Capítulo 3

                                                    Preparando meu espírito

Segunda. Meu dia começou cedo, como sempre. Tomei um justo banho, mas muito a contragosto, visto       que desejava nunca mais perder aquele cheiro dela em mim... Estava disposto a começar a semana diferente. Longe do passado, que morrera naquela manhã de sábado.

Queria rever muitas coisas e ter todo o tempo do mundo para ela. Quando estava no ônibus, meu telefone tocou. Claro, quem mais poderia ser? Beth deu-me um “bom dia” caloroso! Fiquei feliz de ouvir a voz dela.

Não coincidentemente, ela também estava num ônibus, indo para seu trabalho. Elizabeth trabalhava no escritório de uma construtora. Seu pai, Joseph, já fora sócio de lá, mas se retirou há alguns anos.

Ainda assim, ele tinha influência na empresa e colocou sua filha na parte administrativa. Beth não quis seguir a carreira do pai, preferiu a parte burocrática da coisa... Não conseguimos nos encontrar, infelizmente.

Chegando ao trabalho, Natália, aquela alta que eu já mencionei, se aproximou curiosa e lançou:

— Como foi? Deu certo?

Respondi que sim, que fora muito bom – fui comedido no entusiasmo – mas não dei pistas sobre como ela era. Não sabia o que aconteceria mais tarde...

Natália se deu por satisfeita e disse que eu estava no caminho certo, desejando-me boa sorte “nesta nova caminhada”. Nunca esperei algo assim vindo da parte dela e novamente gostei de sua intromissão.

Após a sirene do jornal, muito rapidamente “corri” até o ponto e registrei. Apertado naquele caixa de aço suspensa por cabos, eu fiquei pensando em leva-la para almoçar em um lugar melhor, que aquele barzinho da XV...

Quando saí do elevador, Elizabeth já estava ali, na recepção do edifício, chamando atenção com sua beleza fenomenal. Ao me aproximar, tirou os óculos e pude – assim como os que passavam – divisar seus belos olhos verdes.

Alguns caras do escritório passaram por mim com caras atônitas. Quem era ela? Reginaldo como uma deusa dessas? Imaginei os questionamentos. O beijo dela em mim os fulminara completamente.

Beth me disse que mudara o visual e sugeriu que eu fizesse o mesmo. Aceitei, afinal, éramos “novos”. Já saberia que mais tarde, passaria o cartão... Maravilhosa aos meus olhos, ela parecia muito feliz.

Sempre sorrindo, ela emanava uma energia que me botava para cima. Entre olhares e toques, enquanto comíamos, Beth iniciou seu projeto de vida, que começara por uma preparação.

— Precisamos marcar uma data para você ver meus pais – falou.

Senti um friozinho na barriga. Longe da “britanidade” dela, fiquei pensando em como me comportaria diante deles. Queria passar uma boa impressão, mas não seria forçado. Teria de ser eu mesmo.

Concordei. Precisava mesmo me apresentar a Joseph e Ana Maria, contudo, Elizabeth disse que primeiro “prepararia o espírito deles”. Não entendi exatamente essa parte, justamente por ser eu que precisava me preparar...

Decidimos nos ver no final da tarde, quando eu iria fazer umas compras. Precisa de roupas novas e não queria ficar andando com ela, tendo um visual repetitivo. Agora eu era um “novo” Reginaldo.

A doce Beth concordou e ajudar-me-ia a compor meu novo armário. Isso nos animou, sendo o nosso primeiro compromisso com uma causa além dos sentimentos.

Com o fim do expediente, fomos a uma loja de roupas e lá, na seção masculina, escolhemos o meu novo visual. Calças novas, camisas ainda mais, blusas de inverno, etc.

Não lembro quanto gastei, mas pode ter certeza, que fora 50% mais do que eu gastaria normalmente. Culpa de quem? Dela, é claro. É aquilo, nunca faça compras com mulheres...

Com algumas sacolas e muita fome. Perguntei:

— Meu amor, onde vamos comer aqui no centro? Tudo está fechando.

Beth, com aquele sorriso lindo, mandou na lata:

— Na sua casa, é claro!

Surpreso novamente – sim, ela tinha essa capacidade de me pegar desprevenido – eu aceitei. Propus comprar algo no supermercado, mas ela não concordou:

— Eu adoraria cozinhar para você, mas hoje vamos pedir refeição. Pode ser?

Seu desejo não era um pedido, mas uma ordem!  Novamente concordei com ela.

    

                                                                     #

Assim, pegamos um ônibus rumo ao Rádio Clube. A “patrulha” estava ausente e fiquei aliviado, tendo apenas meu Fusca aguardando na porta de casa. Ao entrar, pedi uma refeição por telefone. Beth ligou para a mãe e explicou que chegaria mais tarde.

