Cidade Cinza - Saga Estática - parte 2
Cidade Cinza - Saga Estática - parte 2
Por: Mich Graf
1. Tempurás e Agonia

Ela sentava-se na beira da mureta do prédio, olhando o fluxo de pessoas e veículos lá em baixo. O vento era forte ali em cima, varrendo seus cabelos para trás grosseiramente, enregelando suas pernas cobertas por um pequeno short preto e meia-calças da mesma cor. Louisa enrolava os dedos na barra do blusão de moletom de Henrik, absorta na visão do alto, das centenas de luzes piscando por todo o lugar a perder de vista. Nos primeiros dias ela se cansara de tentar ver as estrelas dali; o excesso de luz, poluição e nuvens carregadas não deixava passar nada. Os olhos azuis já não eram tão inocentes, não viam bondade e gentileza em quase nada e eram espertos demais para deixar passar um detalhe sequer, por mais ínfimo que fosse. Louisa poupava seus sorrisos, dando-os apenas aos irmãos e ao primo. Já não morava mais com Aiden e Genesis: Henrik e ela permaneceram apenas uma semana com os dois e então foram embora, pois acharam um apartamento três ruas distante deles. O lugar era bom, embora fosse quase a mesma coisa que o prédio de Gen – em uma rua escura e estreita, com pessoas estranhas passando por ela a noite toda e eventuais sons de violência ocorrendo. O apartamento em si era feio, mas Henrik e Lou deram seus toques pessoais a ele com o tempo. Estavam ali faria mais de três meses.

E nenhuma notícia de Zya. 

Desde o dia em que Louisa chegou a Ghonargon, ela esperava Zya. Perdeu a conta de quantas mensagens mandou a ele, de quantas vezes o ligou e a ligação caiu na caixa postal. Com o passar dos dias, o sentimento de perda aumentava e a esperança diminuía, enchendo sua cabeça com mil e uma possibilidades e motivos pelos quais Zya não apareceu. Henrik já não dizia mais para não se preocupar, pois sabia não adiantava dizer tais palavras vazias e sem certeza. Afinal, ninguém sumia por meses a fio sem mais nem menos.

Em alguns momentos, desejava ardentemente ter sua antiga vida de volta, sentir o Sol esquentando sua pele e o som do riacho atrás do cemitério de Sunfalls, passar as tardes com Chris e Henrik e divagar durante as missas de Saul. Após algum tempo, Louisa já não se lembrava mais do rosto de Chris, não sentia falta dele e sabia que deveria se sentir mal com isso. Ao contrário de seus pais, cuja falta a rasgavam toda manhã quando Lou acordava e se lembrava onde estava e porque estava. Era estranho ter responsabilidades e ser adulta, embora mal tivesse completado dezesseis anos. 

Fizeram um bolo coberto com glacê vermelho e confeitos brancos no dia de seu aniversário, na primeira semana em seu apartamento novo. Aiden a presenteara com maquiagens e um pequenino elefante azul que acendia uma luz débil e Gen a deu uma colcha de cama com um mandala enorme estampado, todo em tons psicodélicos. Por fim, Henrik a presenteou com uma grande caixa de macarons, que Louisa descobrira ser seu doce favorito. Ela se esforçou para que a ausência de Zya passasse despercebida, mas, ao se ver sozinha em seu quarto, um sentimento estranho de solidão a tomou, trazendo consigo um peso em seu peito. 

Os dias passaram e ela ainda sentia tudo aquilo. 

Estava de folga da loja de roupas alternativas naquele dia e planejara sair com Henrik para comer fora, mas ele precisava fazer hora extra no trabalho, o mesmo açougue onde Genesis trabalhava; que foi quem conseguiu espaço lá para Henrik. Então restava observar do alto a cidade no fim de tarde, antes que chovesse. Lou balançava as pernas para frente e para trás, pendendo acima da calçada há dez andares abaixo. Ali em cima o ar cheirava a melancolia e chuva, entrando em seus cabelos e roupas. Louisa gostava dos cheiros da cidade, como fumaça úmida, asfalto, comidas estranhas e perfume nas ruas principais. Nas menores, como a que ela morava, sempre tinha um pungente cheiro de urina e moradores de rua, embora não fosse forte e constante. 

Louisa puxou as pernas para cima, abraçando os joelhos e encostando uma bochecha neles. Os olhos marejaram-se com tantas lembranças e com a mudança tão brusca em sua vida, embora já fizessem meses. As primeiras gotas grossas começavam a cair pesadamente, acertando-a com força devido ao local aberto onde estava. Louisa saiu da mureta e arrastou os pés pelo concreto da laje do prédio, descendo as escadas até o 5° andar onde ficava seu apartamento. As escadas estavam úmidas e Louisa escorregou mais de uma vez, segurando-se firme no corrimão para se estabilizar. As paredes frias e cinzentas a faziam pensar estar do lado de fora ainda, em meio às nuvens de chumbo.

