01 - Continuação

 Eu sou resultado de um desses fetos guerreiros. Às vezes paro para pensar em como consegui sobreviver e crescer o suficiente naquele lugar, mas até hoje não achei uma resposta, só sei que cresci. Fui usada de saco de pancada para as crises existenciais dela e de todos os amantes que arrumou. Meu corpo foi abrigo dos incestos mais nojentos e ainda hoje, carrego marcas da sujeira e picadas.

              Não passava de um bebê quando o primeiro contato improprio aconteceu, acredito que antes de chegar aos quatro anos. Um dos caras que a visitava com mais frequência, descobriu que sua mente doentia conseguia sentir prazer me tocando e me ensinando a tocá-lo. Aos dez anos de idade, sofri o primeiro abuso com penetração, não consigo me lembrar do rosto dele, mas a sensação das mãos imundas me tocando, a ardência, a dor e o choro que rompia meu peito, provocando a falta de ar, jamais saiu da minha mente. Aos doze anos fui tomada a força por um dos traficantes dela. Ela me “emprestou” por um papelote e assim vivi até meus quinze anos. Uma noite o abuso foi demais, foi tão violento que senti minha alma sendo dilacerada a cada estocada, afinal, ela queria crack e para a pedra eu precisava pagar mais caro, ele me disse.

              Foi naquela noite que fugi, pois nada poderia ser pior do que aquele lugar. Me enganei. Longe da minha “casa”, tive meu corpo violentado de todas as formas que uma mente criativa pode imaginar, passei a me drogar para aguentar a dor de ser quem eu era. Vivia vagando de um lado a outro pelo centro da cidade, mas sempre acabava indo me alimentar na van de uma igreja que servia sopa aos moradores de rua.

              Alguns “irmãos” paravam uma van grande em algum ponto estratégico do centro, abriam a porta e serviam uma sopa quentinha e muito gostosa, sem contar que conseguiam levar, às vezes, alguns agasalhos e cobertores. Foi em uma noite dessas que conheci o Guilherme. Estava parada na fila, além da sopa, precisava de uma blusa, o cara do meu último programa, havia rasgado toda a minha. Quando me aproximei, meu mundo todo parou, ele sorriu e me entregou aquela tigelinha de isopor, me olhou nos olhos e, pela primeira vez na minha vida, me senti notada por alguém. Sorri constrangida e fui para a fila ao lado pegar o moletom. Queria que o chão se abrisse e me engolisse ali mesmo, desejei com todas as minhas forças ser outra pessoa, alguém digna de merecer aquele sorriso.

Mas não era, peguei a blusa e fui embora.

              Essa cena se repetiu por muitas noites e em todas elas, ele me recebeu com o sorriso mais lindo que alguém poderia ter. Gui era simpático e muito educado, perguntou o meu nome, quantos anos tinha e aos poucos foi conquistando espaço e derrubando algumas barreiras. Quando me dei conta, passávamos a conversar sentados na calçada, enquanto eu tomava a sopa que a igreja trazia. Ele nunca sentiu nojo de mim, nem ao menos fazia cara feia para o meu cheiro ruim de quem não tomava banho havia alguns dias, ao contrário, conversava, ria e me fazia rir, na verdade, só ele me fazia rir. Mas minha vida estava longe de ser um lugar para que alguém como o Gui habitasse.

              Precisava me drogar. Fui atrás do traficante de costume, mas o cara não estava mais no mesmo lugar, havia um outro lá, não o conhecia, mas não me importava com quem teria que dormir para conseguir saciar meu vício. Faria o que precisasse ser feito e iria embora. Engano o meu.

              Ele me prendeu, disse que era “bonitinha demais” para ficar andando sozinha por aí, seria útil outras vezes e quando eu disse que não tinha dono, ele me mostrou o contrário. Me deu uma surra, quebrou dois dentes e uma costela, fiquei lá com eles por muitos dias.

              E se o Gui ainda não ganhou seu coração, vai ganhar nesse momento. Toda menina sonha com o príncipe em um cavalo branco, vindo resgatá-la da torre, matando o dragão. Eu vivi isso!

              O Gui sentiu minha ausência nas noites da entrega da sopa e, com a ajuda do pessoal da igreja, vasculharam cada canto imundo do centro da cidade, seguiram algumas pistas e, quando enfim ele me encontrou, arrebentou a porta do lugar em que o traficante me mantinha presa, enquanto a polícia e o pessoal da igreja percorriam o local em busca de outras pessoas. Ele não se intimidou, aproximou-se de mim e me tomou no colo, sujei toda a roupa dele, estava imunda e o fedor que meu corpo exalava, enojava a mim, mas ele não demonstrou em momento algum o incômodo.

              Meu príncipe me resgatou.

              Fiquei internada por alguns dias. Fui tratada, limpa, cuidada. E a todo o momento ele permaneceu ao meu lado. Acha que foi somente isso? Claro que não.

              No dia da minha alta, quando acreditei que voltaria para as ruas, ele estava lá me esperando na saída do hospital. Assim que me viu, deu aquele sorriso lindo e abriu os braços, e, em um ato impensado, corri e me joguei nos braços dele e nunca mais o Gui me soltou.

              Fui tratada e, com a ajuda incondicional dele, me vi livre do vício. Foram dias turbulentos, onde pensei em desistir muitas vezes, gritei, xinguei e amaldiçoei o dia em que o conheci, mas Guilherme jamais se abateu, ouvia a tudo quieto e quando a loucura deixava o meu corpo e o choro inundava a minha alma, ele me abraçava, mostrando onde era o meu lugar seguro.

 Nos mudamos da capital e fomos morar em uma cidade do interior. Fátima em todo o momento esteve ao nosso lado e me tomou para ela como uma mãe adota um filho e, desde então, eles são tudo o que tenho nessa vida.

              E agora, já consegue amá-lo como eu amo? Eu sei que sim.

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