Observando-a ao telefone, fiquei pensando em como a mãe concordara tão facilmente. Mãe. Não existe outro ser que conheça melhor seus filhos. Ana Maria, de alguma forma, sabia. Elizabeth não contou nada, mas disse que ela já percebera a mudança.

Ainda não entrou em “detalhes” com quem ela ama profundamente. Perguntei:

— Beth, sua mãe deve saber, não é mesmo?

Ela respondeu que sim, embora não tenha falado nada. Minha ninfa disse que a “deusa-mãe” tinha o poder de “ler os pensamentos”, brincou. Demos risada daquela situação, mas da minha parte, me passou um pensamento rápido, que subiu à Nova Cintra.

— Um dia te levarei à casa dos meus pais, lá em cima – falei.

Ela sorriu e gostou da iniciativa. Beth era do tipo “certinha” e queria fazer tudo nos “conformes”. Gostei disso logo de cara, porque também pensava que não podia viver com ela sem ser “oficial”.

Enquanto a comida não chegava, Beth se apressou em tirar as roupas da sacola e organiza-las no meu armário. Tentei ajudar, mas ele me proibiu, dizendo:

— O que eu vou fizer aqui não deve ser desfeito. Toda vez que você abrir este guarda-roupa, verá um toque meu aqui.

Impressionado por seu carinho e atenção para comigo, apenas concordei balançando a cabeça. Mas Beth tinha mais a dizer:

— Esse meu toque não será apenas aqui, mas nessa casa toda...

Ficou olhando em volta com um olhar pensativo. Tentava imaginar o que alteraria em meu ambiente, deixando mais ao gosto dela. Mesmo achando que ela poderia estar mudando demais minha vida, jurei que aceitaria tudo.

Quando você está amando alguém – bom, era o que eu acreditava, apesar de nunca ter amado ninguém – você se permite abrir muitas de suas portas para que o outro melhore algo em você.

Vendo ela ali, arrumando minhas coisas como se fossem dela, só alimentava mais o sentimento que eu tinha por aquela mulher. Não tive reação, apenas observava a cena.

“Como em menos de três dias meu mundo mudara”, pensei.  Como a roda que gira a engrenagem do meu destino estava acelerada naquele momento! Nunca imaginaria que em tão pouco tempo haveria tamanho impacto em minha vida.

Meu espírito estava me preparando para o que viria adiante... Lembrei que a ascensão havia sido muito rápida e que agora nós estávamos muito distantes do velho mundo. Entregamo-nos um ao outro em tão pouco tempo que só ali a ficha caiu!

Tão rápido! Tão intenso! Fiquei refletindo em tudo o que passamos desde aquela madrugada de sábado. Antes de ela terminar, a buzina do entregador se fez aparecer desesperadamente. Em nossa mesa posta, comemos alegremente naquela noite.

Beth disse que mesmo para dois, a comida era bastante. Dissera também que iríamos fazer compras no dia seguinte para deixar aquela geladeira cheia, o que me fez lembrar a noite anterior...

Comendo ali, junto dela, eu me sentia um homem casado. Foi tão bom que eu queria isso todos os dias, porém, sabia ser impossível no momento. Casamento. Uma palavra que não estava em meu vocabulário, mas que ali parecia tangível!

Decidi manter essa ideia em meu coração até quando fosse prudente apresentá-la. Ao terminarmos, Beth disse que aquela semana iria conversar com seus pais a meu respeito.

Fazia mais ou menos três meses que ela havia terminado. Após sete meses de namoro, descobriu por meio da amiga Kelly, que o “camarada” estava trabalhando em outro lugar... Ela não teve dúvidas e terminou com aquilo.

Fiquei pensando: Como um cara conseguiria adulterar a relação com aquela mulher? Eu não conseguia – naquele momento – imaginar, mas, pensando bem, tem cara que não consegue viver seu provar “outros sabores”, pensei. Ainda assim, não fixei mais o pensamento nele.

Quem devia minha atenção era Beth, mas aquela fora a segunda traição na vida dela. Contou-me que namorou um cara logo que retornou ao Brasil. Ficaram quase um ano, inclusive com ele prometendo casamento.

Um dia, descobriu tudo por ela mesma. Investigou as sumidas dele e os contatos “masculinos” no celular. Aí tem coisa... Deu o flagrante no bandido! A separação fora dolorosa para ela, que ficou um tempo sem conhecer ninguém, até o segundo...

