|2| A MEDIADORA

A casa da fazenda Travis era grande, de madeira, cheia de cômodos e quartos, e pelo que Evangeline sabia, uma vez sua mãe já tencionara transformá-la em uma hospedaria. Mas depois de perceber o quanto aquilo os deixaria próximos aos humanos e as probabilidades de atrair demasiada e desnecessária atenção para si próprios, a ideia fora posta de lado. Eram uma família com tradições, momentos, e certas atitudes diferentes. A última coisa que precisavam, era serem reprovados no mundo terreno também, o que fazia a família sempre procurar discrição.

Mas Evangeline sabia que em algum tempo remoto, a casa já havia sido uma espécie de estalagem, e que a única dona morrera em uma briga entre dois grupos de nômades rivais que se instalaram na casa no mesmo dia. E ela sabia, por que conhecia Judith Masterkey.

Ou melhor, o fantasma de Judith, que vivia vagando pela casa, sempre parecendo à procura de algo. Esse, era o único poder que Evangeline havia apresentado até agora: o poder Mediador, o símbolo em forma de foice que marcava o lado externo de seu pulso. Era incomum para uma dama ter pulsos marcados com símbolos, o que fazia Evangeline ter de andar de luvas quase o tempo todo. Assim como se tornara adepta da mania de puxar sempre o cabelo pelo lado direito do pescoço, onde uma marca de nascença cor de ameixa marcava a pele a baixo da orelha. Era difícil ser uma Falange no mundo terreno, e odiava o fato de ter que andar sempre se escondendo por baixo do cabelo e das luvas.

E por ser uma Mediadora, não estranhou quando a figura quase translúcida de Judith atravessou seu caminho em meio ao corredor escuro da casa. Já era noite, e Evangeline esperou os pais se recolherem para poder sair do quarto e ir em segredo até o quarto de Ravenna, mas sua saída sigilosa acabava de ser flagrada pelo espírito apertado dentro de um vestido marrom em fiapos. A cabeleira branca de Judith também escapava em fios múltiplos de debaixo do lenço que uma vez, Evangeline julgava ter sido branco. Mas que agora, apresentava uma cor acinzentada e desbotada pelo tempo. O fantasma de Judith já devia ter mais de cem anos, e Evangeline nunca chegou a descobrir o que prendia a velha camareira naquele mundo. Talvez nem mesmo Judith soubesse.

Seus olhos transparentes como vidro brilharam com o reflexo da vela que Evangeline segurava para clarear o caminho, necessitando de apenas um pouco de luz, já que seus olhos de Falange eram bem adaptados à escuridão.

― Hum, o que a Srta Travis faz caminhando pelos corredores escuros da Mansão á essas horas da noite?

Evangeline soltou a barra da saia que estivera segurando, retirando os cabelos que caíram a frente dos olhos.

― Judith, se eu quisesse que meus pais soubessem, eu não teria saído em silêncio. ― Evangeline cochichou em meio a escuridão, temendo ser ouvida por seus pais. Assim como a visão aguçada, Falanges também tinham uma boa audição, assim como todos os demais sentidos. ― Então, se me der licença, preciso chegar ao quarto de Ravenna antes que ela também se deite.

O velho espírito entortou a cabeça leve em sua direção, com um ar claro de repreensão emanando em ondas geladas de seu ser.

― Então não quer que o Mestre Robert saiba... entendo. ― Judith flutua para mais próximo de Evangeline ― Mas se eu fosse a Srta, deixaria em paz essa história descabeçada de permitir que a Srta Ravenna se case com este pobre terreno. A Srta bem sabe que nada de bom resultará disso.

Evangeline recuou. Não gostava do cheiro de flores e velas queimadas que os espíritos exalavam. Fora que o ar a volta de fantasmas parecia ser sempre gélido e apavorantemente frio, distante e inalcançável.

― Não seja um fantasma intrometido, Judith! Já viveu sua vida, agora deixe que Ravenna viva a sua!

O fantasma de Judith tremeluziu por alguns segundos, enquanto a velha se afastava.

― Meu pretérito é sempre ajudar a família Travis, Srta Evangeline. ― ela confidenciou com um ar sinistro, desaparecendo logo em seguida, deixando apenas uma bruma clara no lugar onde sua teofania estivera poucos segundos antes. ― Sempre ajudar...

Evangeline ficou parada no meio do corredor por alguns minutos ainda, mesmo depois de ter sido deixada pelo fantasma de Judith. A questão era que se perguntava por quais motivos Judith decidira a alertar. Apesar de sempre saber das coisas, regalia de ser um fantasma e poder estar em todos os lugares sem ser visto, Judith dificilmente opinava na vida da família de Evangeline. Apenas se contentava em andar pela casa, observando os movimentos em silêncio. Se Judith não fosse tão estranha e tão equivocada, Evangeline pensava que as duas poderiam até ser amigas. Como era o caso do fantasma de Janine Craig, a moça que havia sido assassinada perto das margens do lago Head Nick. As duas haviam se conhecido em uma das caminhadas de Evangeline perto da propriedade dos Fratersons, a procura de alvos para praticar suas habilidades com arco e flecha, o que se provou não correr no sangue da Falange.

