uma lança afiada. Desarmei-me.

— Prazer, Elizabeth – respondeu estendendo a mão.

Num rápido impulso, levantei e apertei sua mão, que assim como a minha, estava suada. Seu rosto se aproximou do meu, num movimento de cumprimento, que aceitei ainda em estado de choque...

Seu perfume nunca saiu da minha lembrança. Não é possível descrevê-lo em palavras, mas havia uma mistura de flores-do-campo, que deveria ser paradisíaca, pois, eu estava diante de uma representante dos Elísios, uma das ninfas.

Por alguns segundos nos olhamos e na minha mente falei: “Ela vai me reconhecer”. Entretanto, ela não disse nada.

                                                     Um segundo encontro?

Elizabeth, com aquele sorriso amável, era realmente linda. Parei nos olhos dela... De tão verdes, pareciam ocultar duas nebulosas. Seu olhar era simplesmente indescritível.

Meus sentidos começaram a fluir novamente e relembramos a conversa na madrugada. Cada detalhe revisto, cada nova impressão. Parecia que nos conhecíamos há muitos anos. No entanto, foi uma longa conversa nas horas mais mágicas da minha vida.

Entretanto, enquanto eu as vivia, ainda não havia dado conta disso. Demos risada de coisas bobas e parecíamos como crianças num parque infantil. Nada sério ou adulto, contudo, tive que iniciar o processo... Revelei alguns extras da minha vida.

Não podia ser totalmente sincero sobre certos assuntos, afinal, ainda não conhecia Elizabeth. A impressão, porém, tornou-se outra com o passar dos minutos e me sentia cada vez mais seguro com ela. A tensão inicial se foi quase que completamente.

— Você não é como eu imaginava – disse ela com um sorriso engraçado.

Já absorto diante de tamanha beleza, perguntei:

— Sou mais feio ou mais bonito?

Esse é o tipo de pergunta que você jamais deve fazer, porém, mandei sem atenção à situação. Ela pensou... Fez aquele olhar de interrogação e abriu um sorriso que aparta qualquer briga ou discussão.

— Apenas, diferente. Mas, estou gostando do que eu vejo.

Essa resposta me desbancou e calei-me por um tempo. Respondi que ela era mais que eu imaginava e era verdade. “Uma doce surpresa”, eu pensei.

Mesmo que não a tivesse conhecido no ônibus – e isso me colocaria numa situação delicada logo mais – ela se mostrava uma pessoa tão linda por dentro quanto por fora.

                                                                   #

Passava das 14h30 quando Elizabeth decidiu me mostrar onde trabalhava, ali na XV de Novembro. No caminho, adiantei-me em mostrar o prédio do meu emprego.

Enquanto andávamos naquela estreita e histórica rua de Santos, me derretia a cada olhar que lançava sobre mim. Com prédios centenários como testemunhas, andávamos sem a menor pressa.

Chegando ao “endereço dela”, me mostrou o prédio onde trabalhara até poucas horas antes daquele momento.

— Se não fosse tão tarde, eu levaria você para conhecer o “meu canto” lá dentro – falou.

Agradeci e, antes que pudesse dizer algo, ela completou:

— Mas, por hoje chega. Melhor estar aqui fora que trabalhando lá dentro.

Elizabeth disse que nem todo sábado trabalhava, mas que aquele era sua escala. Então, me olhando curiosa, indagou:

— Será que não nos conhecemos dessa rua? Afinal, trabalhamos tão perto um do outro.

Decidi ali colocar todos os pingos nos “is”. Olhei-a sério e perguntei se ela acreditava em coincidência. Pensativa, Beth apenas disse um “talvez, não sei dizer ao certo”.

Continuei sério e disse que, pelo menos ali da XV, nunca a tinha visto. Contudo, confessei que já nos olhamos e Beth pareceu surpresa.

— De onde? Ou melhor, onde? – respondeu intrigada.

Falei que a resposta era a Praça Mauá. Andamos até lá bem juntinhos e ela pareceu gostar disso. Naquele momento já brotava algo entre nós.

No caminho, contei que na sexta-feira havia passado pela praça correndo para não levar chuva. Quando chegamos ao ponto da linha 20, sem ônibus, eu abri o jogo:

— Beth. Posso chamar te chamar assim?

Ela aceitou e continuei:

— Foi nesse lugar que conheci você!

Olhou-me surpresa.

— Ontem, entrei no trólebus “20” e me sentei num banco virado ao contrário. Você, Elizabeth, sentou-se na minha frente. Lembra?

