4. Emerson e Carlos

           Por ser um ambiente frequentado por pessoas com acesso amplo à informação e com capacidade intelectual para proceder de acordo com todas as exigências sanitárias, no início da propagação da superpeste, o ambiente acadêmico manteve-se em funcionamento. Quando a disseminação da doença se mostrou incontrolável, a universidade decidiu interromper as funções, mas era tarde demais para exigir que os estudantes abrigados nas moradias universitárias retornassem para a casa de seus familiares.

           Nem toda a arrogância e sentimento de superioridade do mundo acadêmico foram o suficiente para impedir que a peste passasse a frequentar a universidade. As medidas profiláticas se tornaram mais rígidas e o controle de zoonose começou a visitar residência por residência, cômodo por cômodo, recolhendo e sacrificando todos os animais domésticos, culpados por abrigar as pulgas que transmitiam a doença. Pois percebiam, tarde demais, que não se tratava apenas da mutação da bactéria responsável pela doença, o que tornara a transmissão da doença inexorável era a mutação conjunta de seu transmissor.

           Venenos mal aplicados e tratamentos interrompidos funcionavam como seletores naturais dos insetos mais resistentes e mais adaptáveis. Os mais fortes sobreviviam e procriavam, criando gerações e mais gerações de insetos capazes de sobreviver a quantidades imensas de veneno. Em contrapartida, conforme a taxa de natalidade diminuía entre seres humanos, o número de animais domésticos crescia. Cada casa abrigava mais pets que pessoas.

           Observar como fatos separados se encaixavam, tornando a peste uma sinfonia da destruição, contribuiu para que tomadas por um rompante de fé, as pessoas acreditassem estar vivendo o momento do arrebatamento. Jesus estava voltando, mas Carlos não acreditava em nada disso.

            O estudante de história não tinha nada contra nenhuma religião e costumava dizer que ‘acho que acredito em Deus, sei lá’, mas nunca tinha seguido nenhuma prática. Conhecia as religiões como grandes sistemas autoritários que, em algum momento da história, seus seguidores foram brutalizados por outro sistema tirânico, mas que haviam escapado e agora usavam esse fato como justificativa para seus frequentes massacres autoritários. Acreditava na ciência, mas essa também passava por seu filtro moral, capaz de relativizar qualquer informação, por mais precisa e acurada que fosse. Por isso, quando recebeu a notificação de que todos os animais domésticos deveriam ser levados ao Centro de Zoonose, considerou que seus quatro gatos estavam seguros dentro de casa e que não causariam risco a ninguém. Dois meses depois, quando a metade da população universitária já tinha falecido e o agente sanitário bateu em sua porta, Carlos ardia em febre e seus pets estavam infestados de pulgas.

            Seu amigo e colega de classe, Emerson, conhecendo a capacidade que Carlos tinha de ignorar regras quando não convinham, passou a evitá-lo desde os primeiros casos de contágio dentro da universidade. A ideia de uma doença capaz de exterminar toda a humanidade lhe assombrava desde que conhecera os trabalhos de um escritor do século XX. Na ficção de Stephen King, um vírus semelhante ao da gripe, mas com uma capacidade de mutação extremamente veloz, tinha exterminado noventa e nove por cento da população terrestre. Em sua imaginação a superpeste também seria capaz de tal feito.

             No entanto, a tecnologia tinha evoluído bastante desde o tempo em que King escrevia suas histórias de terror e, portanto, Emerson percebia que teriam muito mais conforto, mesmo que apenas uma em cada cem pessoas sobrevivesse. Os remanescentes não precisariam lidar com a falta de recursos básicos: Muito diferente do século XX, quando a energia era levada da fonte ao destino final por incontáveis quilômetros de cabos, passando por estações e transformadores, com a descoberta de métodos seguros e eficientes de controle de radiação e novas técnicas de obtenção de energia nuclear, esse recurso tinha se tornado inesgotável. Todos os equipamentos eram movidos por geradores nucleares. O historiador só conhecia postes de fios por fotografias; da mesma forma, a comunicação jamais seria interrompida, pois uma rede de satélites era responsável pelo bombardeio de rede wifi de qualidade em cada centímetro do planeta terra; O sistema de tratamento e distribuição de água era completamente automatizado e, no futuro, quando fosse necessária qualquer manutenção, os sobreviventes poderiam dividir as tarefas.

             Mesmo assim, as pessoas precisariam se organizar e se preparar para o pior. Tendo como objetivo principal a própria sobrevivência, mas também o bem estar das pessoas mais próximas, Emerson passou a recrutar voluntários para organizar uma sociedade pós-apocalíptica e, fato surpreende até para si, teve êxito. Estudantes e professores de diferentes áreas se encontravam com o propósito de trocar ideias e experiências na tentativa de conter a proliferação do inseto. Quando o ritual foi divulgado como uma alternativa à morte certa, foi justamente esse grupo que primeiro se preparou, tanto recolhendo e estocando os materiais necessários como encontrando e até mesmo treinando voluntários para a confecção dos bonecos e execução do ritual.