Ela só teve cabeça então para os estudos e mais nada, entre esses dois relacionamentos. Pensei em Ana Maria, que eu ainda não conhecia. Devia ter se desdobrado para ajudar a filha. Talvez Joseph ficasse mais distante por ser pai, imaginei.

Por isso ela iria conversar com os pais primeiro e eu sabia o que me esperava... Como provar a eles que meus sentimentos eram verdadeiros? Refleti sobre isso naquele momento. Contudo, olhando-me profundamente, Beth disse:

— Não se preocupe com eles. Seja você mesmo. Eles têm o jeito deles. Não vão te morder...

Ela sorriu alegremente e devolvi, mas não na mesma intensidade. Na minha cabeça, existiam muitas coisas que me perturbavam. Classe social. Renda. Morando sozinho. Mulato. Todo tipo de besteira passou pela minha cabeça e eu não parecia contente com isso.

Beth, não sabendo dessas coisas, me animou com um beijo.

— Vai dar tudo certo, meu amor! - disse me acariciando o rosto.

Prontamente me reanimei e, disposto mesmo, enfrentaria tudo e a todos, gostem ou não. Ela não deu uma data exata para fazer uma visita à sua casa, mas o final de semana, especialmente o sábado, parecia o momento oportuno.

Antes desse acontecimento eu teria uma revelação que explicaria muita coisa do passado de Elizabeth. Isso faria com que meu papel naquele dia fosse ainda mais importante, embora o fato em si não pudesse ser colocado na pauta do dia.

Despedi-me dela ao deixá-la em casa e fui embora com a certeza de que tudo daria muito certo. Em casa, abri o guarda-roupa e fiquei observando a arrumação. Desde a posição das camisas e calças até os cintos e sapatos. Mesmo minhas roupas íntimas ela colocou em lugares novos, devidamente separados por cores.

Como dissera antes, eu não era um cara desorganizado, mas o novo arranjo ficou melhor. Elizabeth é aquele tipo de mulher que levanta um homem, no bom sentido, é claro. Senti-me mais protegido ainda e tive a certeza de que ela era do tipo “para casar”.

Seu jeito era doce e amável. Não era sofisticada e muito menos se apresentava de forma sensual. Não precisava tentar os outros com roupas provocantes, visto que sua beleza natural era um chamariz e tanto. De modo simples, ela parecia conquistar todos ao redor. “Esse é o poder das ninfas”, pensei.

Não precisam recorrer aos vícios das pobres mortais, ávidas por atenção. Elizabeth era uma moça que qualquer homem gostaria de ter ao lado para cuidar bem. Para mim, pensava ser virtualmente impossível traí-la. A engrenagem continuava a girar...

                                                             O inesperado

Aquela semana começara bem e terminaria ainda melhor. Contudo, não seria nada fácil atravessar aquele período. Terça, fim da tarde, era hora de supermercado. Ela havia prometido que faria as compras comigo.

Fomos até minha casa para pegar o Fusca e ter onde trazer as sacolas. Mais uma vez, Amanda estava ausente e eu agradeci. Entramos, mas não ficamos nem 5 minutos.

Ao sairmos, o seu Moacir chegava com seu Honda Civic 95 de cor azul. Parei para falar com ele, junto à dona Letícia e apresentei Elizabeth a eles. Moacir elogiou respeitosamente a beleza daquela mulher:

— Bonita você, hein?

Dona Letícia não perdeu a chance e brincou com o marido:

— Sim, ela é bem bonita até, mas eu que sou a linda aqui, viu?

Todos nós rimos naquele momento. Beth gostara do casal e me confidenciaria isso depois. Moacir e Letícia formavam um belo casal. Ele, já com seus 52 anos, era sete anos mais velho, mas ainda era um garotão.

Contudo, os cabelos grisalhos já se faziam presentes e a pele branca, avermelhada de sol, denunciava sua idade. Ainda assim, ele parecia mesmo ter uns 40 anos em espírito. Para minha sorte, naquele momento, Amanda não estava.

Entretanto, o encontro casual com seus pais não passaria despercebido... Chegando ao mercado, deixei que Beth comandasse as aquisições nas prateleiras. Só coisas saudáveis. Porém, quando estávamos quase terminando, o celular dela tocou.

Joseph perguntou onde ela estava e, em resposta, mencionou o supermercado. Ela não mentiu, estávamos mesmo, só omitiu com quem. De repente, o semblante dela mudou. Com ar de muita preocupação, respondeu ao pai que já estava indo...

Ao desligar, Elizabeth disse que sua mãe estava passando mal, mas que talvez fosse uma subida de pressão. Ana Maria, pedagoga, tinha 52 anos. Beth olhou para mim e disse que precisava ir. Então, me prontifiquei a levá-la.