O fantasma de Janine ficou animado com a ideia de poder ser visto por alguém, e desde então, havia importunado tanto Evangeline com perguntas, a ponto de ambas se tornarem boas amigas e confidentes, apesar que de um modo meio estranho. O que prendia Janine naquele mundo, era exatamente seu assassino. Janine queria vê-lo morrer e pagar para poder seguir em frente, e Evangeline já havia se oferecido para resolver o problema, mas não fazia ideia de onde este homem poderia estar.

Mas Judith estava longe de ter a mesma animação de Janine com Mediadores, e isso fazia com que Evangeline a descartasse com uma possível amiga.

Fosse como fosse, prometera a George que entregaria aquela carta, e era exatamente isso que iria fazer. As decisões de Ravenna, eram de sua conta e risco, e Evangeline não apoiava, apenas cumpria sua parte no trato. A parte de que entregaria todas as cartas a Ravenna desde esta não revelasse aos seus pais a forma árdua com a qual ela vinha treinado todo o tipo de luta. Apesar de tudo, seus pais preferiam que ela se comportasse como as outras moças das fazendas vizinhas, visando sempre a discrição do nome Travis, mas Evangeline sempre teve problemas com comportamento. Desde muito criança, já andava correndo pelos campos com George a tiracolo, e sua figura rebelde já havia sido diversas vezes comparada a Catherine Earnshaw, a heroína do seu livro preferido. Apesar de nunca ter dito nada, gostava de ser comparada ao espírito livre de Catherine, apesar de não entender que tipos de forças intercadentes a direcionava com tanta devoção e ardor á Heathcliff. Talvez, aquela fosse a única diferença entre ela e a protagonista de O Morro dos Ventos Uivantes.

O quarto de Ravenna estava silencioso, e Evangeline abriu a porta apenas encostada com cuidado, se deparando com a figura alta da irmã diante da penteadeira. Com os cabelos duas tonalidades de ruivo mais claro que os de Evangeline soltos, ela se encontrava dentro do roupão cashmere, um claro sinal que já estava pronta para se deitar.

― Oh, céus... achava que já tivesse ido dormir... ― Evangeline reclamou, apagando a vela e deslizando o capuz do manto sobre a cabeça, fechando a porta logo em seguida.

― E eu achava que você fosse aparecer mais cedo. Sabia que tinha algo para mim ao perceber sua expressão na sala de jantar. ― Ravenna também reclamou, girando sua cadeira em direção a Evangeline.

― Bem, tive alguns empecilhos pelo caminho.

― Deixe-me adivinhar: Judith?

― Não teria acertado na primeira se esse fosse um jogo de adivinhações... ― Evangeline jogou o manto sobre a cama de Ravenna, se sentando na ponta do colchão em seguida. Gostava do ar clássico que o quarto da irmã exalava, com todas as coisas no lugar e um bonito conjunto de tapeçaria sempre limpo no chão. Intimamente, se perguntava se isso significava ser a mais velha. Evangeline tinha muita dificuldade em manter as coisas no lugar sempre, e se perguntava por que seus pais nunca se interessaram em contratar criados.

― E o que Judith queria dessa vez? Mais alguma novidade dos arredores da Vila dos Tordos novamente? Ou apenas as equivocações de sempre? Judith me parece ser muito recatada e contida, mas tenho certeza de que ela deve fazer transações com o Mercado Negro todas as noites...

― Deixe aquela velha em paz... ― Evangeline se limitou a dar de ombros, retirando o envelope pardo de dentro do lenço que trazia no pescoço e o oferecendo a Ravenna. ― Aliás, isso por acaso estava endereçado a você.

Os olhos de um verde escuro de Ravenna brilharam em direção ao envelope, o arrebatando das mãos de Evangeline e examinando cada uma de suas pontas logo em seguida, como se quisesse se certificar de que ela seria a primeira a abri-lo.

― Papai e mamãe não viram isto, certo?

― E desde quando eu me deixo flagrar por papai e mamãe? ― Evangeline rolou os olhos, tentando entender a fonte de tanto contentamento por parte de Ravenna. ― Imagino que Louis tenha que começar a criar um pouco de coragem se deseja bater na porta dos Travis um dia para pedir a mão da filha mais velha em casamento, do contrário... esqueça de um dia se chamar Ravenna Maddox.

Ravenna bateu com o envelope na lateral da cabeça de Evangeline, a repreendendo com um olhar divertido.

