Capítulo 2

Logo que entrei na ampla cozinha, tirei a sapatilha e, apesar do calor que fazia lá fora, senti o gélido piso de porcelanato branco sob meus pés descalços, sendo tomada pelo cheiro da carne assando na churrasqueira.

Olhei ao redor e, no entanto, nada havia mudado.

A decoração moderna da cozinha que mamãe havia planejado no ano anterior continuava do mesmo jeito, com cadeiras acrílicas pretas e luminárias metálicas presas ao teto que combinavam perfeitamente com os móveis em marcenaria ao lado das bancadas de granito, fazendo-me sentir novamente em casa e não mais em um quarto vazio de hotel no centro de Paris.

Eu já podia ver meus tios e primos na varanda do outro lado do aposento, assim como ouvia também o DVD do meu sambista favorito tocar ao fundo, enchendo a residência com o animado ritmo do samba.

Tio Jorge, que chamávamos carinhosamente de tio Buda por causa da sua barriga redonda avantajada, o cabelo grisalho no peito e a gargalhada engraçada, trajava apenas uma bermuda amarela e chinelo de dedo.

Em uma de suas mãos manuseava o espeto da carne, enquanto o pão de alho e a linguiça suína assavam na churrasqueira a carvão, e na outra o copo de cerveja suava pela metade.

Mais adiante, seu filho Mateus enchia de gelo o cooler branco de bebidas que estava no chão.

Eu diria que, em se tratando do meu primo, isso era um grande avanço, já que a sua timidez exacerbada quase não o permitia socializar ou interagir com quem quer que fosse.

Lembro-me, quando adolescente, das vezes que Tia Lia levava Mateus a terapeutas com a intenção de ajudar o primogênito a ser um menino menos retraído.

Ela acreditava que a terapia o ajudaria a fazer amigos, principalmente na escola, porém, após anos de tentativas frustradas, acabou por desistir.

Tio Buda por sua vez alegava que o filho não precisava de terapia, e que todo o comportamento retraído de Mateus era efeito da fase conturbada da puberdade.

Entretanto, muitas vezes mal ouvíamos a voz de Mateus quando estávamos reunidos nos tradicionais almoços de família aos domingos, e em casa, rotineiramente, Tia Lia se esquecia quando o filho se trancava dentro do quarto, fazendo parte de um mundo completamente paralelo onde os gibis, a música alta no fone de ouvido, os jogos de guerra no videogame e as séries japonesas o excluíam totalmente do mundo real.

Um dia, para surpresa de todos, Mateus apresentou a primeira namorada para a família.

A menina, chamada Ana, mostrou-se muito educada, doce e reservada, combinando perfeitamente com a personalidade introvertida de meu primo. Quando ela começou a falar com sua voz calma e seu jeito doce, gostamos dela na hora, principalmente porque ao longo dos meses seguintes de relacionamento, Ana conseguiu o que achávamos ser impossível: fez com que o Mateus passasse a acompanhá-la em diversas saídas em grupo, passeios e viagens nos finais de semana, tirando-o finalmente da concha em que vivia.

De costas para a porta de entrada onde eu e mamãe estávamos, Isabela preparava o que parecia ser um grande prato de salada verde e molho vinagrete, o que fez lembrar-me da última vez que tentei fazer uma dieta.

Minha prima sempre fora aficionada por dietas e exercícios físicos, fazendo da academia sua segunda casa.

As horas incansáveis de musculação diária e alimentação rígida faziam do seu corpo o mais torneado que eu já vira.

Não havia roupa que não ficasse bem, ou biquíni que não modelasse perfeitamente o seu corpo. Chegava a ser covardia, quando íamos fazer compras no shopping.

Nutricionista formada, com emprego fixo nas Forças Armadas e casada com um petroleiro ausente, lembro-me de ter pedido ajuda para melhorar a minha alimentação que sempre fora regada à carne vermelha e precária em nutrientes importantes como legumes, verduras e frutas.

