Prólogo: Folie à Deux - II

Naquela noite, Leon foi embora com o caderno carregado de anotações e a cabeça cheia de idealizações. Tínhamos razões para nos vermos outras vezes, e, sem que ao menos pensássemos nelas, assim fizemos.

Em sua terceira visita à minha casa, no final de maio, trouxe com ele uma porção de materiais: cartolina, caixas de papelão, canetas hidrográficas, blocos de post-it, fita adesiva e alfinetes. Enquanto ia tirando tudo das duas mochilas que carregava, eu questionava se aquilo já não era exagero.

— Ideias são só ideias até que eu possa tocar nelas — explicou.

E, durante horas, criamos um trabalhoso outline. No início, tudo era uma bagunça, e eu só conseguia pensar no tempo que me custaria limpar os restos picotados de papelão que voavam para baixo dos móveis. Depois, comecei a ver forma naqueles pensamentos revoltos que, até então, apenas anotávamos ou dizíamos em voz alta; eles se materializavam.

Leon criou um esquema: prendeu três fios de barbante de uma parede a outra com grossas camadas de fita; e então, foi criando linhas temporais em cada um deles, ilustrando-os com tudo de colorido que pudéssemos usar.

O primeiro fio representava a linha da vida do meu protagonista; o terceiro, a jornada da personagem que ele criava; o fio do meio era a sucessão dos eventos que bolávamos para nossa ficção. As emoções dos nossos personagens eram blocos autoadesivos com cores demarcadas: verde para os sentimentos felizes, azul para os tristes, amarelo para os de tensão e rosa para os de perigo.

As cenas eram desenhos recortados na cartolina (Leon não era muito bom com esboços, portanto essa parte ficava comigo); personagens eram feitos de papelão e pintados com caneta hidrográfica. Os momentos em que a história dos nossos anti-heróis se cruzava recebiam um fio extra de barbante entre eles, conectando os dois extremos à linha cronológica do meio.

O desenrolar do enredo ficava mais claro à medida que o víamos ganhar um corpo físico. Nós o dividimos em três atos e ponderamos um pouco mais sobre a motivação de cada personagem, bem como seu principal papel no panorama da história. Só nos demos conta de que havíamos terminado quando as anotações no caderno de Leon já não forneciam nenhuma informação que pudéssemos aplicar ao outline. Ainda assim, ficamos mais algum tempo pensando em voz alta. Quando finalmente paramos para admirar o resultado do nosso trabalho, sentíamos como se já não fôssemos somente duas pessoas no quarto.

Leon colocou as mãos na cintura e observou as linhas de ponta a ponta, cheias de personagens, emoções e cenas penduradas como num varal de roupas. Era uma estrutura complexa e belíssima. Cada momento da narrativa se interligava.

— Dizem que Roma não foi construída em apenas um dia — falou, cheio de inspiração —, mas veja só o que acabamos de fazer!

Ouvi meu irmão sair do quarto dele ao final do corredor antes de aparecer à minha porta. Quando bateu os olhos no esquema que tínhamos montado, levou uma mão à boca em sinal de surpresa.

— O que…? — engasgou.

Não pude deixar de rir. Para quem via nosso outline pela primeira vez, fora de contexto, só conseguia enxergar um emaranhado de barbante, papel e fita adesiva. Leon me encarou com divertimento, discretamente pedindo que eu desse uma justificativa a Ariel.

 — Eu até explicaria, mas acho que seu cérebro acabaria implodindo — falei para meu irmão.

Ele balançou a cabeça.

— Quando uma garota e um cara ficam a sós num quarto, é de se esperar que coisas surpreendentes aconteçam, mas… não é esse tipo de coisa que geralmente me vem à cabeça.

Foi minha vez de olhá-lo com desaprovação.

— Não posso culpá-lo por pensar como um adolescente — respondi, considerando que era isso o que ele era, afinal.

Ele deu de ombros:

— Às vezes é difícil acreditar que compartilhamos os mesmos traços genéticos — estabeleceu, com um tom cínico e fazendo cara de esnobe, forçando o que pareciam ser as palavras mais rebuscada de seu vocabulário limitado. Voltou a andar pelo corredor e, enquanto se afastava, pude ouvi-lo murmurar para si mesmo “tomara que eu não fique assim daqui a uns anos”.

A gargalhada de Leon preencheu meu quarto, tão forte que, quem sabe, pudesse fazer vibrar os fios presos às paredes.