Deixamos tudo para trás e fomos rápido. As compras ficariam para outro dia, pois, naquele momento, Elizabeth era minha prioridade máxima. Durante o trajeto, ela me disse que sua mãe vinha sofrendo com súbitas elevações de pressão.

— Ela sempre pareceu saudável, mas agora “tinha essas coisas...” - confidenciou.

Aquele seria nosso primeiro “susto”. Sua família tinha um médico particular que atendia em casa e, quando chegamos, havia um Chevrolet Vectra prateado em frente ao portão. Era do Dr. Macedo, que já estava atendendo sua mãe.

Ao parar o Fusca, Beth abriu a porta rapidamente. Nisso, eu fiz menção de ir com ela, mas ela virou-se e disse:

— Melhor não, meu amor. Depois eu te ligo.

Respondi com tristeza:

— Tudo bem, amor, corre lá e cuida dela!

Com uma mistura de tensão e tristeza no rosto, Elizabeth abriu o portão de ferro e entrou apressadamente. Nós nem nos despedimos direito, foi tudo tão rápido... O infortúnio sobreveio ao nosso momento e eu ainda nem era da família.

Não poderia apoiar Beth pessoalmente sem criar uma situação e nada de mentiras do tipo: “Este é o Reginaldo, um amigo”. Éramos muito mais que isso. Resignei-me e voltei para casa, sem nem vontade de voltar ao mercado. Sentia um vazio...

Fiquei aguardando notícias, mas bem preocupado. Queria saber como as duas estavam e então, por volta das 23h, o celular tocou.

— Oi meu amor...  – disse ela, com uma voz cansada.

— Beth, meu amor, como sua mãe está? Você, como tá?

Soltei logo duas perguntas de tanta preocupação, mas Elizabeth calmamente me explicou.

— Minha mãe teve um princípio de AVC. O médico disse que ela precisará ficar internada para fazer exames...

Não respondi, apenas ouvia.

— Ela esta lúcida, mas se tudo correr bem, em dois dias estará em casa. Como você tá?

Tranquilizei-a, dizendo:

— Estou bem - mentira, eu não estava, mas ela sabia mesmo assim - não se preocupe. Descanse, pois sua mãe vai ficar boa logo e ficará tudo bem.

Beth ficou com a voz embargada, mas ainda assim conseguiu falar:

— Eu queria estar com você minha vida...

Nesse ponto, meu coração apertou... Ela continuou:

— Contudo, preciso ficar aqui no hospital. Vou acompanhar minha mãe até ela sair.

Concordei:

— Farei o que for preciso para te ajudar Beth. O que você precisar!

Enxugando o nariz, Beth disse que Kelly – que eu ainda não conhecia – revezaria com ela e seu pai. Perguntei como ele estava e ela respondeu:

— Meu pai é forte. Eu queria ser como ele...

Não pude deixar de apoia-la:

— Beth, sua força é grande também. Você nem imagina...

Sinceramente, não sei por que eu disse a segunda parte dessa frase. Parecia que algo dentro de mim dizia que aquela mulher era realmente especial. Uma coisa que ia além...

Mais uma vez, aquela engrenagem engatou uma marcha diferente. Adiante, eu saberia, mas isso a confortou. Ficamos conversando mais um pouco e eu sempre tentando levantar o espírito dela, mas deixei-a descansar.

Sei que não estava sendo fácil para ela. E eu? Estava tentando suportar aquilo, pois era nossa primeira crise e não tinha nada a ver com nosso relacionamento. Na dor. No amor. Não é isso o que se diz no altar?

Beth faria tudo por mim e eu por ela, mas não ficaria de mãos atadas. Durante nossa conversa, ela revelou que sua mãe estava na Beneficência Portuguesa, um hospital bem conhecido em Santos. Ela não havia pedido para acompanhá-la, mas eu não podia ficar em casa...

Aquela força que você sente quando precisa fazer algo era realmente grande naquele momento. Não dava para simplesmente ir dormir... Então, tomei um banho, vesti outra roupa e coloquei um agasalho.

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Coloquei o carro no estacionamento e fui para a recepção do convênio. A Beneficência Portuguesa é um hospital muito antigo em Santos, de arquitetura neocolonial. Surgira em 1859 na cidade e, por coincidência do destino (ou não), começara na Rua Direita, a atual XV de Novembro, a “nossa rua”.

Na recepção dei o nome da mãe dela e, após alguns minutos, a porta que dá acesso à parte restrita do hospital abriu-se, revelando Elizabeth com o cabelo amarrado. Foi a primeira vez que a vi assim.

Vindo em minha direção, Beth abriu um sorriso reconfortante, abraçando-me e com um beijo breve. Não estava com batom, ali, era simplesmente “Elizabeth”.

