Capítulo 6

Estava deitada no sofá assistindo a um especial de O Incrível Mundo de Gumball e quase xingando por não ter nada para fazer quando lembrei que tinha sim algo para fazer.

– Eliel, idiota – chamei meu irmão que estava com os olhos vidrados na televisão, devorando um pacote de cookies de chocolate.

– O que foi agora? – perguntou com a boca cheia, fazendo sua voz sair rouca e abafada.

–Vai tirar esse pijama, vamos sair – eu disse e ele se virou para me encarar, parecia preocupado.

Não sei o motivo. Eu era uma irmã tão responsável, seria uma pena se eu estivesse distraída quando ele fosse atravessar a rua e acabasse sendo atropelado por um caminhão.

– Mas a mamãe disse...

– Eu sei o que ela disse, mas não vai acontecer nada e, se quer saber, aqui é bem mais seguro do que nossa antiga cidade – eu disse mesmo sabendo que aquilo era mentira.

A cidade parecia ser segura sim, sem sombra de dúvida. Mas aquela casa? Me lembrava um pouco Coraline, o que não era nada legal mesmo se tratando somente de uma animação. Um pouco divertido, mas nada legal.

– Não reclame, sei que está entediado aqui e você sabe que eu nunca deixaria nada acontecer com a gente senão a mamãe me ressuscitaria só para poder me matar de novo – falei e levantei, esticando a coluna para me espreguiçar e sentindo meus ossos estalarem. Bom dia sedentarismo. – Anda, vamos aproveitar que hoje não está chovendo.

– Tá bom, Jesus... – Resmungou e subiu as escadas batendo os pés com força nas tábuas antigas, provocando um barulho estranho que não me alegrava muito.

Isso me lembrou...

– Eliel, você levantou hoje de madrugada? – perguntei gritando e ele respondeu um "não" em tom desconfiado.

Apesar de estar meio grogue na hora, eu me lembrava de ter conversado com Eliel. Ele tinha me chamado para brincar se eu não me enganava e me parecera muito bem acordado, fora que havia deixado a porta do quarto de mamãe aberta.

Bem, talvez eu tivesse apenas sonhado como já havia acontecido muitas vezes.

Soltei uma risadinha lembrando de algumas dessas vezes. Como uma pessoa confunde sonhos com realidade? É... definitivamente, eu era estranha.

Assim que meu irmão voltou e também terminei de me arrumar, tranquei a porta da frente e comecei meu caminho em direção à casa de Dona Emy. Talvez não tivesse problema em chamá-la assim, ela não parecia ser do tipo que se importa com isso.

O clima continuava frio, fazendo os ossos de meus joelhos doerem, mas não chovia mais e o sol aparecia um pouco por entre as nuvens, refletindo nas folhas secas coloridas que forravam o chão. Ah, como eu amava as estações frias!

Segurei a mão de Eliel enquanto caminhávamos lenta e preguiçosamente pela rua pavimentada. As calçadas estavam cheias de lama e grama amassada, então o asfalto parecia a melhor opção no momento.

– Qual é o seu problema? – Eliel disse irritado e lentamente, puxando sua mão da minha.

– Ah, o que foi? Tá com vergonha de segurar a mão da irmãzinha? – Zombei, fazendo um biquinho e o sufocando em um abraço.

Ele me empurrou e foi para o lado, cruzando os braços e fazendo cara feia. Aquilo me fez rir, era tão bom irritá-lo.

Depois de aproximadamente quinze minutos, chegamos à minúscula avenida em que estava a praça com as árvores sem folhas e o mercadinho em que eu havia conhecido Dona Emy.

Fui até o centro da praça e parei ali, varrendo o local com o olhar a procura de uma casinha de tijolos.

Dona Emy parecia ser aquele tipo de senhora que entope os netos de doces, cultiva cenouras e faz crochê, aparentemente eu me daria bem com ela.

– Qual era o número mesmo? – Murmurei para mim mesma, estreitando os olhos para enxergar melhor. Estava ficando míope, sem dúvida alguma. – Era... 1852...

– 1882 – disse uma voz atrás de mim, assustando-me levemente. Eu disse levemente.

Virei para trás, encontrando belos olhos verdes escondidos sob um par de lentes de óculos de grau, o que o deixava ainda mais bonito e fofo. Era Henri, o neto de Emy. Sorri para ele e quis sumir quando lembrei do sonho que tivera.

Eu sempre tinha sonhos desse tipo, mas eu havia acabado de conhecê-lo e, sinceramente, que porcaria de sonho havia sido aquele? Asas de borboleta? É sério isso, Lis?