Pus-me do outro lado do esquema, atravessando nossos penduricalhos com muito cuidado. Diante de mim, estava a linha temporal da minha parte da história; no outro extremo, diante de Leon, estava a parte do enredo que caberia a ele.

O rapaz sacou o celular do bolso e começou a tirar fotografias, registrando nossa representação gráfica para que ela não se perdesse uma vez que a desmontássemos.

— Mal posso esperar para transformar isso num texto — comentou, distraído.

— De certa forma, isso já é um texto — rebati. — Podemos ler um romance inteiro aqui.

Ele virou a lente para mim e tirou uma fotografia minha enquanto eu me encontrava completamente fora de pose. Eu o fuzilei com os olhos, repreendendo-o por me pegar desprevenida. Leon olhou para a foto na tela do celular e riu da minha cara de surpresa. Não perdi tempo: peguei meu próprio celular e tirei uma fotografia dele, bem ao lado do desenho em papelão que representava nosso antagonista. Sem planejar, entramos numa disputa de fotos indesejadas em meio ao outline. O riso saía frouxo.

Quando nossa barriga já doía das gargalhadas e nossa testa estava coberta de suor de tanto perambularmos de um lado para o outro entre os fios de barbante, Leon se deu conta de que estava ficando tarde e que precisava ir para casa. Ele recolheu as mochilas, agora vazias. Eu o acompanhei até a sala para que nos despedíssemos; nossa conversa despreocupada acabou me levando para o quintal. E então, antes que eu me desse conta, eu o acompanhava até o fim da rua. A noite estava fresca; o céu, pontilhado de estrelas; os grilos cantavam nossa canção de despedida.

— Nos vemos amanhã? — perguntou ele.

— Nos vemos amanhã — repeti em confirmação, percebendo que qualquer outra resposta agora me seria dolorosa.

Um abraço. Um aceno. Em seguida, eu voltava sozinha para casa, marchando pela calçada, revivendo os últimos momentos na cabeça.

Mais tarde, ao me vestir para dormir, olhei para nosso esquema de barbantes, nossas linhas temporais cheias de cenas, emoções e pessoas fictícias. Talvez eu não precisasse desmontá-lo ainda, mesmo que parte dele pairasse sobre a cama… Era tão bonito!

Deixei a janela aberta para que a luz da rua iluminasse o interior do quarto. Permiti que o sono me levasse bem aos poucos enquanto eu admirava os fios acima de mim — como se eles fossem um móbile, e eu fosse um bebê no berço.

***

O dia seguinte foi igualmente inspirador; e o dia que veio depois dele também. Em menos de uma semana, Leon e eu estávamos trocando capítulos: ele me entregava folhas de caderno arrancadas, e eu lhe enviava arquivos de texto por e-mail. De fato, havia um charme na maneira como ele fazia seu trabalho; Leon gostava de tocar naquilo que criava.

A reviravolta veio quando meu irmão apareceu no meu quarto, bem quando eu escrevia meu segundo capítulo (com dedos em brasas de digitar sem parar), e pediu minha atenção. Girei na cadeira e o fitei, tão concentrada no parágrafo interrompido que, em circunstâncias comuns, qualquer coisa que ele tivesse para me dizer seria esquecida assim que eu voltasse a encarar a tela do computador. Suas palavras, pelo contrário, despertaram-me como um esguicho de água gelada:

— Preciso de um favor seu, e você não pode dizer não.

Ariel estava pronto para usar seu salvo-conduto.

— Qual favor?

— Você vai me ajudar a ir à Caliban Club este final de semana.

Uma risada incrédula escapou da minha boca. Ele não poderia estar falando sério. Caliban Club era uma das poucas casas noturnas que existiam em Santa Alice, conhecida por suas festas dionisíacas nem um pouco recomendadas para aqueles que tinham estômago fraco.

— Você é menor de idade, não pode ir — contrapus, deixando explícito no meu tom o quanto eu achava aquela ideia idiota.

Ele tinha uma expressão decidida no rosto. Já esperava que eu fosse recusar.

— Eu sei, mas você se lembra de quando precisou daquele favor superimportante, e eu tive que abandonar tudo o que estava fazendo na hora para ir em seu socorro?

— Ariel…

— Você disse que eu poderia pedir o que quisesse.

— É, mas você ainda tem dezessete anos, e eu não tenho o poder de mudar a constituição para torná-lo maior de idade até o final de semana.

— Não, mas tem todo o poder de conseguir um documento de identidade falso. E isso é tudo o que eu preciso — replicou. — Além, é claro, de convencer a mamãe a me deixar “dormir na casa do seu amigo Leon” por uma noite. — Ilustrou seu argumento com os dedos em aspas no ar.