— Eu sabia que você viria... – disse ela.

Enquanto falava, Beth me olhava de uma forma que imaginei uma conexão entre nós, além das ondas emitidas pelos aparelhos de telefonia celular. Algo além... Uma conexão acima das tecnologias humanas.

— Eu não deixaria de estar perto de você, ainda mais neste momento – confessei.

Elizabeth ficou muito feliz e pediu para a atendente liberar meu acesso. Eu não pretendia ficar a noite toda, mas apenas por algum tempo para ela poder descansar um pouco. Só que meu pensamento era o mesmo de uma criança que promete não comer os doces que estão na geladeira...

Subimos até onde a mãe dela estava. Naquela UTI semi-intensiva, Ana Maria repousava sedada. Sobre a cama alta com um lençol grosso cobrindo seu corpo, a mãe de Beth tinha um semblante tranquilo. Ao lado, as máquinas a monitoravam.

Aproximei-me dela e disse mentalmente: “gostaria de ter te visto de outra forma...” Até Beth percebeu meu olhar triste. Entretanto, haviam aplicado uma sedação para ela dormir um pouco e manter a pressão baixa, então ela nem daria conta da presença daquele estranho, imaginamos.

Beth me disse que conversara com a mãe até poucos minutos, antes de aplicarem a injeção. Percebi o cuidado que ela tinha com tudo que pertencia à mãe naquele quarto de hospital. Era a mesma atenção que eu vira em outro quarto no dia anterior...

Ela ficou em pé, observando a mãe. Eu, ao lado dela, abraçava-a carinhosamente, buscando oferecer um conforto a mais. Naquele ambiente, a temperatura era baixa e percebi que não havia outro casaco para Elizabeth vestir.

Então, prontamente tirei meu agasalho, uma jaqueta de frio, mais grossa e a fiz vestir.

— Não precisa meu amor...

Respondeu-me com aquele olhar carente, mas, insisti. Estava ainda com um cheirinho de Quasar, que ela tanto gostava. Senhor N? Nunca mais! Beth se sentiu confortável e pedi para que sentasse na poltrona larga, ao lado da cama. Busquei uma cadeira simples que havia no outro canto e sentei.

Segurei sua mão fria de modo a aquecê-la, enquanto lançava meu olhar sobre o dela. Passamos algum tempo assim, sem conseguirmos dizer nada.

Pareceu uma eternidade, mas acredito que nossos espíritos estavam se conectando ali, sem palavras ou gestos. Essa é a linguagem do amor? Será a língua dos anjos? Por um instante me veio uma pergunta na mente que, sinceramente, estava evitando fazer a mim mesmo: “O que ela viu em mim?”.

Não tive resposta, mas parece que ela leu meu pensamento! Aproximou-se e me beijou com seus lábios quentes e, naquele momento, percebi que ela realmente tinha esse poder. Como ela poderia fazer isso exatamente quando eu formulei a maior questão ainda não respondida?

Era mágico! Mesmo naquele leito de hospital e com sua mãe ali, Beth parecia imersa em algo que a superava. A preocupação em seu semblante sumira e a confiança na recuperação de sua mãe era concreta.

— Ela vai superar isso – disse Beth, olhando com aquele olhar confiante e me lançando uma pergunta:

— Você acredita em mim?

Achei a pergunta estranha, porque ela afirmava algo com tamanha certeza, que me desarmou. Respondi que sim. Mas, por que eu não acreditaria naquela ninfa? A minha representante dos Elísios?

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“Mesmo uma ninfa sente fome”, pensei, quando ela revelou que não comera nada desde que saíra de casa. Prontifiquei-me a comprar um lanche fora do hospital, já que a cantina do mesmo havia fechado. Pediu-me um sanduiche natural e um suco de laranja. Quando ia abrir a bolsa, eu segurei seu braço.

— Nada disso, deixa comigo tá?

Ela sorriu agradecida e disse:

— Você é quem manda meu lindo! – e completou – Tenha cuidado aí na rua, hein? Já é bem tarde.

Respondi que não teria problema e soltei algo mais:

— Eu não estarei sozinho lá fora. Você estará comigo, aqui (apontei para meu peito) e aqui (indiquei minha testa)...

Ela não respondeu, apenas sorriu gentilmente. Sinceramente, eu não precisava dizer aquilo, pois, ela já sabia disso.

                                                    Alguém no meu caminho

Desci para o estacionamento, peguei meu Fusca e fui até um supermercado que ficava aberto 24 horas. Quase sem ninguém – pois passava da 1h da manhã – busquei o que ela havia pedido e senti que meu estômago queria algo também. Então, dobrei a compra.