– Oi Marie Ann – ele disse com um sorriso simpático e murmurei um "oi" extremamente sem graça.

Senti minhas bochechas corando e desejei a todo instante que ele não pudesse ler mentes como a minha mãe. Sim, de fato era engraçado, mas talvez ele pensasse que eu era uma louca que fugiu do hospício se soubesse o que se passava pela minha mente.

– Minha avó não parou de falar de você, estava muito ansiosa para te receber em casa – disse alegremente, de certa forma o modo como ele falava fazia eu me sentir menos tímida e me dava menos vontade de sumir. – Ela me fez te esperar na frente de casa desde as dez da manhã, até que começou a gritar sobre eu ter que comprar algo para o almoço, então fui ao mercado e te encontrei aqui quando estava saindo.

Assenti, só então reparando que ele estava cheio de sacolas descartáveis penduradas nos braços, aparentemente o que sua avó havia pedido para ele comprar.

Henri começou a andar à minha frente, pedindo para eu segui-lo. Puxei Eliel pela mão e comecei a andar ao seu lado.

– Então, quantos anos você tem Marie Ann? Faz tempo que se mudou para cá? – Perguntou e dei um sorriso tímido, retorcendo os dedos das mãos.

– Quinze e, na verdade, meu nome é Marliss mas é um nome horrível e sem noção então me chame de Lis – respondi e passei os dedos por entre os cabelos. Eu olhava em todas as direções possíveis, menos em seus olhos apesar de serem lindos, tenho que admitir. – E não, moro aqui há somente três dias.

– Ah... Bem, me desculpe por te chamar de Marie Ann, é que a minha avó...

– Não, tudo bem, eu não me importo – eu disse dando uma risadinha e levantando o rosto para encará-lo pela primeira vez no dia.

– É aqui – ele disse parando de repente em frente à uma casinha com muro baixo, o portão pequeno de ferro pintado de branco e tijolinhos laranja compondo a fachada.

No quintal, haviam brinquedos de cachorro espalhados pelo chão e um pequeno jardim no canto, de onde saiam enormes roseiras com suas flores parecendo um pouco acabadas, provavelmente por conta de insetos.

Era uma casa tão bonitinha e tão simples, como a maioria das casas daquela cidade. Talvez por isso eu não tivesse reparado nela antes.

Um cachorro grande com pelos fofos e dourados veio correndo de dentro da casa, latindo e abanando o rabo para Henri. Recuei alguns passos, me segurando para não soltar gritinhos ou grunhidos estranhos.

– Você tem medo de cachorros? – Ele perguntou rindo, talvez reparando na minha expressão assustada. Ah, claro, eu também estava hiperventilado.

– Sim, e não tem graça nenhuma – eu disse fazendo cara feia para ele e Eliel, que riam da minha reação.

– Relaxa, o Biscoito é grande mas não ataca ninguém, só pula e late um pouco mas sempre porque quer brincar – disse abrindo o portão e deixando que o cachorro saísse, pulando em cima dele e latindo alegremente.

Eu estremecia a cada latido, era patético. Ok, até eu teria rido de mim mesma se não estivesse ocupada demais tremendo de medo.

Em seguida ele pulou em Eliel, quase o derrubando no chão. Meu irmão riu e fez carinho em suas orelhas.

Talvez eu realmente não precisasse ter medo.

Cheguei perto dele e passei os dedos por entre os pelos de seu pescoço. Ele latiu, fazendo com que eu recuasse um pouco novamente, mas logo ele pulou em cima de mim e me deu uma lambida na mão.

– Fofinho – falei sorrindo e Henri assentiu.

– Vamos entrar, senão vovó tem um ataque – disse e foi na frente, entrando na casa.

A sala era extremamente organizada, cheia de prateleiras com bibelôs e mini bonequinhas de porcelana com vestidos de época – até que eram bonitinhas, diferente das que estavam no meu sótão. O ar cheirava a café, bolo de laranja e citronela, o que era convidativo até demais. Bolo de laranja era o meu favorito e eu adorava o aroma de citronela.

Fiquei parada na porta enquanto Henri entrou em um cômodo que pensei ser a cozinha, pois barulhos de panelas e água corrente vinham de lá.

– Onde estava, menino lento? – A voz que aparentemente pertencia à Dona Emy gritou de modo irritado. – Foi plantar as batatas, foi?

– Calma vovó, eu estava...

– Esqueça, não quero saber onde estava, me dê isso aqui.

Não consegui segurar o riso. Talvez ela realmente fosse uma daquelas senhorinhas que entope os netos de doces, planta cenouras e faz crochê.

