3. Novo corpo, novas regras

            Nos primeiros meses do surto de contágio da peste, não existia alternativa, a chance de sobrevivência era menor que cinco por cento. Quando a esperança veio, não na forma de um tratamento desenvolvido por cientistas de países ricos, como todos esperavam, mas sendo um ritual de magia elaborado por uma mística haitiana, as crenças religiosas se tornaram fator decisivo na escolha pela vida ou pela morte. A partir do momento em que se adoecia, e como veremos, quase todo mundo adoeceu, havia apenas três opções:

passar por todos os estágios da doença, aproveitando os dias de sintomas suaves para buscar redenção, resolver coisas mal acabadas e se despedir de amigos e familiares e nos últimos,  desejar que os analgésicos fossem o suficiente para aliviar a dor excruciante;

passar pelos estágios iniciais da doença para realizar os últimos desejos e, literalmente, viver como se não houvesse amanhã para, quando os sintomas piorarem, abreviar o sofrimento colocando um término na própria vida e;

encontrar alguém que costurasse muito bem, encomendar a confecção de um boneco de pano com as características desejadas, torcer para que o boneco fosse confeccionado com competência e esmero, realizar o ritual observando com cautela cada etapa e, se obtivesse sucesso, transferir sua alma para o boneco.

          Apesar de termos definido três escolhas e, no fim das contas, não havia nada mais que isso, com a exceção do suicídio, que não permitia arrependimentos, o processo decisório era confuso. A atitude consciente mais comum era a de adoecer e perecer naturalmente. Religiosamente, essa parecia ser a coisa mais correta a se fazer, mas era uma escolha feita nos primeiros dias, quando os sintomas eram leves e a decisão parecia razoável. Conforme os tumores começavam a surgir no pescoço, axilas e virilha e a dor se tornava insuportável, metade das pessoas não passava à provação autoimposta. Uns encomendavam a confecção de um corpo de pano que, feito de última hora que, além de feio, muitas vezes era pouco funcional, sem mãos e balanço, permitindo apenas uma existência miserável. Outros acabavam cometendo o suicídio. Das pessoas que escolhiam transferir a alma para bonecos de pano, preferindo qualquer coisa à morte, alguns tinham um fim misterioso, pois, caso algo no ritual fosse realizado inadequadamente, a alma deixava o corpo, mas não entrava no recipiente. Alguns acreditavam que a pessoa estava condenada à eternidade como um espírito errante, outros acreditavam que a alma estava presa em algum objeto aleatório, mas a única pessoa do mundo que saberia responder essa pergunta era a Gaiacú Louise, inventora do ritual. Ninguém jamais se importou em questioná-la.

          Dos rituais realizados com sucesso, algumas pessoas não conseguiam se adaptar, por mais que se esforçassem, à nova vida e acabavam ateando fogo no próprio corpo. Ter a cabeça completamente consumida pelas chamas parecia ser a única forma de matar um boneco de pano.

          De qualquer forma, não era uma escolha fácil e, por mais que as pessoas acreditassem que quando ficassem doentes, agiriam de acordo com o definido e anunciado para amigos e familiares, o peso da decisão real podia mudar tudo.

          Assim como a maioria da população brasileira, Letícia tinha sido criada por uma família cristã e, quando o ritual começou a ser praticado na universidade, ela tinha se posicionado contra a prática do ritual, chegando a cortar relações com conhecidos que optavam por continuar vivendo e, inclusive, chegando a ofender verbalmente uma amiga que se tornara boneca. Apesar de não acreditar que se tratasse de vender a alma para o diabo, como algumas pessoas de seu círculo diziam e, ela tinha certeza, seus pais também estariam dizendo, achava que aquelas almas dentro de objetos humanoides, confeccionados com tecido e espuma, vagando pelas ruas, eram aberrações e estavam corrompendo a ordem natural das coisas, driblando a morte. Jamais imaginaria que, poucos meses depois, ela seria uma dessas aberrações, vagando pelos corredores da universidade.

         Letícia escolhia uma roupa que valorizasse os enchimentos de seu busto quando escutou Brenda entrando no quarto. Perguntou sem se virar:

           - Você já decidiu tudo o que vai fazer antes de trocar de corpo?

          A amiga tirou as sandálias e se jogou na cama, enquanto respondia:

            - Na verdade, eu só tinha conseguido pensar em duas coisas, a primeira era concluir aquele artigo idiota, e nós já fizemos isso.

           - E a segunda?

           Letícia escutou um rangido na cama e olhou, pelo reflexo do espelho, o que a amiga fazia. Brenda tinha se deitado de bruços e escondia o rosto entre os braços cruzados, enquanto balançava as pernas para frente e para trás. A boneca não precisava de resposta. Ela riu. A universitária voltou a falar e a voz estava abafada pelos braços.

