Capítulo Três: Tem alguém em casa?

Capítulo Três

Tem alguém em casa?

Na minha concepção, a melhor coisa que eu poderia fazer era entrar em um fast-food qualquer e esperar encontrar alguma movimentação ou conseguir um táxi para casa. Encontrei uma lanchonete aberta depois de correr desesperadamente por cinco minutos; eu gostava e estava acostumada a exercícios, mas aquela situação maluca, talvez pela droga ainda em meu sistema, talvez pela outra coisa que eu preferia não lembrar, fez minhas costelas arderem de cansaço e falta de ar.

Pedi qualquer coisa apenas para enrolar. Também escolhi a promoção mais barata. Não estava exatamente com fome, embora soubesse que meu corpo podia se utilizar de alimento naquelas condições estranhas, mas o hambúrguer que eu escolhi era tão pequeno que eu achava difícil que suprisse as necessidades do meu corpo; ossos do ofício do desemprego.

Eu estava terminando o meu refrigerante e cogitando a hipótese de morrer em mais algumas notas pedindo um milk-shake quando ouvi as sirenes. Uma ambulância e um carro de polícia passaram varados pela fachada do fast-food e eu sabia exatamente para onde eles estavam indo. Eu sabia porque, bom, eu tinha causado o acidente.

Não, uma voz em minha mente gritou por atenção. Ele causou aquilo a ele mesmo.

Comecei a tremer por três motivos muito simples, no geral. O primeiro era  ainda pelo que havia acontecido, pelo que quase havia acontecido, na verdade. Eu sempre tomava cuidado com tudo para não passar por situações assim, não tinha visto Vitor chegar perto da minha bebida de forma... Ah! Com um esclarecimento de repensar os momentos que passei ao lado do cara, recordei-me do momento em que se apresentou. Minha bebida chegou um pouco antes dele me beijar pela primeira vez e ele tirou o copo de minha mão durante o beijo, colocando-o sobre o bar. Foi quando comecei a ter uma sensação ruim sobre ele, mas não conseguia entender o porquê. Em algum momento, daquele ponto até nos afastarmos e eu pegar a bebida de volta, ele deveria ter colocado algo para me drogar ali. Era a única explicação. Como que eu havia dado aquele mole? Coisas muito ruins poderiam ter acontecido por causa daquele deslize e s+o não aconteceram porque...

Bom, aí entrava no segundo ponto. Não havia acontecido porque meu corpo tinha reagido da forma mais estranha possível. No conforto e na claridade da lanchonete, encarei minhas mãos. Estavam normais, apagadas e sem nenhum vestígio do estado inicial de momentos atrás. Como poderiam ter queimado a camisa, a pele dele e o cartaz e estarem intactas? Inclusive o anel que eu estava usando não parecia ter sofrido qualquer dano. O que tinha acontecido comigo? Minha mente fugiu para momentos anteriores da minha vida, quando me perguntei a mesma coisa em acidentes parecidos e eu neguei com a cabeça. Tudo aquilo era reação ao trauma, eram todos causados pelo trauma. Minha mente deveria ter inventado tudo aquilo, exceto que...

A ambulância e o carro de polícia haviam passado para aquela direção e, embora eu achasse que qualquer outra coisa poderia ter acontecido para charmar-lhes atenção, eu sabia que estavam indo resgatar Vitor porque era a coisa mais lógica, então um terceiro medo me acometeu: e se ele me ligasse ao local? Se ele, quando fosse depor, falasse que eu estivera lá apenas algum momento antes dele desmaiar, que eu que o havia atacado, na verdade, e que foram minhas mãos que queimaram o seu corpo?

Eu me levantei para ir embora dali o mais rápido possível, me tirando da cena do crime. Por mais que achasse que Vitor não seria burro o suficiente para me mencionar, não comigo sendo drogada e quase estuprada, eu não poderia arriscar mais do que já tinha feito.