             Tendo em vista o tamanho de seu sucesso em garantir a sobrevivência de seus colegas, á única coisa que Emerson não tinha previsto eram aquelas picadas doloridas em seu tornozelo. Ele sabia o que aquilo significava e decidiu que não fazia sentido gastar nem um minuto em negação. Pelo tablet, avisou os amigos e voluntários que tinha sido infectado e foi para a enfermaria.

             Não imaginou que conseguiria sentir no peito um vazio maior do que o de saber que tinha feito tanto para sobreviver, mas que agora dependeria de um ritual mágico para continuar vivo, no entanto, andando pelos corredores da enfermaria, percebeu estar errado mais uma vez. À sua frente, um homem com cerca de um metro e setenta de altura e corpo robusto andava quase erguer os pés do chão, fazendo um barulho irritante com o atrito do chinelo no chão. Vestia uma bermuda larga de um time de basquete que descia até cobrir metade das panturrilhas e uma camiseta regata tão comprida quanto. O cabelo era louro escuro, levemente encaracolado e cobria seu pescoço. Aquela era a pior maneira de reencontrar seu grande amigo, Carlos.

            - Que merda, cara... – falou por entre os dentes.

             Reconhecendo a voz do amigo, Carlos se virou e, apesar de estar visivelmente abatido e febril, sorria quando respondeu:

            - Não acredito... não sei se eu fico feliz de te ver ou se acho uma bosta você também estar aqui.

            O vazio no peito de Emerson apertou, como se uma mão segurasse seu coração.

            - Parece que eu parei de falar contigo à toa, né?

             Carlos fez um sinal com a mão, pedindo para que o amigo não pensasse naquilo.

             - Deixa disso, cara. Me dá um abraço aqui! Não vou te deixar pior do que você já tá!

             Os amigos encostaram testa com testa e choraram de alívio, saudade e desespero.

            Nos dias que seguiram, os amigos resgataram a antiga cumplicidade como se nunca tivessem se afastado, mas quando Emerson descobriu que Carlos tinha optado por morrer naturalmente, não conseguiu entender e não queria aceitar. O amigo não tinha impedimentos religiosos, mas tinha medo. Quando tentavam conversar sobre o assunto, ele fazia alguma brincadeira, como dizendo que as pessoas tinham passado a vida toda insistindo para que ele amasse o próprio corpo e, agora que ele amava a si mesmo, tentavam convencer a abandoná-lo e ir para outro. Mas as brincadeiras não eram o suficiente para aliviar a tensão.

            Desrespeitando a vontade do amigo e aproveitando que, com o avanço da doença, Carlos passava a maior parte do tempo trancado em seu quarto e com as luzes apagadas, o amigo aproveitou que tomava as providencias para a confecção de seu próprio boneco de pano e organizou tudo para que outro mais robusto também fosse providenciado.

            Emerson tinha pouco mais de dois metros de altura e, apesar de não ser franzino, parecia um tanto desajeitado. Foi lendo uma tradução de “Guerra e Paz” um antiquíssimo livro de León Tolstoi, que fazia uma abordagem interessante sobre a situação da Rússia quando invadida pela França, nas guerras napoleônicas, que o historiador descobriu a existência de uma palavra que o descrevia perfeitamente: trangalhadanças, que significa precisamente “pessoa grande e desajeitada”. Passou a usar essa palavra como um elemento de identificação. Foi na mesma edição que encontrou a palavra reboludo, significando “de formato arredondado”, que passou a aplicar toda vez que queria adjetivar seu amigo Carlos. Foi por culpa do tradutor de Guerra e Paz que Emerson cometeu um dos piores erros de sua vida. Conversando com os artesãos que fariam os bonecos de pano, o historiador insistiu para que tentassem preservar essas características de seus corpos de carne e osso, fazia questão de continuar, mesmo enquanto boneco, sendo um trangalhadanças, assim como insistia para que o boneco de Carlos fosse reboludo.

            Poucos rituais tinham sido feitos até o momento e, portanto, ele não tinha como prever as dificuldades de locomoção e o quão precária essa escolha tornaria a sua vida e a de seu amigo, que até então, nem tinha aceitado participar do ritual.

            Em certo nível, a previsão de Emerson estava correta. Quando a doença começou a se agravar e a dor dos tumores nas axilas e virilha era sentida até mesmo enquanto Carlos dormia, ele passou a reconsiderar a possibilidade de se tornar um boneco e decidiu conversar com alguém que já tivesse passado pelo ritual.

            Quando Emerson perguntou o que o amigo tinha achado da conversa, a resposta de Carlos foi:

            - Bom, ele deixou bem claro que os pontos negativos são muitos, mas tipo muitos mesmo, uma porrada.