            - Amiga, não me julga!

            Ainda olhando pelo espelho, Letícia respondeu:

           - É claro que eu não julgo! Você acha que eu também não corri atrás? A minha vantagem é que eu tive bem mais gente pra escolher com quem. Você já tem alguém em mente?

            A cabeça de Brenda se ergueu suavemente, de forma que Letícia pudesse ver um único olho da amiga.

           - É ele ou é ela?

            Indignada com a pergunta, a mulher deixou de fazer manha, levantando e sentando de pernas e braços cruzados.

            - Você acha que eu cheguei até onde cheguei, sobrevivi esse tempo todo no meio do fim do mundo, pra nos últimos dias da existência desse meu corpinho lindo, eu desperdiçar isso tudo fornicando com macho?

            As duas riram por alguns segundos e Brenda aproveitou a oportunidade para desviar o rumo da conversa e deixar de ser o alvo das perguntas.

           - Lê, eu andei pensando em umas coisas e, eu sei que vai parecer oportuno ter pensado nisso justamente agora que sou eu quem está vivendo essa merda toda, mas... eu fui egoísta demais... desculpa...

          Tendo escolhido e vestido o top que julgara combinar com a calça de moletom que vestia, Letícia fechou a porta do guarda-roupa e se sentou na cama, também de pernas cruzadas, de frente para a amiga.

          - Tá tudo bem, eu sei que você não fez por mal... você sabe as coisas que eu disse pra Juliana quando ela apareceu como boneca? Você lembra como eu evitava o Emerson? Como eu fui uma escrota com todos eles?

          Brenda pegou a mão de pano e apertou com força.

          - Seus erros não justificam o meu. E tem mais uma coisa... você não dividia quarto com nenhum deles. O que eu fiz foi pesado. Me afastar e deixar você passar por tudo isso sozinha. Como eu pude fazer uma coisa dessas?

          Letícia respirou fundo. Em sua mente estava chorando, mas sem o corpo para manifestar os sentimentos, eles pareciam sempre mais amenos.

          - Não vou mentir pra você, Bre. Foi pesado e eu fiquei muito magoada quando você sumiu. Mas não precisa se justificar. Eu entendo tudo o que levou você a agir como agiu, mas você voltou.  Você está aqui e, como você também será uma boneca, linda e maravilhosa, daqui uns dias, deve estar cheia de dúvidas, aproveita e pergunta logo.

          Brenda enxugou as lágrimas e se jogou em cima da amiga, cujo corpo cedeu, molenga, sem oferecer a menor resistência. Enquanto esmagava Letícia com abraços fortes, perguntou:

            - Você me deixou morrendo de curiosidade, foi com ‘quens’?

            A boneca ria, tentando se soltar, mas seus braços se dobravam quando ela tentava empurrar a amiga:

           - Com ‘quens’ nada, me respeite, foi com um único ‘quem’, apesar de repetidamente.

          - Quem?

           - Ele mesmo, o de sempre...

           - Sério, amiga? Que sem graça... você sempre tem esse seu jeitinho de decepcionar as pessoas.

           Letícia deu um soco em Brenda, fazendo um ‘puf’ enquanto a mão atingia o ombro da amiga e se amassava. As duas riram, mas logo Brenda ficou séria.

          - Mas como é estar nesse corpo de pano? Como você sente as coisas?

           A boneca ponderou por alguns momentos. Não por não ter o que falar, mas por ter tanto o que falar e não saber por onde começar.

          - Você já perguntou pra alguém?

          - Não, nunca tive coragem.

          - Eu também não, então não sei se o como eu me sinto é como todos se sentem, mas vou dizer como é pra mim.

          - Tá bem.

          - Eu escuto como escutava antes, apesar de, como você vê, não ter orelhas, – e dizendo isso, abanou a cabeça de um lado para o outro – também sinto cheiro e enxergo normalmente. Eu não tenho como sentir gosto, por vários motivos, que eu vou dizer, mesmo você olhando pra minha cara e isso sendo óbvio. Minha boca é só um sorrisinho pintado no meu rosto e não se mexe nem quando eu falo, então, eu não posso colocar nada dentro dela. No entanto, eu tenho a estranha sensação de que se eu pegar uma faca e fizer um corte na minha cara pra enfiar um pedaço de comida, eu sentiria o gosto. Mas jamais faria.

          Brenda concordava com a cabeça. Por mais que a boneca tivesse dito que a pintura era óbvia, a universitária nunca tinha pensado que a boca da companheira de quarto era falsa. Era como se, de alguma forma, enquanto elas conversavam, ela visse a boca se mexendo. Mas agora, enquanto focava a sua atenção toda na boca, percebia que ela não se mexia em momento algum.