Aguardei do lado de fora da lanchonete por quase dez minutos antes de um táxi passar por ali e parar para me pegar. Era uma sorte conseguir um vazio naquela altura da rua, visto que as pessoas começavam a sair da boate para motéis ou para casa e eu sorri animada para o taxista, escondendo o desconforto com tudo o que acabara de acontecer comigo.

Cumprimentei-o e lhe dei o endereço da minha casa, ao que ele deu partida, tranquilo. Não era um caminho longo da boate, embora não estivesse perto o suficiente. Tinha preferido deixar o carro em casa a não poder beber e achei que o ônibus seria relativamente seguro para voltar para casa. Claro, isso tinha sido antes do acontecido e antes de ter sido drogada. Apesar dos piores efeitos da droga já terem passado, eu ainda sentia meu corpo mole e a mente meio nublada. Não tinha caído em sono profundo por causa da injeção de adrenalina que meu corpo me dera, mas isso não significava que eu estava em meu juízo perfeito, porque estava longe dele, embora pudesse ser confundido com embriaguez.

Vinte minutos mais tarde, paramos em frente ao meu prédio e eu comecei a procurar o dinheiro na minha bolsa para pagar ao taxista. A corrida deu um pouco mais de trinta reais e se juntássemos ao lanche e à caipirinha, setenta reais tinham ido embora naquela noite para investigar um babaca que era um disparate que Lisbela sequer cogitasse a hipótese de chamá-lo para sair.

Eu devia conversar com ela, mas como explicaria que tinha sido eu a queimá-lo e como eu havia feito aquilo?

Ofereci o dinheiro ao taxista e ele pegou de minhas mãos com um cumprimento. Então, parou de sorrir instantaneamente,

- Moça, você quer que eu te leve no médico? Nem cobro nada mais não, mas você devia ir...

Franzi a testa e me perguntei porque ele achava que eu deveria ver um médico. Fiz um checkin mental de todas as partes do meu corpo e parecia que tudo estava muito bem.

- Eu estou bem, obrigada pela sugestão de qualquer forma.

- Ao menos toma alguma coisa. Tem alguém em casa pra te ajudar? Você tá ardendo em febre.

Eu congelei com as palavras do taxista, enquanto ele me devolvia o troco. Ele tinha encostado em minha mão e estava dizendo que eu estava com febre. Quente, na verdade. Quente, não o suficiente para causar uma queimadura, mas o suficiente para ele querer me levar ao hospital de graça.

Aceitei o troco com um sorriso amarelo.

- Ah, sim, minha amiga está em casa. Ela pode... Ela pode me ajudar – murmurei.

Ele pareceu mais tranquilo e concordou com a cabeça, não sem antes me passar um cartão de visitas com seu número, pedindo que eu ligasse caso precisasse dele novamente. Informou-me que trabalhava no horário da noite e quando quisesse uma corrida, era só ligar para ele. Achei bem útil e guardei o cartão dentro da bolsa, me despedindo e saindo do carro.

Entrei no prédio, cumprimentei o porteiro que, ao olhar para a maneira que eu andava, me ajudou a chegar no elevador.

- Noite boa, ein, dona Tainá? – Ele brincou comigo.

Mal sabia ele.

Ao chegar em meu apartamento, a primeira coisa que eu fiz foi marchar para o banheiro atrás da caixa de remédios. Ao bater a porta, ouvi o miado de Preguiça ao fundo, pedindo para entrar, mas ignorei. Não estava boa o suficiente para ficar na companhia de ninguém e já era uma sorte que Lisbela tivesse desistido de me esperar, afinal, já eram quase quatro da manhã, e eu não precisasse responder perguntas àquela noite porque eu, na verdade, necessitava de algumas respostas.

O taxista disse que eu parecia com febre, então... Quase comemorei quando encontrei o termômetro de mercúrio dentre as caixinhas de remédio. Encarei a hora no meu celular, ignorando as diversas mensagens que havia recebido (a maioria de Lisbela) e coloquei o termômetro em minha boca. Achei que, se o brilho estranho vinha por dentro da minha pele, talvez fosse melhor checar a temperatura interna do corpo... Apesar de eu não ter certeza se havia qualquer diferença de colocar na boca ou embaixo do sovaco.