Meu queixo caiu.

— Quer que eu minta para a mamãe?

Ele levou o indicador aos lábios.

— Shh, fale baixo! — repreendeu-me, fechando a porta do quarto para que nossa conversa não fosse ouvida do lado de fora. — Olha, não precisa enganá-la, está bem? É só não me desmentir quando eu disser que vou passar a noite na casa do seu amigo.

— Deve ter ficado louco se acha que vou concordar com isso!

Ele apertou os olhos; parecia um touro diante de uma manta vermelha.

— Você se lembra de quando precisou daquele favor superimportante, e eu tive que…?

— Não precisa repetir, eu ouvi da primeira vez.

— Pretende quebrar sua promessa, então?

Soltei o ar.

— Você está exagerando, Ariel. Eu só pedi que arrumasse meu quarto.

Ele apontou para mim com um gesto duro.

— Eu tive que abandonar uma partida ranqueada por sua causa. Você sabe o que aquela derrota significa para meu clã? — Sua frustração vazava por entre os sussurros. Não, eu não fazia a menor ideia do que ele estava falando, não jogava aqueles jogos violentos que ele tanto adorava; não sabia se ele os usava como argumento só porque eu não teria como rebatê-lo ou se realmente dava toda aquela importância àquilo. — Larguei tudo para fazer este seu muquifo parecer apresentável, e é assim que você me retribui?

— Eu… — hesitei, tentando formular minha resposta. Ariel levantou uma sobrancelha, notando que eu tropeçava para defender meu posicionamento. Não era justo, ele já viera para a batalha preparado. — Isso é perigoso, cara.

— Não precisa ser — asseverou. — Não se você fizer sua parte direito.

— Eu nem sei onde conseguir uma identidade falsa!

Ele deu de ombros.

— Bem, eu tive que fazer seu quarto parecer limpo. Fui bem criativo na minha tarefa. Agora é sua vez de ser criativa.

Ariel tinha um jeito muito próprio. Entrar numa discussão com ele era um desafio e tanto. Conseguia elaborar contra-argumentos mais rápido do que qualquer um que eu já havia conhecido e geralmente os verbalizava num só fôlego, sem gaguejar ou desviar o olhar por um instante sequer.

Ele tinha certa razão; eu realmente lhe havia dado carta branca para pedir qualquer coisa que quisesse, sem que eu tivesse o direito de recusar.

Dando o caso por encerrado, Ariel sorriu, abriu a porta outra vez e me deixou. Eu claramente havia perdido a discussão, como de costume. Ainda levei alguns minutos pensando numa maneira de dissuadi-lo; depois comecei a imaginar um jeito de fazer o que ele me pedira sem que algo realmente ruim acabasse acontecendo.

Havia apenas uma pessoa a quem eu recorria quando pretendia tomar uma atitude minimamente reprovável. Digitei uma mensagem de texto para Eva, minha colega de classe, explicando a situação por alto. Ela me respondeu “posso dar um jeito nisso amanhã”. Mordi o interior da bochecha, em parte aliviada por não ter que falsificar um documento eu mesma, mas também frustrada porque agora eu não tinha desculpa para deixar de dar a Ariel o que ele queria.

***

Eva cumpriu o que tinha prometido. Antes das aulas da tarde, guiou-me até um dos pátios da faculdade — uma parte isolada, cercada por arbustos e árvores negligenciados. Em torno do banco de concreto, reconheci o grupo relativamente grande de amigos de Rafael Gaspar, o rapaz que assistia as aulas de filosofia conosco. Eram todos homens, a maioria de cabelos raspados e piercings no rosto. Calaram-se quando me viram chegar; e Gaspar, que se sentava no meio deles, abriu um sorriso surpreso.

Eva se aproximou sem acanho e o cumprimentou com movimentos de mão ensaiados.

— E aí, moça do pecado original! — exclamou ele, olhando-a com interesse.

Ela soltou uma risada enquanto mastigava o chiclete que vinha ruminando na boca desde o início da manhã.

— Por um momento, realmente me perguntei onde poderia encontrar você depois do almoço — revelou ela. Sarcasmo impresso na voz. — Mas não há muitos lugares deteriorados nesta universidade onde gente como você costuma se esconder.

Gaspar se levantou de supetão. Por um breve segundo, pensei que estivesse ofendido. Mas então ele abriu um sorriso ainda maior.