        - E você sente quando eu encosto em você? Você sente dor? Cócegas? Tesão?

        - Sim, mas é diferente. Eu sinto quando encosto em qualquer coisa, mas não é a mesma sensação de quando eu tinha o corpo. Não sei explicar, mas é como se tudo fosse macio, não eu. O chão parece macio, a parede parece macia, tudo, tudo. Eu vivo agora num mundo todo molinho. Sobre dor, até agora não senti, então não sei te dizer como vai ser. Mas eu sei que dá pra sentir dor.

        - Como?

        - Você lembra quando o Carlos desistiu e tacou fogo nele mesmo? Lembra como ele gritou?

         Ao mesmo tempo em que lembrava, Brenda apertou os olhos e balançou a cabeça, tentando afastar o pensamento. Sua voz saiu baixa:

         - Lembro sim.

         - Sobre cócegas, eu sinto normalmente. Tesão também, apesar de não ter nada, nem pintado, onde era pra ter.

         - Eu não acredito.

          - Acredite!

         - E você acha que dá pra gozar se esfregar bem?

          - Eu não ‘acho’.

          Brenda encarou o rosto de pano da amiga por alguns segundos, com os olhos semicerrados, como se estivesse sendo tapeada, mas soubesse disso.

         - Você não ‘acha’, por que você ‘sabe’?

         A boneca riu enquanto fazia um movimento de cabeça lento, para cima e para baixo. Brenda deu um grito histérico, misturado com uma gargalhada e arremessou um travesseiro na amiga, com força, derrubando-a da cama.

        - Sua sonsa! Devassa! Safada!

        Letícia se levantou do chão.

         - Eu tô falando e ficando com a impressão de que tô fazendo as coisas parecerem mais fáceis e agradáveis do que são. Mas talvez isso seja o trabalho da minha cabeça tentando me convencer de que as coisas não são tão ruins e que é possível viver assim. Mas saiba. Apesar de tudo, apesar do tanto que a gente tem falado besteira e se divertido juntas, não é fácil. Não é nada fácil olhar pro espelho e ver sempre essa mesma cara idiota sorrindo pra mim. Sorrindo mesmo quando eu sei que eu tô chorando. Sorrindo mesmo quando eu estou com ódio de não ter tido coragem de morrer e ter me trancado dentro dessa boneca estúpida.

            Quando Letícia terminou de falar, um silêncio pesado invadiu o quarto e lá ficou por alguns minutos, enquanto as amigas se encaravam, compartilhando de uma dor indizível.

            Com um suspiro alto, a boneca conseguiu quebrar o momento de melancolia. Olhou o relógio e constatou que já eram quase seis horas da tarde.

            - Eu preciso ir, tenho um compromisso logo mais! Desculpa o desabafo e aproveita essa sua noite de safadeza.

            Letícia saiu apressada. Precisava participar de uma reunião sobre a manutenção do alojamento e da universidade. Com a escassez de mãos hábeis, tudo parecia sujo e deteriorado e os sobreviventes estavam cada vez mais sobrecarregados. Os bonecos de pano não precisavam comer nem tomar banho, por isso se abstinham de tarefas relacionadas a buscar alimentos e a manutenção da bomba de água. Outro fator que tornava mais difícil a participação dos bonecos de pano era a dificuldade de adaptação motora que os impedia de realizar a maior parte das tarefas relacionadas com manutenção de equipamentos e limpeza. Mas com o número cada vez menor de corpos realmente humanos, os bonecos de pano eram convocados para ajudar como pudessem.

           Apesar da vontade de andar rápido, a boneca ainda não tinha naturalizado os pontos de equilíbrio do novo corpo e ela caminhava aos tropeços pelo corredor, sem querer admitir para si que ainda não estava pronta para tentar correr. Menos de dois metros à sua frente, outro boneco emergiu de uma das ramificações do corredor. Letícia se esforçou para diminuir o ritmo dos passos e no processo, acabou inclinando o corpo para frente mais do que deveria, o que resultou em três passos ainda mais rápidos que os anteriores e a inevitável colisão com o outro boneco.

           O impacto não era um problema, os corpos macios se chocaram sem a menor violência. A queda também não causaria nenhum desconforto, a menos que rolassem sobre alguma superfície molhada, pois molhar os corpos de pano era um grande inconveniente. Enquanto constatava, aliviada, ter caído no chão completamente seco, quando Letícia identificou o boneco com quem trombara, sentiu um arrepio gelado nas costas. Desde o dia em que, ainda em seu corpo humano e acreditando que não ficaria doente, insultara com palavras pesadas Emerson, um dos primeiros universitários a se submeter ao ritual, ela fazia o máximo possível para evitar aquele encontro. Mas agora isso seria impossível.

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