Capítulo 1

2 anos atrás:

Sábado, 28 de novembro de 2016.

14h21Sandtown-Winchester

Baltimore, EUA.

Não tem nada melhor do que a sensação de flutuar. Ou de o calor de uma mão no meu rosto, alisando meu cabelo. Se pelo menos a vida pudesse ser assim para sempre...

Eu poderia viver para sempre aqui, no porão da casa da tia do Jeremy. Só paredes. Nenhuma janela. O lado de fora fica só lá fora. E aqui dentro: Jeremy: o garoto tímido que se esconde do mundo. Thomas: um cara cheio de tatuagens que assusta os normais e atrai os livres. E eu: a poeta na minha mente quando estou chapada.

Vim para essa casa por segurança. Mas é só por uma semana. Eles vieram porque o sistema de lares adotivos ficou sem casas. Eu vou voltar para o abrigo, não posso ficar aqui. Um ano atrás, as mulheres do abrigo compraram uma pequena tv e uma cama para colocar o meu colchão, no brechó de caridade. Coisas que outras pessoas jogaram fora.

Elas criaram um lar para mim.

Elas me deram uma família.

Dias atuais:

Segunda-feira, 10 de setembro de 2018.

06h15 – Gilmor Homes, Sandtown

Baltimore – EUA.

Quando o despertador tocou, precisei de alguns minutos para me convencer a não o jogar pela janela. Foi difícil, mas consegui.

Levantei, cambaleando, e fui direto para o banheiro com a cabeça latejando, o estômago revirando com gosto metálico que me obrigava a vomitar com urgência. Ressaca. Das piores.

“Duas semanas atrás, Olivia Barnes havia deixado a casa de seus pais perto das dez da noite. Estava a pé, andando até o mercado...”

Eu preparava meu café da manhã enquanto ouvia o noticiário na TV que me fez parar e prestar atenção: “Ainda não há explicação para uma garota de 18 anos, com a vida toda pela frente, ter simplesmente desaparecido sem deixar rastros. Estamos considerando um possível sequestro”, dizia a voz do detetive na tela. “Todos os pertences de Olivia foram encontrados, incluindo a bolsa, o dinheiro e seu carro, que ainda estava estacionado em frente à sua casa.”

A afirmação mais aterrorizante veio da mãe:

“O único motivo pelo qual minha filha não voltou para casa é porque alguém está mantendo-a em cativeiro.”

Cativeiro. Estremeci ao imaginar-me sendo mantida em cativeiro por alguém - longe da vida, da liberdade. Desligo a TV e vou até à janela, com a minha xícara de café, para observar a vizinhança como sempre faço.

A neblina matinal cobre as ruas do bairro, formando pequenos e confusos desenhos nos sacos de dormir que se estendem pela calçada na frente do Gilmor Homes. Aos pés deles, há latas de cerveja, bitucas de cigarro e um saco vazio de sanduíche, dentro do qual provavelmente há uma grande quantidade de erva. 

Baltimore é a cidade mais populosa do estado americano de Maryland. Baltimore também é a 3ª cidade mais violenta dos Estados Unidos, com um alto índice de homicídios. E eu cresci aqui. Aos 18 anos, eu sei que o álcool e as circunstâncias podem transformar homens de boa aparência no tipo de pessoa que não se quer encontrar às 7h da manhã de uma segunda-feira.

— Onde está Olga? — Daiana, que mora aqui no abrigo, me pergunta assim que entra na cozinha.

— Você não a viu ontem à noite? — pergunto.

— Ela não esteve aqui na noite passada — diz uma das mulheres enquanto entra. Ela estava varrendo as escadas na porta.

— Quando foi a última vez? — questiono.

— Como vou saber?

Elas não cuidavam umas das outras, as mulheres. Havia competição. Havia fofoca. A cena social delas fazia com que eu me lembrasse do ensino médio, porque existiam os mesmos papéis: a vadia, a queridinha da professora, a boazinha, a malvada e a nerd. Lauren era a malvada, porque era bonita: ainda tinha todos os dentes, usava maquiagem, não parecia sem-teto. Daiana era a vadia, porque era mais velha e mais experiente. E também porque era prostituta mesmo. Eu era a nerd e a queridinha da professora.

No momento, há um total de oito mulheres no grupo e, diferentemente do que acontecera com Olivia Barnes, que foi sequestrada quando saiu para ir ao mercado, eu sei que as coisas sombrias que minha mente cria em relação às vidas das mulheres sem-teto possui grandes chances de estarem corretas. Prostituição. Drogas. Fome. Doença. Medo. Solidão. Porque eu sei que a vida da maioria dos sem-teto é total e dolorosamente solitária.

— Vi Olga ir para a mata ontem à noite — diz Daiana. — Umas dez ou onze horas, um pouco antes da chuva. Assenti para mostrar que ouvi. Daiana é assustadora, porque é imprevisível; costuma gritar, chorar, resmungar sem parar ou rir tão alto a ponto de fazer seus ouvidos doerem. Ela é viciada e está nas ruas há mais tempo do que minha idade. Daiana mantém fotos de seus filhos no bolso e leva seringas para usar quando quer. Nos últimos quatro anos, eu me formei no ensino médio, consegui entrar para faculdade com bolsa auxílio e com esse auxílio comecei a ajudar com a comida aqui dentro.

Ao mesmo tempo, Daiana tinha sido roubada muitas vezes. Ela perdeu os três dentes da frente em uma briga, e está perdendo cabelos por má nutrição, lesões marrons e roxas sempre estão em sua pele. É meio maluca, fala coisas sem sentido, esquece-se de muitas outras e depois age normalmente.

— Ela foi levada! — A voz estridente de Daiana me tira de meus devaneios.