— Tenho que zelar pela minha reputação ruim. — Ele encolheu os ombros, como quem dizia “fazer o que, né?”.

Diferentemente de seus amigos, Gaspar tinha uma aparência bem-lavada. Sua peculiaridade era um único brinco na orelha esquerda. Seu rosto era muito quadrado, a pele de um tom claro; cabelos lisos cor de areia caíam sobre sua testa. Tinha a mania de passar a ponta da língua nos dentes.

Eva sacudiu despreocupadamente seus cabelos curtos e tingidos de rosa.

— Preciso de uma daquelas identidades que você faz.

Ele levantou as sobrancelhas.

Você precisa? — perguntou. E então apontou para mim. — Ou isso tem alguma coisa a ver com ela?

Instintivamente, apertei um antebraço bem junto ao corpo. O olhar de todos os rapazes recaiu sobre mim no mesmo instante, avaliando-me. Eu sabia que minha presença ali era como um grito num auditório vazio; nunca havia dirigido a palavra a Rafael Gaspar antes, exceto num ou outro debate das aulas de filosofia.

Eu preciso — obriguei-me a dizer. Permanecer em silêncio apenas me faria sentir como uma criança tímida na barra da saia de Eva. Minha declaração soou satisfatoriamente confiante, surpreendendo até a mim mesma.

Gaspar repetiu o cacoete com a língua, e então apertou os lábios numa expressão de condescendência.

— Eu achava que você era… — Interrompeu-se, mas o ar intrigado ainda se demorou em seu semblante. — Bem, deixe para lá.

Isso instigou minha curiosidade.

— Achava o quê?

Ele soltou uma risada sem jeito e sacudiu a cabeça.

— Nada, não. Você tem cara de quem não gosta desse tipo de coisa. — Tinha um jeito arrastado de falar. Uma voz bem grave e um sotaque forte de carioca.

Um momento de silêncio. Os olhares continuavam em mim. Minha resposta precisava ser bem bolada, pois poderia reforçar meu novo estigma de “uma estranha no ninho”.

— Devo me sentir ofendida? — Atentei-me à minha própria linguagem corporal. Soltei os braços e deixei que eles pendessem ao redor do corpo.

Gaspar encolheu os ombros uma segunda vez. Fez uma pausa, tirou um cigarro de dentro do bolso.

— Contanto que pague pelo meu serviço, pode se sentir como quiser. — Puxou o cigarro da mão de um de seus colegas e usou a ponta para acender seu próprio.

Eva se precipitou e tirou uma nota de cem do bolso; não a entregou diretamente a Gaspar, mas a um dos sujeitos que estavam ao seu lado, um cara musculoso e cheio de tatuagens. Também entregou um pedaço de papel com todas as informações que Ariel precisaria em seu documento a fim de se passar por uma pessoa maior de idade.

— Mandarei a foto para o endereço de e-mail de sempre — explicou Eva. — Precisa estar pronto antes do final de semana.

Gaspar deu um trago e deixou que a fumaça saísse toda pelo nariz. Ele era alto e magro, como, quem sabe, uma versão hiper-realista do Slender Man.

— Missão dada é missão cumprida.

— Obrigada — respondi, virando as costas e já começando a deixar o local.

Um movimento prematuro, pois Eva não me acompanhou. Quando olhei para trás, vi que Gaspar puxava a garota pela mão. Considerando a maneira como os lábios vermelhos de Eva se dobravam num sorriso permissivo, notei que ela não pretendia vir comigo.

Eva acenou para mim, como quem se despedia. Ela não se sentia desconfortável ali, era justamente onde tinha intenção de ficar. Eu lhe devia cem reais e um agradecimento, mas poderia deixar isso para o dia seguinte. Já tinha conseguido o que queria e não permaneceria naquele pátio mais nenhum minuto.

***

Quando recebi o documento, fiquei impressionada com a qualidade da impressão. Eu jamais desconfiaria de que aquela carteira de identidade era falsa se alguém a mostrasse para mim numa outra ocasião. Eva a havia pegado diretamente com Gaspar, e agora a entregava para mim, bem no meio do corredor principal cheio de gente, sem qualquer medo de represália.

— Você pareceu bem íntima daquele cara — comentei enquanto lhe devolvia o dinheiro.

Ela demorou um segundo para responder, distraída.

— Do Gaspar? Ah, sim. Eu conheço muita gente por aqui…

— Já comprou uma desta antes? — perguntei, guardando o documento novo ainda com cheiro de tinta no bolso da frente da minha mochila.