Lou abriu a porta que dava acesso ao seu andar e a fechou atrás de si, deixando os olhos se acostumarem com a escuridão do corredor. O zelador prometera trocar as lâmpadas queimadas, mas faria três semanas que estavam assim e nada de trocar de fato. Lou andou seguramente até a segunda porta à direita; seu apartamento. Destrancou-a no escuro e entrou no lugar vazio. Apesar da familiaridade com o lugar, ainda sentia como se fosse uma casa estranha. Não pensava no apartamento como lar, mas como uma casa apenas. 

A sala era bem simples, tendo dois sofás cobertos com mantas pretas com fios prateados formando desenhos em espiral – presente de Aiden quando se mudaram – e uma mesa de centro de tampo de vidro e pés de acrílico, um tapete que Louisa comprou em uma feira de usados, com listras em tons de preto e cinza. Não tinha TV, apenas uma pequena estante com alguns itens decorativos – dois cristais roxos e grandes, um lobo bege de cerâmica do tamanho de uma bola e alguns livros emprestados de Aiden. Louisa estava se aproximando bastante dele, como se fosse um irmão também. Aiden era delicado e gostava de ouvir, e Louisa descobriu que tinham muito em comum. Viviam todos como uma família deveria ser, combinando jantares, saindo para boates ou para comer em barraquinhas de comida oriental. Lou viciara-se rapidamente em um tempurá feito por uma garota que parecia ter a idade dela numa das tais barraquinhas próximas ao Mercado. A garota sempre caprichava nos camarões quando Lou ia comer ali, e colocava tempurás extras para viagem numa caixinha de isopor com uma sequência de caracteres japoneses desenhados a mão com caneta permanente. Louisa gostou daquela garota logo de início, pois parecia que viera de outro lugar assim como ela, que foi quem indicou Louisa para a loja de roupas onde Lou trabalhava agora. A dona era conhecida da menina dos tempurás e gostou de Lou, aceitando-a em sua loja. A compra de roupas alternativas era alta ali e quase sempre Lou recebia um bom dinheiro. Após algumas semanas almoçando todos os dias na barraquinha, ela descobriu que a menina dali se chamava Anmi e tinha uma prima que morava no mesmo prédio que Gen e Aiden. Anmi morava com a mãe que trabalhava como hostess em uma boate cara de um bairro rico de Ghonargon. 

Anmi tinha os cabelos tingidos de vermelho e os mantinha longos, com uma franja que se arredondava nos cantos. Ela fazia um pequeno coque no topo da parte de trás da cabeça e deixava o resto solto, caindo ao longo das costas e ombros. Anmi gostava de usar grandes brincos de argola, brilho labial alaranjado e um blusão preto igual ao de Louisa – que na verdade era de Henrik. Ela sequer se sujava ao cozinhar na barraquinha. Anmi era mais alta que Lou, e tão esguia quanto. Ela lembrava uma menina saída de algum anime de colegiais. Anmi frequentava a escola daquele bairro e fez Louisa querer voltar a estudar, afinal não podia deixar de fazê-lo. 

Deixando os pensamentos sobre Anmi de lado, Lou atravessou a sala e foi para a cozinha, pegou uma lata de refrigerante de cereja e saiu para a pequena varanda que tinha na sala. A varanda tinha cerca de um metro, com grades de ferro feias que pressionavam o abdômen dela quando Lou se debruçava para olhar as ruas lá embaixo. O vento – constante – fazia seus cabelos chicotearem seu rosto inexpressivo. Louisa tirou o blusão de Henrik e o jogou dentro da sala, no sofá mais próximo. Gostava da sensação do vento úmido na pele onde a blusinha preta de rendas por cima de um top vermelho não a cobria. Ela levou a lata à boca e sorveu um longo gole do refrigerante, cansada. Lou pegou seu celular roxo do bolso do short e desbloqueou a tela, fazendo o que sempre fazia naquela hora do dia: discava o número de Zya, tentando contato por minutos a fio. 

— Inútil... 

Sem sequer discar o número, Lou voltou a guardar o celular em seu bolso. Estava cansada de buscas infrutíferas. Já até procurou pelo amigo dele, Aksu, que ela sabia lutar artes marciais mistas clandestinamente, mas não achou nada. 

Com o passar dos dias, ela começou a acreditar que os policiais restantes haviam pegado Zya no trem, quando este teve problemas. Não havia outra explicação, não havia motivos para que Zya sumisse ao chegar na cidade. Aquele era o primeiro dia em que Louisa Newton desistia de tentar contato, e sabia que no dia seguinte também não iria tentar. A angústia dava lugar ao ódio rapidamente. A lata vibrava em sua mão, vazia, sendo amassada pela mão pequena. Louisa a arremessou para cima do prédio em frente, entrou em casa e fechou a porta de vidro com força. Jogou-se ao sofá e fechou os olhos bem apertados, querendo que o dia acabasse logo. 

O som dos carros e da atividade noturna da cidade embalou seus pensamentos distantes, indo a lugares que Louisa jamais achou que existissem em sua mente, lugares escuros e medonhos. 

— É inútil. — Sussurrou Louisa, sem saber por que o fazia.

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