No entanto, quando olhei a dieta que ela havia feito especialmente para mim, achei que fosse uma grande brincadeira.

Isabela cortou o carboidrato, mesmo sabendo que eu não me privaria da velha e boa receita do macarrão de minha mãe ou da lasanha ao molho branco feita no forno.

Cortou também o café preto e, mesmo diante de protestos, baniu o açúcar, o maravilhoso pó mágico que me ajudava nas crises agudas de TPM, fosse em formato de barra de chocolate ou pirulito de caramelo.

Ela elaborou uma dieta radical rica em verduras, legumes, frutas, iogurte desnatado, castanhas, que precisavam ser medidas, e muitas outras coisas que não tinham absolutamente nada a ver comigo. Contudo, prometi tentar seguir à risca tudo o que havia me passado e comecei uma verdadeira batalha diária para disciplinar-me aos novos hábitos alimentares.

Após um mês de fracasso da nova dieta, eu me resumia na maior parte do tempo mal-humorada, irritadiça e com constantes dores de cabeça devido à falta de açúcar no organismo, além de incluir em meu prato, o brócolis e a cenoura, fingindo prazer ao tomar iogurte desnatado ou contar metodicamente as castanhas-do-pará.

Liguei para Isabela com o objetivo de entrarmos em um novo acordo sobre a minha alimentação.

— Nicole, vamos pelo início, ok?

Ela disse, dando uma pausa do outro lado do telefone sem muita paciência para as minhas reivindicações.

— Seus exames apontam taxas altas de açúcar, colesterol e triglicerídeos, além do consumo excessivo de carne vermelha, que também eleva essas taxas. O que estou tentando fazer com você é desintoxicar seu organismo. Você quer que eu faça o quê?

Isabela repreendeu-me severamente como se eu fosse uma criança que acabara de fazer uma grande e indesculpável bobagem, e eu nunca sabia se o péssimo humor que ela exalava constantemente era porque havia se casado com um homem ausente ou porque era infeliz na profissão que escolhera. Embora eu tentasse de todas as formas contestar tudo o que ela dizia, acabei respirando fundo para evitar que começássemos uma discussão que poderia acabar mal, mesmo sabendo que no fundo daquela bronca autoritária e do seu discurso de quase quarenta minutos ao telefone, tudo que ela me dizia fosse apenas para ajudar-me.

Diante disso, eu já havia me arrependido de telefonar-lhe às oito da noite, em plena terça-feira, para uma conversa que não teria futuro algum.

Foi então que ouvi gargalhadas seguidas por um falatório que podiam ser ouvidas do outro lado da rua.

Era óbvio que somente uma pessoa seria capaz de provocar gargalhadas assim das pessoas que o cercavam, e esse era meu primo Miguel, um dos trigêmeos da minha Tia Virgínia e do meu Tio Maurício.

Tia Virgínia e Tio Maurício se conheceram quando trabalharam juntos na redação de um badalado jornal na década de oitenta.

Na época, ele era o editor-chefe, e ela era uma prestigiada economista e colunista sobre assuntos financeiros.

Os belos olhos azuis de Tia Virgínia enfeitiçaram tanto meu Tio Maurício que depois de seis meses de namoro, ele a pediu em casamento e para sua grande felicidade o “sim” foi dado.

Após dois anos de casados, eles resolveram, então, construir uma família, pois ambos não escondiam o desejo de terem a casa cheia de filhos com bonecas e carrinhos espalhados pelo chão, e banhos de mangueira no quintal, mas infelizmente, na prática, não foi tão simples assim.

O casal que tentava ano após ano ter filhos, entrando e saindo de consultórios médicos sem sucesso, viu o casamento sucumbir a uma grave crise que resultou em separação.

Foram dez longos meses separados, até se reencontrarem na festa de aniversário de um amigo em comum do jornal, fazendo com que o amor falasse mais alto durante o reencontro.