— Não para entrar numa festa — respondeu, mas não me deu detalhes.

Encarei Eva por um instante, refletindo se deveria repreender suas escolhas de amizade ou questionar com o que mais Gaspar costumava estar envolvido, porém preferi não me aprofundar no assunto. Tudo o que eu sabia sobre aquele sujeito era que ele tinha muitos recursos, vinha de família abastada e não costumava soltar os comentários mais politicamente corretos da turma quando o professor requeria um posicionamento no debate.

Pensei num assunto mais importante. Eu vinha imaginando meu irmão menor de idade sozinho numa casa noturna de madrugada, e a ideia não me agradava. Perguntei se Eva se importaria de ir comigo enquanto eu acompanhava Ariel. Ele precisaria da minha supervisão; e eu, de apoio emocional. Eva era o tipo de pessoa que parecia atrair algumas encrencas para si, mas devia ser igualmente capaz de se livrar delas; levá-la comigo parecia uma decisão inteligente.

Ela concordou, contanto que eu pagasse sua entrada. Combinamos que nos encontraríamos sábado à noite, enquanto eu já maquinava uma desculpa para dar à minha mãe no mês seguinte que explicasse a gastança no cartão dela. O favor que Ariel exigira de mim estava me saindo muito caro.

***

Demorei até quinta-feira para pedir que Leon se dispusesse a ser nosso álibi. Minha mãe se simpatizava com ele e, portanto, não se importaria que meu irmão e eu supostamente passássemos uma noite jogando conversa fora na casa dele.

Você já foi a uma festa como essa antes? — perguntou Leon no telefone.

— Não, mas não pode ser tão terrível, não é?

Ele forçou uma risada.

Tudo bem. Se sua mãe telefonar, direi que os dois estão aqui, mas… tome cuidado. Esta cidade não é segura à noite, e eu odiaria que algo ruim acontecesse a você. — Ele fez uma pausa, concluindo sua declaração, mas adicionou em seguida: — E ao seu irmão também, é claro.

Isso me fez sorrir em silêncio, com o telefone apoiado num ombro. Leon não fez muitas perguntas, mas soava honestamente cuidadoso comigo. Prometi que voltaria inteira para casa no domingo de manhã.

***

A Caliban Club ficava bem ao lado do teatro municipal e não muito longe do museu, localizados na principal praça do centro. Chegamos cedo. Ariel se balançava nos calcanhares, ansioso pela experiência. Quando entregou o documento falso, não olhou mais do que o necessário para o segurança que o conferia (era esperto demais para parecer suspeito); teve sua passagem liberada em direção à bilheteria, como alguém que realmente havia feito dezoito anos alguns meses atrás.

Descemos as escadas para o subsolo e chegamos a um corredor muito largo, de paredes espelhadas e com a incidência de uma luz fosca. Sem perder tempo, meu irmão foi se encontrar com seus amigos numa das pistas de dança.

Pedi um refrigerante num dos pontos de retirada de bebida e me encostei numa parede. Agora eu só precisaria esperar a noite virar madrugada, e a madrugada virar manhã. Não fiz questão de manter Ariel dentro do meu campo de visão o tempo todo, porém, de hora em hora, procurava-o na multidão.

Eva se aventurou no meio da pista, dançando com desconhecidos, mas quase não pegou álcool para beber; quando ela se aproximou, perguntei o motivo disso.

— Estou aqui numa missão — explicou, lançando-me uma piscadela.

A confusão de luzes, a música alta, o ambiente exótico e a grande quantidade de pessoas ao redor me deixavam desorientada. Era sensato da parte de Eva se manter sóbria para me servir de auxílio caso eu precisasse. De todo modo, seu repentino senso de responsabilidade me surpreendia.

— Pode se divertir — gritei, para que ela me ouvisse apesar da música alta.

Ela sorriu em resposta e fez um gesto, apontando para o próprio olho, e depois na direção aonde meu irmão havia ido, indicando que se mantinha vigilante. Senti-me realmente grata por isso. Ariel era responsabilidade minha enquanto estivéssemos ali, e, por mais que ele fosse um garoto inteligente, eu temia que se metesse em alguma confusão ou bebesse mais do que seu organismo podia aguentar. Ter alguém com quem dividir essa tarefa era um alívio para mim.

Vi algumas pessoas da faculdade por entre os estranhos na pista: um dos rapazes que costumava andar com Gaspar; e também Giúlia, a nerd de dreadlocks com quem eu não tinha muito contato. Escolhi não me aproximar de ninguém.