Passados alguns segundos com um olhar perdido, ela mirou em mim, assustando-me, pois, parecia outra pessoa. Lembrava a “loira do trólebus”.

— Não acredito! Era você? Agora eu lembro... Mas como? Não pode ser! – respondeu perplexa.

Também fiquei assim, mas não sei se foi por ela ter se transformado tão de repente ou por sua falta de memória.

— Sim, era eu mesmo e confesso que, quando te vi naquela praça, eu fiquei congelado de tanta surpresa – disse.

Beth ainda não acreditava nisso e continuou a dizer:

— Ainda não consigo imaginar como nos encontramos duas vezes no mesmo dia, mas em situações totalmente opostas. Interpelei:

— Duas situações que fugiram de nossas mãos...

Enquanto dizia isso, seu sorriso voltara e não pude deixar passar, pois, aquele era o momento de algo mais. Entretanto, antes de falar novamente, ela colocou a mão sobre meu ombro. Séria, Beth tinha olhos carentes e disse:

— Ainda bem que não nos conhecemos ontem. Eu estava amarga e triste. Queria estar logo em casa. Um dos motivos você já sabe – ela se referia ao término do namoro recente – e então foi melhor assim.

Segurei a mão dela em meu ombro e disse com sinceridade:

— Aquele Reginaldo de ontem também não estava bem. Era um velho “eu”, alguém que quero que fique no “ontem”, sabe por quê? – Não a deixei responder:

— Porque hoje eu encontrei um “novo” Reginaldo e isso se deve exclusivamente a você. Você me libertou de uma prisão de muitos anos, Beth.

Os olhos dela brilharam e, com um ar terno, falou:

— Posso dizer o mesmo “Regi”. Hoje não sou nada do que era ontem. Estou leve, livre de mim mesma, graças a você meu querido.

Nesse momento ela veio e me abraçou. Sentir aquele corpo quente e perfumado no meu foi como encontrar um quasar num universo escuro.

                                                     Meu guia pelo mundo

Aquele abraço foi maravilhoso e, automaticamente, veio o primeiro beijo. Perdi-me em seus lábios e sua pele junto à minha, era tão suave quanto seda.

Notei que os olhos dela estavam marejados... Mas não rolou nenhuma lágrima. Após beijos posteriores, nos refizemos. Agora eu não largaria aquela mulher por nada! Nem por ninguém!

Comecei a acariciar seus sedosos cabelos, como aqueles das embalagens de shampoo. Num segundo abraço, ela viu o bonde.

— Vamos dar uma volta de bonde?

Elizabeth, com um ânimo renovado, queria aproveitar cada minuto daquele encontro. Ela não era mais a “loira do trólebus”, mas uma nova mulher. Minha mulher! Tinha de ser minha!

Nunca tive tanta determinação por algo ou alguém como naquele momento. Tomamos o bonde turístico num tour pelo centro.

Seus cabelos dançavam ao sabor do vento junto à janela, enquanto me olhava com um misto de paixão e agradecimento. Eu a salvara de si mesma. Naquele banco de madeira do bonde histórico de Santos (era o verde, o “camarão”), eu só pensava em tê-la comigo. Estávamos alegres.

A cada sorriso, cada beijo, ela solidificava em mim sua paixão e, por que não, seu amor. Fiquei muito entusiasmado ao perceber que aquele passeio de bonde poderia ser o primeiro de muitos e disse isso. Avancei o sinal, pois não estávamos de fato namorando.

Ué, por que não? Formalmente, não. Ela me olhou de um jeito que pensei ter falado alguma besteira.

— Vamos para aonde você quiser. Você, Reginaldo, será o meu guia pelo mundo! Eu te adoro!

Ela disse de uma forma que me emocionou, porém, me contive. Ainda não era a hora. Eu não era um cara chorão, mas meu problema era ficar segurando o que sentia. Mudei devido a ela e de outras coisas...

Descemos na estação do Valongo, mas não entramos no museu. Beth queria ir ao mosteiro, ao lado. Sempre aberto, aquele santuário com séculos de idade nos deixou adentrar. Elizabeth foi para um dos bancos e se ajoelhou.

Pouco ou nada católico, resolvi acompanhá-la assim mesmo. De cabeça baixa e com as mãos juntas, eu só pensava nela, em mais nada. Após um minuto, cansei. Sentei e a observei orando como se fosse um anjo. Um anjo que mudara meu destino.

Ajoelhada na espuma posicionada no apoio do solo, ela virou-se e sorriu. Ao sentar, disse que agradecera a Deus por aquele momento, mas seus olhos marejaram e uma lágrima caiu... Soltei minhas amarras e mergulhei os meus na sopa salgada que os protege.