Voltando para o hospital, observei a cidade de Santos silenciosa... Com os cruzamentos vazios naquele canal 2 - um dos sete principais que cortam o lado leste da cidade – me perdi numa reflexão...

Qual seria meu futuro com Elizabeth? Fiquei imaginando que teríamos uma vida tranquila. Pelo menos em relação aos nossos sentimentos mútuos. Já as demais coisas da nossa breve existência, infelizmente, nós estaríamos sujeitos...

Conduzindo meu Fusca pela Bernardino de Campos, observei o velocímetro de iluminação verde e grafismos clássicos, de origem alemã. Com o vento frio entrando pela janela, meu pensamento estava longe...

De repente, surge alguém na frente do carro! Tomei um susto enorme e, instintivamente, pressionei o pedal do freio com força extrema. Meu Fusca 1500 estava em dia com as prestações de segurança, pelo menos aquelas relativas à sua época.

Travei as rodas dianteiras brevemente, apesar de não estar correndo, pois, antes do ocorrido, observara o ponteiro pouco abaixo dos 40 km/h.

Parei bem junto daquela pessoa que aparecera de repente, saindo de uma esquina escura. Buzinei com raiva, pois, pensei ser mais algum bêbado na noite. Contudo, aproximando-me do pequeno para-brisa, vi que não era um daqueles bebuns de sempre...

Não, aquela figura definitivamente não era um homem. Era uma mulher, jovem. Tinha cabelos bem escuros e estava toda de preto, vestindo calça e uma blusa de mangas longas. Com pele muito branca, seu rosto não dava para ser divisado completamente.

Ela não se movera, ficando uns 2 metros ou mais do Fusca. Ali, parada como um “2 de paus”, me fitava. Buzinei mais uma vez, mas nada. Então, abaixei o vidro e acenei com a mão, indicando para ela sair do caminho.

A jovem de preto percebeu o movimento e veio em minha direção. Nisso, dois carros passaram ao meu lado testando seus alertas sonoros... Eu não reclamei. Na verdade, o errado era eu. Ou não? Afinal, tinha uma mulher na minha frente! Como vou passar por ela?

Andando devagar, veio em direção à minha diminuta janela, com suas mãos brancas segurando as mangas daquela blusa de lã preta. No seu rosto, que agora eu podia ver, seus olhos escuros estavam molhados de lágrimas, que borravam sua maquiagem.

Fiquei em alerta! Ela podia estar sendo perseguida ou com algo pior. Então, perguntei:

— Você precisa de ajuda?

A jovem de preto balançou a cabeça apressadamente, confirmando e me olhando fixamente. Então, emendei:

— O que aconteceu contigo?

— Ele está atrás de mim! – respondeu ela.

Era aquilo que eu não queria ouvir... Isso iria me meter em confusão, certamente.

— Quem? Onde ele está?

Ela olhou para a esquina e eu mirei lá, mas não vi nada. Rapidamente olhei em volta, caçando algum sujeito suspeito, mas não havia ninguém. Passou então mais um carro por nós... Liguei o pisca-alerta e decidi sair do Fusca, enquanto ela me olhava com ar assustado.

Devia ter uns 18 anos ou menos, não sabia dizer ao certo. Seu rosto tinha traços comuns, nada que chamasse atenção, porém, suas formas faciais a tornavam uma mulher bonita, realmente.

Passei por ela e fui até a esquina, há uns 3 metros do carro. Não vi uma alma viva... Mas, um estalo fez virar-me para ver o Fusca! Por sorte, ele ainda estava lá com motor ligado e piscas acesos.

A moça? Ao lado dele e continuava me olhando fixamente, ainda assustada. Eu me aproximei dela novamente e disse que não havia ninguém na esquina.

— Ele veio atrás de mim, mas não sei para onde foi... – disse a jovem.

Olhei mais uma vez em volta e nada. Então, retornei para ela e perguntei:

— Você ainda quer minha ajuda?

— Preciso voltar para minha casa. Pode me levar? Estou sem dinheiro, sem nada... – respondeu ela.

Com mais ou menos 1,65 m e dotada de curvas suaves, aquela jovem de cabelos negros e um olhar estranho, estava movendo aquela engrenagem... Se eu soubesse disso, teria ido por outro caminho. Ah... Destino!

Perguntei onde morava e ela respondeu ser perto do morro, no bairro do Marapé. Olhei para o Fusca e pensei em Beth. Sim, aquele Volkswagen 1500 “era dela”. Não de propriedade, é claro, mas sentimental.

Decidi colocá-la no Fusca e levá-la para casa. Vai que o tal cara – se era mesmo alguém – retornasse. Dali até o canto do Marapé não é longe. Assim, pensei que faria isso rapidamente e voltaria para minha Beth.