Após algumas horas, meu único entretenimento se tornou Leon. Enviei uma mensagem de texto para ele, atualizando-o sobre como ia a noite.

“Nossa festa do pijama está sendo muito divertida”. Sarcasmo puro. Eu estava entediada e sóbria até demais.

“Eu queria que ela não fosse de mentirinha”, respondeu.

Um sentimento morno me acalentou.

Para ser sincera, eu não conseguia parar de pensar na ficção que vínhamos escrevendo. Criar histórias era meu passatempo favorito, e talvez se assemelhasse a um vício às vezes. Costumava passar horas vivendo cenas dentro da minha cabeça, interagindo com personagens fictícios, imaginando as palavras que eu usaria para descrevê-los no texto.

Até mesmo num local como esse, em que eu não poderia estar mais deslocada do meio, eu conseguia tirar inspiração: os movimentos estrambóticos de alguns jovens alcoolizados, o padrão de cores das luzes que piscavam, os suspensórios soltos em torno da cintura de Eva enquanto ela se balançava mais adiante. Todo e qualquer estímulo sensorial era registrado no meu banco de dados mental. Eu não conseguia parar de ser uma contadora de histórias, mesmo quando não estava exercendo a função de uma.

“Se quiser, posso ir aí fazer companhia a você”, sugeriu Leon nas mensagens.

Pensei na possibilidade. Algo dentro de mim me impelia a dizer sim, por favor!

“Mas e se minha mãe telefonar?”

“Já são quase três da manhã, e ela não fez isso ainda.”

Mordi meu dedo indicador. Eu queria que ele estivesse ali…

Trinta minutos depois, vi o rapaz de cabelos amarrados e compleição lusitana entrar na pista de dança. Ele realmente havia vindo por mim. Corri até ele e o cumprimentei com um abraço. Lançou-me um de seus sorrisos retraídos.

— Eu não esperava que você viesse mesmo — admiti.

— Acho que, no fundo, nem eu.

Eu o puxei para fora da pista de dança, de volta para o corredor de espelhos. Dirigimo-nos até as escadas da entrada, por onde, a essa hora, ninguém mais transitava, e nos sentamos no penúltimo degrau. Ali a música não chegava tão alta.

— Eu já estava recorrendo aos energéticos para me manter de pé.

Ele afagou minhas costas num gesto de condolência.

— Esta também não é minha praia.

Leon entendia.

— Desculpa por tê-lo feito vir.

Sacudiu a cabeça.

— Tudo bem, eu… não consigo me concentrar em outra coisa além do livro que estamos escrevendo, para falar a verdade.

Inclinei o corpo em sua direção.

— Eu também!

— Nós nos empenhamos bastante para criar o enredo, afinal.

Observei as pessoas que cruzavam o corredor transversalmente a nós, passando de uma pista de dança para a outra.

— Por que não podíamos simplesmente estar nos divertindo como essa gente em vez de…? — Não completei minha frase. Em vez de ficar pensando num universo inventado que só existe na nossa cabeça.

— Porque somos esquisitões — riu.

— Prefiro pensar que somos gênios torturados.

Ele ponderou.

— Não parecemos muito geniais agora.

— Quantas palavras acha que conseguiríamos escrever até o sol nascer? — perguntei, quase retoricamente.

— Duas mil e quinhentas, eu acho… — chutou.

Olhei para Leon, incrédula.

— Você não escreve tão rápido assim. Ninguém escreve.

Ele ergueu o queixo, com um ar propositalmente esnobe.

— Quanto você conseguiria escrever?

Fiz os cálculos. Tínhamos cerca de duas horas até o nascer do sol.

— Mil e trezentas, talvez.

Ele estalou a língua.

— Eu esperava mais de você — provocou.

— Queria que houvesse uma maneira de provar que é impossível escrever duas mil e quinhentas em tão pouco tempo. — Soltei o ar num só fluxo. E então, de repente, uma ideia passou pela minha cabeça. Na verdade, havia uma maneira, sim!

Existia uma lan house ao final da praça, e ela costumava ficar aberta de madrugada nos finais de semana para os viciados em jogos eletrônicos. Eu só sabia disso por causa do meu irmão, que frequentava o local com significativa frequência acompanhado de amigos da escola, apesar de ele nunca ter virado uma noite lá.

Lancei a sugestão. Leon fez cara de quem aceitava o desafio. Geralmente era ele quem propunha esquemas ousados; agora era minha vez. Tínhamos mais duas horas de tédio pela frente, certamente podíamos transformá-las em tempo produtivo.

