A ama de sangue
A ama de sangue
Por: Condessa
Luto

Nem morta eu iria explicar a um doutor da ciência e estatística que senti sair de mim linhas de energia verde neon, eu vim aqui pegar uma receita, e não ser internada em um manicômio.  

— É claro que é possível ter alucinações, e até pesadelos extremamente realistas quando perdemos um ente querido, é isso que tem causado a insônia?   — não olho nos olhos dele, psicólogos sabem quando estamos mentindo? para o meu bem espero que não.    Forço as costas no sofá e inclino a poltrona para trás, evitando que ele me encare. Penso  naquele dia enquanto inspiro forte, agora, encarando o teto de gesso. Toda semana que venho para nossa sessão não consigo deixar de lembrar o quanto  essa sala se parece com o ambiente da enfermaria. Branca e sem vida, sim, isso soava familiar.

Doutor Torres pigarreou antes de continuar. 

— Com todo esse diálogo vou ter que suspender nossas seções  —  repete o que me diz em toda sessão, rindo de mim e tomando nota.    Psicologia inversa é meio que ultrapassada, mesmo assim é como dizem: panela velha faz comida boa.  

Olho de soslaio para o bloco de notas com muita curiosidade, daria tudo para ser uma mosquinha e ver o que está escrito lá.  

—  Sou uma órfã conformada —  digo amassando  o espaldar da poltrona  — Não fico me lamentando por isso — junto as mãos no peito e continuo. — O que me incomoda é  não saber a razão, o porquê.   É frustrante  — apesar de ter se passado  anos, ainda lembro daquele dia nitidamente, o universo achou eu ainda não estava em completa miséria e resolveu remediar isso.

Foi  a manhã que as marcas  pararam de crescer, no mesmo dia  que ele se foi. Decido me abrir e contar o que aconteceu, não há nada a perder e talvez seja bom derramar esse vaso transbordando. 

                               🇧🇷

Arregaço a manga da minha camiseta me virando de lado, olho para o espelho do banheiro avaliando as marcas, continuavam as mesmas de uma semana atrás, não crescendo nesses cinco dias. Minhas veias são visíveis por todo meu tronco com a tonalidade preta, profundamente aparente, poderia facilmente ser confundida com uma tatuagem, se não crescesse gradativamente com o passar dos anos.   E agora já estava começando a tomar conta do meu antebraço.

Meu sangue é normal, pelo menos no sentido científico, o que torna essas coisas em mim um enorme ponto de interrogação. Ninguém descobriu  o que era e isso me deixava apavorada. Tudo no meu organismo estava funcionando normalmente, exceto pelo cansaço repentino de vez em quando.  

 Então, por que essas malditas marcas continuavam a se espalhar? Deixando-me cadavérica dia após dia? Minha pele, leitosa e pálida, tão pálida quanto um cadáver, não ajudava em nada, só enfatizava-as mais. Suspiro, agora encarando meu rosto, profundas olheiras marrons adornavam meus olhos, não saber se acordaria no dia seguinte, por vezes me tirava o sono. "Pode não ser nada", as palavras do doutor soavam na minha mente. Esse "pode" não me tranquilizava nem um pouco. 

Eu não sou idiota, esse não era um orfanato comum, as pessoas ao meu redor estavam doentes, doenças mentais, terminais e as que eram como eu, sem cura e sem diagnóstico. 

Alguém bateu na porta do banheiro me trazendo ao presente, algumas dobradiças que sustentavam a porta de madeira estavam enferrujadas, fazendo um barulho irritante quanto puxei a maçaneta para sair.  Esse ranger me dá um tique terrível.

Gabriel me recebe com um sorriso amigável no rosto, tento retribuir ignorando quando uma tontura me atinge, vários contra "V" do corredor dançam na minha cabeça. Cambaleio  alguns passos, ele me ampara antes que eu caia no piso queimado, o som dos livros que ele segurava ecoa no ambiente, ele os soltou para me apanhar.

— Eu estou bem, não precisa se preocupar, só estou um pouco cansada. Vamos voltar para sala — tranquilizo-o  tentando me sustentar em pé. Ele semicerrou os olhos em desaprovação.

— Sim, vamos voltar. Assim você desmaia e passa mais duas semanas isolada na enfermaria. Certo? — Balanço a cabeça negando, arg, aquele lugar era uma pedra no meu sapato.  

 — Descansa o resto do dia, amanhã vai estar melhor —  sem forças para discutir apenas concordei com  ele.