Durante o trajeto, ela me disse seu nome: Sofia. Eu não perguntei do cara, apenas pedi que ela me guiasse até sua casa e também me apresentei. Novamente, perguntei:

— Você está melhor?

Sofia, passando a mão pálida pela face igualmente alva, respondeu:

— Sim, agora estou melhor. Obrigada. 

— Então está bem – respondi.

Emiti um leve sorriso, mas ela agora parecia séria. Pelo menos estava em segurança – embora eu não... – e logo estaria na proteção de sua casa. Enquanto dirigia, notei com o canto dos olhos que me fitava.

Não dá para explicar muito bem, mas havia algo que me incomodava naquele olhar. Meu espírito estava certo e eu saberia mais tarde, que uma coisa não se encaixava. Uma parte daquela engrenagem se soltara...

Atrevi-me a perguntar sua idade. Ela disse que tinha 19 anos. Pensei: “ainda bem que não é ‘de menor’”. Numa travessa, entrei e vi uma casa de muro alto, de pedra. Portão de alumínio grande e uma árvore na calçada. Ao parar o Fusca, disse:

— Pronto, agora está em casa!

Foi a única vez que Sofia sorriu e, verdadeiramente, naquele momento, ela parecia uma pessoa normal e fez menção de sair, mas deteve-se. Olhou para mim e disse:

— Obrigado. Hoje você salvou a minha vida.

Olhei com ar surpreso e ela se aproximou, beijando-me no rosto. Fiquei paralisado pela atitude dela. Sua pele era suave e gélida ao mesmo tempo. Senti um perfume levemente adocicado que não percebera até então.

Afastando-se, ela continuou sorrindo e agora parecia realmente agradecida. Fiquei ali parado esperando vê-la entrar, mas antes ela lançou um último olhar. Sorri, engatei a primeira e saí.

Minha boa ação do dia já havia se encerrado. Não! A boa ação do dia era estar com a Elizabeth. Achei egoísta este pensamento meu. Não tinha pensamentos de segunda ou terceira intenção com aquela garota.

Eu acreditava estar blindado contra qualquer mulher! Em meu coração só residiria Elizabeth e não havia espaço para outra, mesmo que caísse de paraquedas. Só queria chegar ao hospital e abraçá-la.

Ao entrar no quarto, ela estava com um cobertor do hospital, deitada na poltrona e cochilando... Pensei: “claro, você demorou rapaz!” O infortúnio sobreveio mais uma vez, atrasando-me. Toquei nela e aqueles olhos verdes se abriram assustados.

— Você demorou... O que aconteceu? – perguntou ela e com razão.

Nem havia reparado na hora e já eram quase 3h da manhã. Não lembro quanto tempo perdi no mercado e muito menos com aquela situação. Porém, isso não me preocupava e sim o que vinha a seguir. Respondi que tive um imprevisto e ela me olhou espantada.

— Aconteceu algo? – perguntou preocupada.

Sentei no banco e comecei a abrir o lanche, retornando o olhar para ela. Fiz um movimento positivo e com ar sério. Ela perguntou novamente:

— O que aconteceu?

Com ar cansado, respondi:

— Quase atropelei alguém na volta...

— Nossa! Alguém se feriu?

Respondi que ela estava bem. Entretanto, o “ela” não passou batido pelo “radar Smith Armstrong” de Elizabeth, que logo acusou o gênero:

— Era uma mulher?

— Sim, uma garota fugia de alguém...

Ainda fiz uma cara de que não entendera aquela situação vivida e, na verdade, não havia entendido realmente. Ainda me questionava sobre o ocorrido e refletia sobre o que ela estaria fazendo ali, correndo sozinha, visto que eu não vira o tal cara.

Contudo, enquanto respondia, outra questão me veio à mente instantaneamente: Como ela vai reagir agora? Em milésimos de segundos pensei que iria sentir ciúmes. Bobo era eu, que ainda não conhecia Elizabeth, que falou com expressão preocupada:

— Caramba! Que perigo! E ela?

— Ela, o que?

Beth, com um olhar reprovador, novamente insistiu:

— Você não a ajudou?

Eu falei que sim e expliquei também que ela disse não ter dinheiro para ir embora. Elizabeth ainda esperava mais explicações e não parecia estar com ciúmes, mas apenas preocupada. Acabei revelando que levara a garota até sua casa, deixando-a em segurança.