Olhei para a janela atrás de mim, vendo meu irmão que estava no quintal rindo e brincando com o Biscoito.

– Me desculpe, ela... – Henri disse voltando para a sala e logo foi interrompido novamente pela avó, que o empurrou para o lado pedindo passagem.

– Com quem está falando, menino? Ah... Marie Ann! Achei que não fosse vir – disse abrindo um sorriso que eu já havia visto em algum lugar. Ah sim, Henri, eles eram realmente parecidos.

– Me desculpe Dona Emy, acabei dormindo demais e...

– Ora, não tem problema – ela disse me dando um beijo na bochecha e um abraço. – Entre, entre. Aquele é seu irmão?

– Sim, é Eliel – respondi assentindo e sentando-me no sofá felpudo e vermelho.

– Oh, é uma graça – ela se sentou ao meu lado, as mãos pequenas e sardentas repousando sobre os joelhos. – Ah Marie Ann, querida, temos tanta coisa para conversar.

Assenti novamente com um sorriso tímido. Henri estava sentado no tapete, escrevendo algo em seu caderno que estava sobre mesinha de centro.

– Você está sozinha em casa com seu irmão? – Emy perguntou e franzi as sobrancelhas.

– Sim, como...?

– Eu sei de muita coisa querida, Lira sempre me conta sobre elas – disse sorrindo e por um momento pensei ver seus olhos se encherem de lágrimas. – Minha linda Lira.

– Vó, a tia Lira... – Henri parou e suspirou, encarando a avó com um olhar triste.

Meu coração se apertou um pouco mas logo ri ao ouvir a resposta de Dona Emy.

– Eu sei menino, fique quieto e volte a fazer o que estava fazendo – disse irritada abanando a mão em sua direção. – Como vão as coisas? Mudanças nunca são uma experiência muito boa para algumas pessoas.

Abri a boca para responder mas a fechei novamente. Queria contar para dona Emy o que vinha acontecendo, sentia que podia confiar nela, mas tinha medo de ser chamada de louca.

Sim, eu era louca. Mas saber disso por si mesma era uma coisa, ser chamada assim por outros era outra completamente diferente.

– B-bem... Algumas coisas estranhas têm acontecido mas nada com o que se preocupar – eu disse balançando os pés para a frente e para trás, inquieta.

– Nada com o que se preocupar, você diz – ela disse e se levantou, batendo as mãos no avental branco que cobria a frente de seu corpo miúdo. – Eu digo que tem sim com o que se preocupar, e você sabe disso, mas ainda não está confiante o suficiente.

Dona Emy levantou do sofá de repente e entrou na cozinha novamente, me deixando sozinha na sala com Henri. Eu deveria puxar algum assunto? Provavelmente sim, mas não o fiz, continuei sentada balançando meus pés.

Eliel veio correndo do quintal, o rosto corado de tanto brincar. Ele parou por uns instantes, respirando, depois foi direto em direção à Henry.

– Você escreve que nem a Lis? – Ele perguntou encarando o caderno de Henri com curiosidade.

– Não, só quando é algum trabalho para a escola, prefiro desenhar.

– Ah, a Lis também desenha.

– Caramba, ela desenha e escreve? Só falta compor músicas – ele disse brincalhão e Eliel deu de ombros.

– Ela faz isso às vezes.

Henri me encarou com certa surpresa e abri mais um de meus sorrisos sem graça, dando de ombros e sentindo meu rosto corar. Nada daquilo era grande coisa, eu era só uma desocupada com imaginação fértil e uma habilidade estranhamente estranha para coisas ligadas à arte.

– Chega Eliel, sente aqui do meu lado e fique quieto – mandei e ele fez cara feia, mas não sem me obedecer.

– Que tipo de coisas você escreve? – Henri disse aparentemente querendo puxar assunto enquanto sua avó terminava o almoço.

– Ah... Muitas coisas – respondi encarando o chão. – Costumava escrever poemas mas eu meio que... perdi essa habilidade, agora escrevo umas historinhas pequenas, nada de mais.

– Hum... legal – ele disse sorrindo e levantei o rosto para retribuir o sorriso, meio boba e ainda corada.

Ele tinha um sorriso lindo. E minha mãe tinha telepatia e poder de prever o futuro.

Na mesma hora Dona Emy veio da cozinha, resmungando algo sobre insetos que estavam acabando com suas mudas de temperos.

– Oh querida, me desculpe a demora, mas acho que não precisaremos mais interromper nossa conversa agora – ela disse enquanto pedia licença para Eliel, para que pudesse se sentar ao meu lado. – Você acredita em mediunidade? Espíritos? Vida após a morte?