Abraçamo-nos e pedi a Deus que fizesse por ela, o que havia pedido. Ao sairmos, percebemos que o bonde fora embora, deixando-nos, mas pelo menos estávamos juntos.

                                                   Lágrimas que dizem: sim!

Ao chegarmos à Praça Rui Barbosa, após andarmos pela Rua do Comércio inteira, Beth lembrou-se que marcara com uma amiga para ir ao cinema. Ela sustentara o convite, porque pensava que, mesmo conhecendo o tal “Regi25”, ainda reservaria tempo para Kelly, sua melhor amiga.

— Vou ligar para a Kelly e dizer que vou levar uma “pessoa” comigo.

Falei que não haveria problema, que as duas poderiam ir sozinhas, mas, nessa altura, o destino não era mais meu. Iria para aonde Beth mandasse e, naquele momento, era para irmos ao cinema, porém, sem a Kelly.

Logo ao contar a “novidade”, do outro lado do celular, Kelly abriu mão gentilmente do convite. Ela teria dito precisarmos daquele dia para nos conhecer melhor. Elizabeth entendeu que a amiga estava certa. É para isso que os verdadeiros amigos existem. Apoiam-nos, mesmo renunciando a si mesmos.

Já de volta à Mauá, no ponto da Linha 20 - sim, fizemos questão de tomar aquela rota - outra coincidência. O próximo ônibus a sair era do mesmo horário de sexta: 18h30 e achamos graça daquela situação. Sim, a engrenagem que move o mundo, continuava a girar e nos encaixar em seus planos.

— Regi. Queria te dizer uma coisa – disse séria.

Concordei com a cabeça.

 — Eu não quero voltar a ser a Elizabeth de ontem. Hoje, eu sou sua. Sua Beth. É essa mulher que eu quero ser a partir de agora. Cansei de sofrer e preciso viver! Acredito que tudo conspira para que isso aconteça ao seu lado.

Um frio percorreu o meu corpo, me arrepiei todo. Meu pensamento era um só e então verbalizei:

— Aquela mulher morreu com aquele homem ontem. Hoje sou novo também, assim como você diz. Eu te quero e não vou deixar você voltar ao que era, se você assim o desejar. Caso queira isso, será minha até o fim.

Beth então derramou lágrimas e eu comecei a me emocionar também. Não houve um pedido de namoro. Nem um “sim” sequer. Não teve joelho no chão e nem uma cena romântica.

Aquele era o nosso momento, de nos limparmos do passado e abrirmos o caminho para o futuro. Refizemo-nos após um prolongado beijo, limpando os olhos molhados.

Como uma carruagem romântica, que para na porta da igreja, o trólebus da linha 20 parou bem ao nosso lado. Era um convite. Desta vez, entraríamos naquele ônibus como duas pessoas novas e unidas em um sentimento maior que pensávamos.

                                                                    #

Fomos ver Simplesmente Amor, em cartaz num cinema do Gonzaga, mas ficamos um bom tempo para ver a sessão seguinte. Com pipoca e bebida, nos abraçamos e comemos vendo aquele filme.

Eu confesso que não prestei muita atenção. Meus olhos e sentidos eram todos dela, pois, tudo em mim era voltado para Beth. Dali em diante, eu não estava mais sozinho, tinha de cuidar daquela maravilhosa ninfa que veio dos Elísios.

Da hora do almoço até ali, tudo fora inesquecível. Após o filme, andamos até a praia e ficamos próximos da fonte da Praça das Bandeiras, observando o mar. O tempo passou entre beijos, abraços, afagos...

“Com Elizabeth era como estar entre os deuses”, pensei. Quando Cronos acelerou o tempo, percebemos que já era tarde. Eu ia pedir um táxi, mas Beth preferiu ir de ônibus. Os 20 minutos extras seriam um tempo a mais comigo. Ligou para casa e avisou estar indo embora.

Já era quase meia noite. O dia tinha sido longo, mas eu não estava minimamente cansado. Quando chegamos à sua casa, a alguns quarteirões da Avenida Ana Costa, eu pensei que a despedida seria rápida, mas fora uma hora dizendo a ela que já estava indo...

Sabe como é né? Não dá para dizer tchau, pronto e acabou.

Demorei no trajeto para casa e ao chegar, dei um toque em seu celular, indicando que havia chegado bem. Beth retornou e disse:

— Boa noite meu amor.

Gostei muito do “meu amor”. Após isso, fui levado por Hipnos para um sono merecido. Feliz e extasiado, um novo Reginaldo nascera e uma nova vida começava a partir daí.

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