― Não fale assim de meu futuro noivo! Não se esqueça de que ainda posso contar aos nossos pais de seus treinamentos...

Evangeline não achou graça.

― É claro que não contaria. Quem mais lhe entregaria a correspondência de Louis? ― Evangeline tentou sorrir, porém, as palavras de Judith anda não lhe saíam da mente, e vez após outra, a imagem do velho espírito lhe escapava na mente. O que foi o suficiente para Ravenna perceber.

Ravenna era uma Sibila, e conseguia ler expressões tão facilmente quanto Evangeline conseguia ler seus livros. Era difícil esconder qualquer coisa da irmã, o que a fazia sempre evitá-la sempre que tinha algo que não queria que Ravenna soubesse. E era esse o caso agora. Porém, não conseguira desviar seus olhos a tempo, e Ravenna lia-os como se estivesse lendo um romance cativante e intrigante do qual não conseguia desgrudar o olhar.

― Qual o problema, Evangeline?

Evangeline suspirou aliviada quando Ravenna a libertou do transe, mas desviar o olhar era inútil agora, de forma que ela se limitou a suspirar, cruzando os braços a cima do peito desprovido de marcas.

― Você sabe. Essa história está me incomodando. Você e Louis... um possível casamento. Ainda não sei o que pensar sobre isso.

Ravenna aproximou a cadeira de Evangeline, disposta a ouvir, como sempre fazia. Ela era uma ouvinte incisiva e passiva quanto às opiniões sempre fortes da irmã, e no papel de irmã mais velha, sempre se oferecia para dar conselhos, apresentar saídas ou semente conversar.

― E qual é, exatamente o problema? Você não quer que eu saia de casa? Ou acha que sou muito nova?

― Acho que vocês dois são muito diferentes. ― Evangeline disse por fim, atraindo toda a atenção da irmã, mas Evangeline não permitiu que Ravenna falasse. Não antes de dizer o que precisava. ― Você sabe muito bem disso, Ravenna. E se vocês se casarem? Acha que vai poder esconder de Louis para sempre o que você é? O que acha que vai acontecer quando ele perceber que você está envelhecendo muito mais lentamente que ele? O que as pessoas irão dizer? O que ele irá dizer quando descobrir o que você é?

Ravenna não denotou nada mais que compreensão em sua expressão.

― George não parece ter problemas com isso.

― George é meu amigo. ― Evangeline a lembrou, com certo furor contido na voz baixa.

― E Louis me ama. Tenho certeza que ele vai aceitar.

― E quanto ao resto? E quanto a filhos? Nunca ouvi falar nada sobre mesclagem dos sangues. E nosso sangue é suficientemente forte para fazer com que uma criança humana nasça morta.

Pela primeira vez, Ravenna pareceu incomodada com a colocação. Ela era boa em ler expressões, mas não era muito habilidosa em disfarçar a sua. Colocando uma mecha de cabelo solto atrás da orelha, ela baixou os olhos para a escova de cabelos no colo.

― Tenho certeza que poderemos dar um jeito. Podemos apenas não ter filhos.

― Acha que poderá negar herdeiros a Louis?

― Bem, então poderemos adotar.

Evangeline parecia perplexa. Pela primeira vez, sentia a intensidade do significado da preocupação de Judith. A ideia era realmente descabeçada.

― Escute, Evangeline. ― Ravenna chamou sua atenção de repente, e seus olhos verde musgo exalavam seriedade ao firmar o olhar sobre ela ― Você sabe que estamos dizimados a viver no mundo terreno. Acha que eu tenho possibilidades de encontrar outra Falange que queria casar comigo depois que nosso nome foi riscado dos Registros? Se eu fosse você, me preocuparia em me acostumar com isso, por que um dia, você também irá se casar.

Evangeline torceu a boca em sua direção.

― Eu não vou me casar. Não preciso de um casamento! Apenas preciso de Élesmer e um Fightwade para cortar com ela.

Ravenna revirou os olhos, o que sempre acontecia quando Evangeline citava o nome da família que os dizimara.

― Você não é mais criança, Evangeline, então apenas esqueça. Esqueça os Fightwade, esqueça Miriad, esqueça até mesmo que é uma Falange. Você sabe que agora, somos menos que os terrenos, e não há nada que possamos fazer sobre isso!

E Evangeline teria dito algo, se não tivesse percebido a pequena lágrima brilhante que transbordou da veirada dos olhos de Ravenna, que a puxou em um abraço apertado.

― Apesar de tudo, agradeço pelo exílio, por que amo Louis, e estaria disposta a qualquer coisa por ele... ― Ravenna soluçou em seu ouvido, e tudo que Evangeline pode fazer foi afagar as costas da irmã. ― Talvez você não entenda o amor agora Evangeline, mas tenho certeza de que um dia, vai compreender a força que ele tem. A força de construir, e a força de destruir também...

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