Voltei à pista de dança e encontrei, após uma breve busca, Eva e Ariel; eles conversavam, pareciam estar se dando bem. Perguntei se ela poderia vigiá-lo até amanhecer e combinei de encontrá-los por volta das seis em frente à Caliban Club. Ela me estendeu um polegar em sinal positivo e disse que eu não precisava me preocupar. Os dois pareciam lúcidos o suficiente, minha presença não era necessária.

Voltei para o corredor de entrada e puxei Leon pelo braço. Era hora de abandonar aquela festa chata.

Saímos para a noite. Passamos pelas grades de segurança que demarcavam a área para fumantes. Ali, longe das luzes e do som de estourar os tímpanos, parecíamos fugir para outro mundo.

Pude finalmente dar uma boa olhada em Leon, agora sob a incidência da luz dos postes e da lua. Ele claramente não havia se dado muito ao trabalho de se arrumar: estava de bermuda e chinelos; parecia apenas ter trocado de camisa antes de sair de casa. Seus cabelos estavam amarrados numa espécie de coque, deixando que as mechas negras da nuca caíssem sobre os ombros. Admiti a mim mesma que ele ficava muito bonito assim.

Fomos até a esquina e entramos na lan house. O ambiente era quase completamente diferente do qual havíamos acabado de escapar. O som era dos gritos dos jogadores diante dos computadores, comunicando-se por meio de headsets, concentrados em suas partidas.

Criamos uma conta de usuário e andamos de cômodo em cômodo, por entre diversas fileiras de máquinas, até acharmos um mais vazio e silencioso. Sentamo-nos em cadeiras vizinhas e abrimos o programa de texto. Olhei as horas no celular, passava apenas um pouco das quatro.

— Que os jogos comecem — falei, iniciando a competição.

Leon estalou os dedos, contendo o prazer antecipado de se provar para mim. Comecei o terceiro capítulo do meu protagonista. Considerando que ambos tínhamos o outline memorizado, só precisávamos colocar nossa imaginação para funcionar.

Em cerca de dez minutos, eu já estava completamente envolvida pelo universo que havíamos criado. As últimas horas se tornaram esquecíveis. Algumas poucas vezes, parei para checar Leon: seus olhos vidrados na tela do computador, sua expressão séria e seus dedos incansáveis batendo nas teclas. Ele era mais competitivo do que eu tinha imaginado.

O efeito do energético me impulsionou durante a primeira hora, mas, à medida que ele foi desaparecendo, o cansaço começou a me desacelerar. Percebi que não bateria minha meta de mil e trezentas palavras. Olhei as horas outra vez, já eram quinze para as seis. O tempo estava voando, tentei aproveitá-lo tanto quanto podia.

— Largue o teclado! — falei pouco depois. — Acabou.

Leon tinha os músculos tensionados.

— Mas eu acabei de começar!

— Já passou das seis. — Rolei minha cadeira para mais perto da dele, a fim de olhar a tela do seu computador. — E então, quanto conseguiu escrever?

Ele esmoreceu; sabia que não havia chegado nem perto das duas mil e quinhentas que havia prometido. Quando selecionou o texto e verificou o cálculo, descobriu que havia escrito quase mil e seiscentas.

Soltei uma risada vitoriosa. Ele me empurrou com o ombro.

— Olha, em minha defesa, eu não costumo escrever no computador. O problema foi esse.

— É. Justifique-se como quiser — impliquei, condescendente.

Ele virou o rosto para mim. Havia um tom de orgulho ferido em seu rosto, mas também um divertimento inconfundível no sorriso de lábios cerrados.

— Está bem, então, quanto você conseguiu?

Fiz uma careta.

— Mil e duzentas.

Leon estufou o peito.

— Então eu ganhei de você, de um jeito ou de outro.

— Não mesmo! Eu cheguei mais perto do meu objetivo do que você chegou do seu, e é isso o que conta.

— Veja só quem está se justificando agora.

— Ei, não seja um mau perdedor!

Ele relaxou na cadeira, com a cabeça apoiada no encosto.

— Podemos considerar isso um empate? — propôs.

Para quem havia obviamente fracassado, seria ótimo para ele que eu dissesse que sim. Eu não queria facilitar as coisas, de qualquer forma.

Ainda inclinada em sua direção, olhei bem para Leon. Pude ver suas bochechas almofadadas bem de perto, uma empolgação genuína brilhando em seus olhos. Isso desviou completamente minha atenção da competição. Tudo o que eu conseguia pensar era o quão maravilhoso estava sendo passar momentos como esse com ele.