Eles, então, retomaram o casamento e decidiram recorrer à inseminação artificial.

A primeira tentativa, no entanto, não deu certo, e Tia Virgínia optou por tentar novamente, deixando claro para o marido e para a família que não passaria novamente pelo procedimento que a deixava frustrada, ansiosa e receosa na maior parte do tempo.

Quando enfim estavam na consulta de rotina, o médico deu a boa e grande notícia: Tia Virgínia estava grávida. Para surpresa de todos, três óvulos foram fecundados.

Por conta da gravidez delicada, Tia Virgínia largou o emprego e manteve-se em repouso durante os quase oito meses de sua gestação. Apesar dos trigêmeos terem nascidos prematuramente, vieram saudáveis e sem maiores complicações.

Miguel, Adriana e Flávia finalmente enchiam a casa de barulho e brinquedos pelo chão.

Miguel nascera primeiro, com um minuto de diferença da Adriana, a trivitelina do meio que ao longo da infância encheu a casa de bichos de estimação.

Recordo-me de crescer em meio a doze cachorros, duas tartarugas, seis calopsitas, vinte e quatro peixes e oito gatos correndo pela casa. Uma verdadeira loucura!

Por sua vez, Flávia, a caçula de Tia Virgínia, era a mais sonhadora. Quando não estava escrevendo poesias em seus diários (e ela possuía muitos) ou ouvindo músicas românticas, gostava de plantar todos os tipos de tempero caseiro na varanda extensa do apartamento que morava, o que resultou como fonte de renda na fase adulta, tornando-se uma das principais fornecedoras de produtos orgânicos para as feiras das ruas do bairro em que morava.

Por fim, nunca conheci ninguém como Miguel.

Meu primo não cansava de arrancar sorrisos das pessoas que conhecia, colecionando histórias de lugares por onde passava. Ele vivia viajando e fazia amigos com uma incrível facilidade por onde quer que fosse. Nunca o vi brigando, bêbado ou até mesmo triste.

Quando entrava de férias no trabalho, surgiam convites de vários amigos para mochilar por países vizinhos e participar de festas intermináveis.

Suas redes sociais eram repletas de fotos com grupos enormes de meninos da sua idade, além de registros com a família e em lugares exóticos pelo mundo.

Tinha fotografias em cachoeiras que quase ninguém conhecia no interior do estado; festas em praia; acampamento na beira de rios; escaladas no Pão de Açúcar; cangurus na Austrália; elefantes nos safáris da África; ondas em lugares paradisíacos e pescarias que terminavam com imensos pirarucus no Pantanal. Era tanta coisa que mal dava para enumerar.

Com Miguel, a casa sempre parecia mais cheia que o normal, fazendo da vida daqueles que o cercavam repleta de luz e alegria.

Embora meus tios e meus primos estivessem entretidos em suas tarefas e com conversas acaloradas sobre o resultado do jogo de futebol do último domingo no Maracanã, nenhum deles de fato havia reparado quando mamãe e eu adentramos pela porta. Se não fosse pelo Pietro, meu primo favorito, e sua namorada Daniela, que o ajudava com os copos vazios de caipirinha, nossa chegada não teria sido notada tão rapidamente.

Assim que Pietro nos viu paradas e cheias de bolsas nas mãos, não se conteve e soltou um sorriso largo seguido por exclamações de “boas-vindas”, vindo imediatamente em nossa direção, alarmando os outros que pararam o que faziam para também nos recepcionarem.

Antes que eu pudesse colocar as malas no chão, fui tomada por beijos de todos os lados.

Fiz questão de abraçar carinhosamente um por um, inclusive Ana e Daniela, as respectivas namoradas de Pietro e Mateus.

Falávamos e ríamos todos ao mesmo.

Uma verdadeira algazarra de boas-vindas ao “lar doce lar” onde eu gozava de felicidade, carinho e gratidão por, finalmente, estar perto de tudo e de todos que mantinham a minha vida cheia de amor, sentido e razão.

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