Nesse ponto, temi alguma reação dela, afinal, a mãe ali na UTI e ela com fome, enquanto eu andava com outra mulher no “seu” Fusca. Mas, novamente, eu insisto: Beth era diferente. Não era uma mulher comum. Ela sorriu aliviada pelo meu gesto heroico, afirmando mesmo:

— Eu sabia que você ajudaria. É por isso e outras coisas que eu amo você a cada dia!

Veio e deu-me um merecido beijo, acariciando o lado direito do meu rosto, exatamente onde Sofia encostara o seu na despedida. Aquele pensamento foi perturbador no momento. Pensei ainda que Beth poderia sentir o perfume daquela garota.

Se de fato sentiu, nunca revelou. Ficou aliviada e feliz por eu estar de volta e eu por novamente ficar sob sua proteção. Após comermos, eu a cobri com o cobertor e decidi que ficaria ali ao lado dela. Beth me disse antes de adormecer:

— Regi, vai para casa, descansa. Amanhã você trabalha.

Olhei para ela e soltei um leve sorriso. Nem respondi, pois, ela sabia, no fundo, que eu não me moveria dali por nada. Então, Hipnos desceu dos Elísios para levá-la de volta. Não pedi carona, fiquei ali entre cochilos e momentos acordados, sempre ao lado dela e velando seu sono.

                                                                    #

Amanheceu e ela ainda dormia. Não queria acordá-la, mas eram quase 7h da manhã e precisava saber o que faríamos. Toquei nela e seus olhos se abriram.

— Bom dia meu amor. – respondeu ela com cara de sono.

Acariciei seus belos cabelos loiros e expliquei:

— Bom dia, o que vamos fazer agora? Logo seu pai vai chegar.

Ela perguntou as horas, pegou o telefone e ligou para o pai. “Sir” Joseph já estava a caminho e renderia a filha até à tarde. Beth ligou ainda para a empresa, avisando da ausência e eles certamente atenderiam a filha do ex-sócio.

Pensei: “o que vai acontecer quando ele chegar?” Expus esta questão à Beth. Após refletir um pouco, ela disse ser melhor eu ir trabalhar se tivesse condições. Eu respondi que não e que ficaria com ela, caso precisasse de algo e vi seus olhos brilharem mais uma vez.

Eu ligaria na empresa, dando uma desculpa para ausência. Pegaria até um atestado no hospital para compensar a falta, mas se não aceitassem, eu também não ligaria, planejei.

Ponderei que Elizabeth era essencial, mais até que meu próprio emprego, visto que trocar de empresa não seria problema, já encontrar alguém como ela, era virtualmente impossível.

Em vez de uma sala de bate-papo, preferiria a sala de entrevistas do RH alheio, com certeza.

Beth me orientou:

— Então, é melhor você ficar no Fusca até meu pai chegar. Ele deve vir de carro, mas eu vou dizer que pegarei um táxi.

Não achei tão elegante da parte dela mentir sobre esse ponto, visto que seria eu a levá-la em casa, porém, a situação não era boa. Joseph não sabia de nada e já tinha preocupações demais para lidar.

Beth percebeu meu desapontamento com sua atitude, mas reiterou aquilo que eu já pensara. Também disse que realmente queria poupar seu pai. O encontro – meu e dele, nesse caso – ocorreria no momento certo e em circunstância melhor.

                                                                     #

Aceitei a sugestão dela e desci. No estacionamento, vi um Chevrolet Omega azul – deveria ser 99, daquele australiano – entrar numa vaga. Reparando nele, percebi a figura de Joseph saindo do veículo.

Embora não fosse igual, seu jeito sério e organizado lembrava um ator famoso, já de idade, daquele do filme do porquinho... Não lembro o nome agora.

Eu só vira Joseph em uma foto que Beth me mostrara no celular, mas ao ver aquele gringo, sabia ser ele. Lembrei também que ela havia dito que ele gosta da marca Chevrolet e que tinha também um Opala. Alguns minutos depois, Beth apareceu e entrou no carro, dizendo:

— Ele ficará até às 14h. Vou retornar nesse horário e ver se a Kelly reveza comigo. Se der certo, eu só volto à noite.

Concordei, mas Beth disse mais:

— Preciso arrumar uma ou outra coisa em casa e dormir. Estou um trapo...

Pensei: “quero ter esse ‘trapo’ para o resto da minha vida”. Assim, após seguirmos para a casa dela, ao estacionar o Fusca, Beth ficou pensativa. Olhei para ela com ar de interrogação e sorriu-me de volta, dizendo:

— Vamos, preciso tomar um banho. Você sabe fazer café?

Respondi:

— Claro. Meu café, eu acredito que é bom.

Sorri para ela e nos beijamos mais uma vez. Então, pela primeira vez, eu estava entrando nos Elísios sem ajuda de Hipnos...

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