Eu não conseguiria imaginar mais ninguém que sairia do conforto de sua cama, ou que dispensaria um open bar, para me acompanhar num dos meus hobbies. Ainda assim, ali estava ele, feliz por embarcar nessa jornada comigo. Se há algumas horas eu sentia que éramos patéticos na escada da boate, agora, de repente, parecíamos sortudos.

— Obrigada por isso — exprimi, deixando que minha gratidão escapasse sem aviso prévio.

— Por isso o quê? — Franziu o cenho.

Desviei o olhar para seu colo.

— Por me resgatar da noite de hoje, sei lá… — respondi. — Olhe para nós, afinal de contas! — Comparávamos palavras digitadas, acomodando-nos no silêncio e no escuro, dividindo a mesma realidade fictícia.

Ele entendeu o que eu queria dizer.

— Há uma expressão estrangeira para isso… — mencionou. — Folie à deux. Significa “dois psicóticos sofrendo dos mesmos sintomas”.

Ri, apesar de que não havia nada de doente no que compartilhávamos um com o outro.

— É… acho que fazemos uma boa dupla.

Ele assentiu.

— Parceiros no crime. Como Bonnie e Clyde.

— Assombrosamente encantadores, como Jack e Sally.

Leon pensou um pouco, levando a mão ao queixo.

— Detonando como Sr. e Sra. Smith!

Soltei uma gargalhada.

— É assim que fazemos para nos sentirmos menos “esquisitões”? — retomei o termo que ele havia usado antes.

Fez que sim.

— Nesse caso, podemos dizer que somos comoventemente cômicos como Homer e Marge Simpson.

Seu rosto estava fracamente iluminado pela luz do monitor. Eu percebia que quando seu sorriso era verdadeiro, ele não mostrava os dentes; em vez disso, suas pálpebras se estreitavam e Leon vestia uma fisionomia afável, como a de um filhote de mamífero que ainda não abriu os olhos.

Fazia muito tempo que eu não sentia esse sentimento, mas reconhecia-o muito bem. Por mais exausta que eu estivesse, poderia passar mais uma madrugada inteira ali, fitando-o. Algo me dizia que ele se sentia da mesma forma, pois, por mais que nosso rosto estivesse próximo, ele não se afastava. Nenhum de nós queria proteger nosso espaço individual, queríamos que o outro fizesse parte dele.

Talvez essa fosse minha deixa para expressar afeição sem usar palavras. O cômodo estava quieto e vazio. Éramos nós dois em nossa folie à deux. Ele dizia sim sem dizer nada.

Beijei-o com cautela, mas assim que senti seus lábios retribuindo sem qualquer hesitação, inclinei-me ainda mais para a frente. Isso parecia certo, eu sentia que era.

Tocá-lo era tão prazeroso quanto a ideia de que ele me desejava também. Ele levou a mão ao meu pescoço, talvez como uma maneira inconsciente de garantir que eu não voltaria atrás naquele gesto; eu não voltaria. O silêncio era nosso único cúmplice.

Quando finalmente nos afastamos, não tivemos acanho de encarar um ao outro. Sorríamos, desejosos por repetir a dose.

— Está bem. Eu lhe concedo empate — sussurrei.

Ele sacudiu o punho fechado no ar em sinal de exultação. Essa era, na verdade, uma espécie de vitória para os dois. Quem diria que, de todas as duplas famosas, teríamos nosso momento de Romeu e Julieta?

Aproveitamos a companhia um do outro por mais alguns minutos, mas precisávamos voltar para a frente da Caliban Club e esperar meu irmão sair.

Pelas próximas horas, senti-me como quem pisava nas nuvens. Estava certa, dias atrás, quando percebera o início de algo novo. Esse era um contentamento singelo e surpreendente, como quando encontramos dinheiro perdido no bolso de uma calça velha, ou quando comemos nossa sobremesa favorita. Se esse era o começo, eu mal podia esperar para ver como seria o desenrolar disso.

Só depois me dei conta de um detalhe evidente, algo que eu ignorara num primeiro momento ao nos comparar com Julieta e Romeu: eles nunca haviam tido uma chance. Um mau pressentimento, que eu não sabia de onde vinha, tentou conspurcar o sentimento de alegria. Eu o ignorei. Recusava-me a acreditar que romance e tragédia combinavam entre si tanto quanto Leon e eu.

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