— Ela foi levada — Daiana repete, como se estivesse lembrando só agora. — Olga foi levada por um homem.

— Ah — é tudo o que penso em dizer.

— Não assim... Ele a levou como... como... como — Daiana resmunga, diminuindo a voz. — Ela estava descendo a rua... passou por um carro velho, e um furgão branco parou e a porta se abriu, e um homem grande, careca, estica os braços e... — Ela faz o gesto de agarrar. — Tenho certeza... — A voz de Daiana é um resmungo ameaçador. — Ela foi levada. Qualquer uma de nós pode ser levada. Qualquer uma de vocês! — grita.

Olho para os olhos amarelados de Daiana. Heroína. É para isso que servem as agulhas no bolso dela. Daiana não permanece lúcida por muito tempo. Está tendo uma visão ou um delírio? Não parece possível que alguém possa ser arrancado de uma rua movimentada. Mas também não parece possível que uma garota possa ser levada ao sair de casa para ir ao mercado. Não só levada. Mantida.

Ainda assim, digo para Daiana:

— Mais cedo você disse ter visto Olga entrar-

— A van estava com lama nos pneus. Grama e lama. Aposto meu último dente que ele a levou para dentro da mata. — Ela se inclina para frente. Seu hálito fede a dente podre e cigarros. — Os homens fazem coisas com as garotas, querida. Se tiverem um tempo com elas, fazem coisas que você nem imagina.

Passo a mão na nuca, acalmando os pelos que ali arrepiaram. Olivia Barnes. Olga. Elas viviam a menos de dez quilômetros uma da outra. São bonitas. Possuem praticamente a mesma idade. As duas estavam andando na rua, durante a noite.

Será que as duas tinham sido vistas por um homem que decidiu levá-las? O mesmo homem? Ou eram dois homens diferentes? Será que os dois homens estavam em casa com suas famílias agora? Estavam fazendo café da manhã para seus filhos, ou fazendo a barba, ou se despedindo da esposa com um beijo, enquanto se animavam ao pensar no que fariam mais tarde às garotas que tinham sequestrado?

Segunda-feira, 10 de setembro de 2018.

7h23 – Universidade de Baltimore,

Baltimore – EUA.

Primeiro dia de aula na universidade, e eu não estou nem um pouco animada. Há meia dúzia de alunos na sala de aula, nenhum deles sentados muito perto de mim. Não há ninguém me observando, então encosto a cabeça na carteira e fecho os olhos.

Quando vou para a segunda aula, deparo-me com uma única pessoa na sala. Um garoto lindo, de óculos, que está olhando diretamente para mim.

Sento-me ao seu lado. Ele pode se tornar meu primeiro amigo por aqui. Seja normal. Seja normal. Sorria. Você consegue.

— Onde está todo mundo? — pergunto, e ele sorri de uma forma tímida, mas que me deixa imediatamente à vontade.

— Não chegaram ainda — responde, e há um certo nervosismo em sua voz. Ele arruma os óculos e olha para frente.

— Meu nome é Amélia Ross — digo, abrindo um sorriso simpático.

— Josh — ele se apresenta, sem sorrir.

— Por hoje é só. Vejo vocês na quarta — diz o professor Wilson, dispensando a classe.

— Acho que essa vai ser a minha aula favorita aqui — digo para Josh quando saímos, e ele concorda. Mas sua expressão muda totalmente quando percebe que estou caminhando ao seu lado.

— Até depois Amélia — diz Josh, afastando-se. Nem tive tempo de me despedir quando o vejo desaparecer entre os outros alunos.

Então me vejo sozinha novamente. Mesmo estando em meio à multidão.

***

O calor está aumentando. Mal passou das seis da tarde e o dia continua abafado, o ar pesado e úmido. Eu estava esperando que chovesse, mas o céu está limpo, um azul pálido e aquoso. Enxugo o suor que se acumula acima do lábio.

Por que não me lembrei de trazer água?

Minha camiseta, incômoda de tão justa, está manchada de suor nas axilas. Meus olhos coçam e minha garganta também. Quero muito chegar ao meu quarto, tirar a roupa e ficar debaixo do chuveiro, estar em um lugar onde ninguém pode me ver.

Eu me sinto exausta. Estou sóbria; dormi bem na noite passada. Mas há dias em que me sinto tão mal que preciso beber; e há dias em que me sinto tão mal que não consigo beber. Hoje, só de pensar em beber algo, já fico nauseada.

Mas a sobriedade no caminho de volta é um desafio nesse calor. Uma camada de suor cobre cada centímetro da minha pele, sinto a boca seca, meus olhos coçam, minha cabeça dói.

Odeio o calor. Odeio o sol.

Não tenho autoestima. Não sou atraente; acho que no fundo sou repelente. Não é só o fato de meu rosto estar inchado de tanto beber e de dormir pouco; é como se as pessoas conseguissem ver o estrago em mim como um todo, elas veem isso no meu rosto, na minha postura, nos meus movimentos.

Quando chego ao abrigo, percebo que Olga ainda não apareceu e isso me deixa muito contrariada. Percorri as ruas com o olhar, mas não há nada para ver. As ruas estão calmas, com poucas pessoas andando. O sol está refletindo nas vidraças. Ainda é muito cedo.

            Encontro Donna sentada no sofá, fazendo um cachecol de tricô. Ela ergue os olhos quando entro.

            — Como foi seu primeiro dia, querida?

            — Por que todos são brancos? — pergunto.

            Donna ri.

            — É que você se acostumou a morar num bairro que tem menos gente branca, e você é a única branca aqui no abrigo, minha filha.

            Então resmungo:

            — Isso não é verdade... Olga-

            — Olga não mora no abrigo. — Donna me interrompe, dando de ombros.

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