– Sim, acho bem interessante na verdade – respondi meio hesitante, aquilo já estava ficando estranho.

Não que eu não gostasse de coisas estranhas, muito pelo contrário, mas quando eu não estava sozinha no meio dessas coisas estranhas era um tanto... desconfortável, era como se os outros fossem intrusos invadindo o meu mundo e as coisas que eu guardava com tanto cuidado.

– Bem, bem, já é um bom começo – disse de forma animada e esfregou as palmas das mãos umas nas outras, sorrindo simpaticamente para mim. – Henri querido, pode nos dar um minuto? Leve o... Eliel, não? – Perguntou e meu irmão assentiu. – Leve o Eliel para ver os fundos da casa, ele vai gostar.

Fiz um aceno de cabeça para meu irmão, dizendo silenciosamente para que fizesse o que Dona Emy estava pedindo.

Henri chamou Eliel e foi em direção à cozinha, provavelmente onde ficava a porta que levaria aos fundos da casa.

– Posso ver a sua mão? De preferência a que você usa para escrever e coisas assim.

Aquilo era sério? Ela iria ler a minha mão? Achava isso bem legal, claro, mas não acreditava muito. O futuro para mim não podia ser simplesmente "adivinhado", a não ser pela minha mãe, vindo dela eu não duvidava de nada. Mas talvez fosse falta de educação ou Dona Emy ficasse chateada se eu negasse.

Concordei e estendi minha mão direita em sua direção. Ela fechou os olhos e lentamente foi passando as pontas dos dedos pelas linhas na palma da minha mão, fazendo expressões estranhas como se estivesse realmente vendo algo. Pouco tempo antes de me soltar, seu rosto empalideceu e o horror a tomou.

Ela soltou minha mão, jogando-a em minha direção como se houvesse levado um choque. Então simplesmente ficou parada encarando o teto, inspirando e expirando profundamente. Isso não deveria ser nada bom.

– Me desculpe, querida – ela disse com o olhar ainda vago, era óbvio que ela estava se esforçando para se acalmar. – Lira havia me falado que não era algo bom, mas...

Meu coração martelou em meu peito. O que ela tinha visto? Eu ia morrer?

– Você é boa em tomar decisões? Em perceber as coisas? – Perguntou e mordisquei meu lábio inferior.

– Não... quer dizer, não muito, depende – respondi confusa. – Dependendo da situação posso ser impulsiva ou pensar mais do que deveria. Mas sobre perceber coisas... Acho que sou mais alheia ao mundo do que deveria.

– Isso é ruim, Marie Ann – disse finalmente olhando-me nos olhos. – Você terá duas alternativas, uma fará tudo ficar bem, já a outra...

Droga. Isso estava me lembrando jogos de RPG Maker, aqueles de terror com histórias bem estranhas. Eu teria escolhas distintas, cada uma me levaria à um final diferente.

– O que a senhora viu? – perguntei, balançando os pés novamente, agora com rapidez.

Estava agitada, inquieta, assustada. Algo não estava certo, e eu tinha quase certeza que era algo relacionado às bonecas do sótão.

Porcaria hein, Marliss! Você e essa sua boca grande! Desejar uma casa assombrada por espíritos malignos? Onde já se viu?

– Não posso dizer, querida, perdão – Emy disse se levantando do sofá e passando as mãos pelo avental nervosamente. – Bem, vamos almoçar? Vou chamar o Henri e o...

– Me desculpe, preciso ir embora, minha mãe não está e pediu para que eu e meu irmão não saíssemos de casa, então realmente preciso ir – falei com um sorriso fraco e torto.

Dona Emy sorriu gentilmente de volta, assentindo.

– Tudo bem, querida, eu entendo, desculpe se assustei você – ela veio em minha direção e me deu um abraço apertado e reconfortante, suspirando. – Vai ficar tudo bem, você tem uma aura forte apesar de tudo.

Sorri instantaneamente, imaginando como seria a minha aura. Seria colorida e brilhante? Ou suave e leitosa? Na verdade... como eram as auras?

– Obrigada Dona Emy, me desculpe mesmo. Prometo que voltarei outro dia.

Ela riu de uma forma doce e me soltou.

– Eu quem agradeço, meu anjo. Vou chamar o Henri para levá-la em casa, pode ser perigoso você e seu irmão irem sozinhos.

– Claro – respondi rapidamente e Emy se virou para a porta da cozinha, gritando por Henri.

Apesar de bizarro, aquilo estava ficando interessante. E apesar de assustada, eu estava realmente animada.

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