            - Mas e os positivos?

            - Pelo que entendi, o ponto positivo é que ele tá vivo.

            Os amigos sorriram, mais preocupados do que aliviados.

            - Pra mim, vivo parece bom o suficiente.

            - Eu não sei... eu vou participar do ritual... mas se eu perceber que não é o que esperava, eu sempre posso desistir, né? Eu meio que já vou estar fazendo hora-extra...

            Na semana seguinte, quando Emerson andava desajeitadamente pelo pátio da universidade, amaldiçoando a si mesmo por ter requisitado a confecção de um corpo tão pouco funcional, que ele passava mais tempo caindo no chão e se levantando do que caminhando, quando viu a coluna de fumaça negra que se erguia na direção do jardim, sentiu um aperto forte no peito e as palavras do amigo ecoaram em sua memória: eu sempre posso desistir, né?.

            Ele sabia que Carlos não estava se adaptando e grande parte do motivo era culpa sua. O corpo reboludo era ainda menos funcional que o corpo trangalhadanças. O peso do enchimento da circunferência do tronco do boneco era maior do que as pernas podiam suportar e, quando Carlos tentava andar sem apoio, as pernas simplesmente se dobravam molemente e ele caia. Emerson já tinha pedido aos artesãos que removessem o excesso de enchimento e tecido do amigo, e eles tinham concordado, mas o amigo tinha medo e estava relutante.

            Fosse apenas a falta de mobilidade, ele não estaria tão apreensivo. Sabia que aos poucos conseguiriam encontrar maneiras de superar essas dificuldades e tornar seus corpos funcionais. Mas havia outro incômodo. Bonecos ainda eram extremamente novos e raros e, como toda novidade, era capaz de criar emoções fortes nas pessoas. Infelizmente o medo e a raiva eram os sentimentos mais comuns. Todos os dias, em várias ocasiões, os bonecos eram hostilizados enquanto andavam pelo campus e Carlos não estava lidando bem com isso.

Por isso, Emerson sabia que o amigo estava ateando fogo a si mesmo e tentou correr. Inútil. Tentar correr com aquele corpo era inútil e o historiador caiu. A coluna de fumaça se adensava e o historiador estava impotente e perdia as esperanças de salvar o amigo quando escutou vozes familiares atrás de si.

            Um universitário de camisa polo vermelha tijolo, cabelo castanho aparado rente à cabeça, óculos quadrados, rosto barbeado, calça jeans e sapatênis conversava com uma estudante de cabelo black power ornado por uma flor branca, óculos, camiseta, calça jeans e sapato social. Falavam curiosos, especulando sobre o que poderia estar causando a fumaça.

            Emerson reconheceu a dupla, eram estudantes de psicologia que compareciam a quase todas as reuniões e sempre se mostravam dispostos e ativos na divisão das tarefas. O homem se chamava Rogério, a mulher ele não sabia. Quando, ainda tentando se levantar, chamou a atenção dos dois, acabou por assustá-los. Como olhavam para o horizonte, não tinham percebido o boneco caído.

            - Desculpa! Não quis assustar vocês! Mas eu preciso de ajuda! Eu acho que a fumaça é Carlos e ele tá se matando!

            A estudante, chamada Margarida, como Emerson descobriu depois, não pensou duas vezes e, com ímpeto, resgatou o boneco do chão, jogando-o em suas costas e disparou na direção da coluna de fumaça.

            Ainda não conseguiam ver a origem da nuvem negra quando começaram a escutar os gritos de desespero. Outros estudantes se aproximavam correndo.

            Quando finalmente chegaram ao gramado onde um boneco ardia em chamas, muitas outras pessoas assistiam ao espetáculo sem saber como reagir. Não havia nenhum ponto de água próximo, mas mesmo que houvesse, provavelmente, ninguém teria a presença de espírito necessária para intervir, estavam todos horrorizados.

            Margarida colocou o historiador no chão e ele, sem pensar nas consequências, se projetou na direção do amigo, tentando abafar as chamas com seu próprio corpo. O corpo se desfez, era tarde demais para Carlos. Os gritos de dor emudeceram, mas o fogo ainda estava vivo e se espalhou pelo corpo de Emerson.

            Percebendo o que acontecia, Rogério, que chegara apenas alguns segundos depois de Margarida, pegou uma das pernas de Emerson e o arremessou para longe do foco do fogo, tirou a camisa polo vermelha tijolo e com a precisão e frieza de um bombeiro, usou a própria roupa para apagar o fogo que se espalhava pelo boneco.

            Mesmo com um dos braços e parte do tronco destruído, deitado na grama e olhando para o céu, a dor mais intensa que Emerson sentia era a mistura do pesar por ter perdido o amigo com o remorso por ter pedido corpos tão pouco funcionais.

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