Ele flexiona os joelhos, se abaixa um pouco e me ergue, arfo surpresa, ele nunca esteve tão  próximo de mim. Se eu não sentisse que poderia desmaiar poderia ter aproveitado mais.   

Sem a menor cerimônia me aninho em seus braços e ele começa a caminhar normalmente, olho ao redor me certificando de estarmos sozinhos, os corredores estavam silenciosos e vazios, todos estavam nas salas de aula, ou enfermaria, rezo para que ninguém queira usar o banheiro ou beber água, morreria de vergonha antes mesmos que essas coisas na minha pele  me matassem.

Respiro aliviada depois da varredura completa, apoio minha mão no seu tórax para me dar  estabilidade, com o andar, seus músculos contraindo-se por baixo da vestimenta, a cada passo roçando contra minha pele. Essa sensação, sentir que estou sendo cuidada, é tão boa, Já tinha me esquecido de como é reconfortante.

Os olhos dele estão concentrados no caminho, os cabelos cortados baixinho, norma da casa, seus fios são loiros, quase brancos, é estranho que eu o ache parecido com um lobo, mas ele me lembra um, de qualquer forma, os caninos domésticos  são muito dóceis para a comparação e os felinos ariscos demais, ele é apenas um pouco dos dois. 

Principalmente os olhos, eles são de um azul pálido, e, às vezes, posso jurar que ficam amber,  pareço estar olhando para um céu coberto por nuvens alvas no verão. Exatamente como lobos siberianos.

Oh! Fungo, aproximando o nariz de sua camisa,  definitivamente ele tem um cheiro peculiar, perto dele não me sinto doente, ele cheira a natureza, vento úmido,   e relva  da manhã. Pare de ter esses pensamentos estúpidos Maria, me repreendo.

Sim, você está certa, eu tenho uma queda  por Gabriel Santa Bárbara, mas eu sabia o meu lugar e que eu nascesse de novo ele olharia pra mim desse jeito.  Nós éramos bons amigos.

O peso nas minhas pálpebras me impede de aproveitar ao máximo nosso  momento juntos, eu apago lentamente nos braços dele, tendo um gostinho da natureza me envolvendo.  

                                       🇧🇷

Desperto mais disposta, viro de lado na minha cama, a sensação de ter dormido o dia inteiro me dá vigor e disposição para levantar. As aulas já haviam terminado, algumas meninas estavam por ali, no dormitório, conversando. Uma conferida rápida no relógio de parede me alivia, dormi apenas duas horas, minhas recaídas geralmente me rendem todo o dia para repor as forças.

Sorrio boba, lembrando de ser carregada. 

—  Como se sente? Se ele tentou alguma coisa quando estava desacordada... eu quebro as pernas dele e... — Ester estava na cama dela, que era ao lado da minha. 

Ela fecha o livro que está lendo e se levanta, caminhando de um lado para o outro, falando sem parar em mil e uma maneiras de matar Gabriel.  De fato, ele tem uma fama desagradável em Santa Barbara, algumas noites  meninas desapareciam e só voltavam de manhã, antes das aulas começarem, de cabelos molhados e lábios inchados, de qualquer forma ele não obrigou nenhuma delas a sair com ele, e pelos sorrisinhos bobos, em seus rostos quando voltavam para o dormitório, nenhuma delas foi forçada a nada.

— Estou melhor, juro. Como você sabe quem me…  — pergunto levantando as sobrancelhas.

— Ele espalhou aos quatro ventos, sério Maria, como não vê o que está na sua cara? Quer ser mais uma na listinha dele? — Ester murmura, chateada. Bufo, esses dois se merecem. 

— Errado não estava, quer dizer, fizemos sexo nos dois minutos que ele saiu da sala e me trouxe aqui . Nossa! Como transamos — reviro os olhos, Gabriel deve ter avisado nossa professora que eu  não estava me sentindo bem, e por isso  me acompanhou até o dormitório feminino. 

Sorrio da carranca de Ester, eu e Gabriel estávamos próximos, cotidianamente éramos vistos juntos, qualquer um veria que entre nós só havia amizade. Não nego, ele era lindo, porém não sou tão ingênua de pensar que iria querer algo comigo, a pior das aberrações  de todo o complexo, nunca nessa vida.

Ponho os pés para fora da cama curtindo a sensação de frio do piso.

— Não estou brincando! Apenas me preocupo contigo. Ele  é um galinha!  Não me surpreenderia que você fosse só mais uma — escuto Ester falar, decido ficar quieta, com ela nenhum argumento era válido.

Gabriel  não gostava de grude e odiava quando  começavam a tratá-lo como se ele fosse um  príncipe encantado montado em um cavalo branco. Estava mais para um cavaleiro solitário e triste, assim como todas as crianças nesse lugar esquecido por Deus. 

                                      🇧🇷

— Se eu  soubesse que seria nosso último dia, poderia ter aproveitado mais, me esforçado para ficar acordada, poderia... —  não finalizo a frase, parando  para me recompor. As pessoas sorriem para você, se importam, e no próximo  minuto se vão  para sempre.  — como de costume, jantamos e  nos recolhemos para  dormir, no outro dia, ele não acordou mais.

Fecho os olhos lembrando do seu rosto, Gabi vivia constantemente  zangado por eu me esforçar demais, sinto saudades do seu olhar atento. Me vigiando e repreendendo todo o tempo. Continuo falando:

— O que me deixa  triste é que ele se esforçava muito para os outros estarem bem, em nenhum momento se queixou de dor, ou reclamou, ele ficou com tudo para si. Sozinho —  aquele bastardo.

—  Está culpando-o —  Não foi uma pergunta, foi uma afirmação.

—  Ele foi egoísta carregando todo esse peso sozinho. Não consigo esquecer, dói que ele não tenha confiado em mim quando eu derramei tudo  em cima dele —  divago  lembrando de todos os momentos que o merdinha me ouvia dizer que eu achava que morreria logo e ele deveria cuidar de Ester para mim, quando se está um lugar que fede a morte é melhor se precaver.  

Senhor Torres faz anotações no seu bloco de notas. Por fim, faz  a pergunta de um bilhão de dólares:

—  Essas lembranças que te dão insônia?

—  Sim —  Não consigo contar mais. Nossa sessão finalmente termina, mais uma hora nesse lugar me faria quebrar aquele maldito relógio de parede, estava começando a me irritar com o tic-tac dos ponteiros.

—  Semana que vem, no mesmo horário? — concordo acenando com a  cabeça. Nós levantamos e ele me entrega a receita.

Consegui o que queria, algo bem forte, só me dopando para dormir em paz.  

                                    🇧🇷

Naquela hora desejei que Gabriel voltasse à vida, queria-o ao nosso lado para sempre, ele e Ester eram tudo que eu tinha, minha única família. Não podia ficar sem ele. Aperto os punhos com toda minha força. Algo cresce dentro de mim, sinto pura  energia revirar minhas entranhas, minhas marcas vibram no meu corpo. Era como ter uma mini descarga elétrica. 

Eu não vou perdê-lo, não posso! 

O saco preto que cobria seu corpo era tão impessoal e opaco, precisou de muita força de vontade para impedi-los de levar ele.  A negação  gritando tão alto que me imaginei sendo engolida pela terra. 

Suor fora do comum começou a molhar meu corpo, principalmente nos lugares que as linhas negras estavam em abundância, ardendo e queimando, parece que todo meu corpo foi mergulhado em um recipiente com pimenta e meu paladar não aguenta o quão  picante é. Eu não ligo, minha pele queimando não é nada comparado  com as pontadas no meu peito quando os socorristas o colocam na ambulância.  E, de repente, a queimação na minha pele não está mais lá.

  Fumaça verde saiu de mim, várias  linhas finas  em neon   voando na direção de Gabriel. Parecia que meus neurônios simplesmente saíram do meu cérebro e foram buscá-lo de volta.

Por anos pensei que todo aquele alvoroço na frente de Santa Bárbara  não me deixou louca, que não foi trauma, ou choque por perder alguém querido, que algo saiu de mim daquele dia, a ambulância se foi, que a fumaça verde conseguiu chegar ao seu corpo para logo após dissipar-se.

Senti que poderia trazê-lo em pé e ver e vê-lo sorrindo novamente, que, de alguma forma, mesmo sabendo ser impossível, poderia tê-lo feito voltar a vida, mas não consegui, eu o deixei escapar por entre meus dedos.

A culpa me deixou louca.  

Esse era o motivo das noites mal dormidas, o motivo real para me consultar, só assim pegaria uma receita. Me dopando dormiria melhor. Sem mais olhares âmbar me perseguindo nos sonhos. Sem mais incertezas, apenas dormir e sonhar em paz.

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