Aguardei cinco longos minutos desesperadores, ficando vesga para tentar ver a expansão do mercúrio, sem sucesso. Quase comemorei quando o celular vibrou, informando que a espera tinha acabado. Arranquei o termômetro da boca e encarei-o, horrorizada. O mercúrio estava expandido ao máximo, passando dos 42ºC que era o limite da medição. Soltei um suspiro e cocei minha cabeça, sentando no vaso para conter a tremedeira em minhas pernas.

Eu estava doente? Podia ser efeito da droga que Vitor me dera? Se eu procurasse um médico, ele me internaria em alguma pesquisa científica para descobrir como o meu corpo funcionava?

Ali, sentada no vaso, comecei a cogitar a hipótese de ter imaginado toda a coisa com Vitor. E se fosse só efeito da droga? Mas, então, como explicava a mancha de sangue no meu sapato e aquela febre horrorosa que me acometia?

Tinha algo estranho comigo. Tinha algo errado comigo.

Obriguei-me a controlar minha respiração o máximo possível para evitar entrar em pânico. Levantei-me em uma injeção de praticidade e fiquei pelada. Liguei o chuveiro no gelado e me enfiei debaixo dele, quase soltando um gritinho por conta do choque térmico. Mantive-me ali dentro por quase meia hora, tremendo de frio, mas, quando sai de debaixo da água, usei o termômetro novamente e ele mediu 37ºC, quase uma temperatura normal, o que me fez suspirar aliviada, embora meu corpo ainda tremesse, não mais de frio, mas de nervoso.

A aventura da noite estava cobrando o seu preço do meu corpo, o medo do que havia acontecido e de que Vitor acabasse comentando com alguém que fora minhas mãos que queimaram seu peito. Que eu era estranha e brilhava no escuro. Que tinha algo de muito errado comigo.

Escolhi um dos calmantes mais fortes que tínhamos; ele era de Lis, ela tomava nos dias mais difíceis, quando estava com muita dor e preferia dormir. Peguei o comprimido e um copo de água na cozinha, antes de engolir o remédio e marchar para dentro do meu quarto, trancando a porta e torcendo para que Lis e Bia não tentassem invadir meu quarto.

Meu último pensamento antes de adormecer fora que Vitor não devia contar para ninguém o que tinha acontecido. Para falar sobre aquilo, ele teria que explicar que havia me drogado e que estava planejando me estuprar.

Ele não iria contar para ninguém.

Eu estava segura, por enquanto..

Apaguei.

***

Eu dormi por quase vinte e quatro horas seguidas. Meu celular tinha várias chamadas não atendidas e incansáveis mensagens de Bia e Lis pedindo que eu lhes informasse como eu estava. Em algum momento do dia anterior, depois que Bia havia voltado da capital, elas perceberam que eu estava trancada dentro do quarto e não na rua. Tinha foto da fechadura da porta do meu quarto em nossa conversa em grupo e elas se deram conta de que eu deveria estar dormindo, então me deixaram basicamente em paz. Bia ainda mandou algumas mensagens falando da viagem, que Diego tinha sido um fofo e que o hotel que eles ficaram era super chique e romântico e, com poucas palavras, eu tinha entendido que o festival de filmes antigos não tinha sido a parte mais legal da viagem: o hotel e o que eles haviam feito dentro do quarto era o ponto alto da história.

Olhei o relógio do celular e era um pouco antes das sete da manhã da segunda feira (eu perdera o domingo quase por inteiro) e, se eu tivesse sorte, as duas estariam se arrumando para trabalhar naquele momento. Normalmente, era eu que levava as duas para o serviço, primeiro por ser a melhor motorista, segundo por ter mais tempo livre, desde o banco, eu era a última a entrar no trabalho e a primeira a sair. E terceiro porque eu tinha mais afinidade com adaptações do carro para Lisbela e também era forte o suficiente para carregá-la, se necessário.

Porém, naquele dia, a última coisa que eu queria fazer era encarar minhas amigas e as perguntas que elas me fariam sobre a noite de sábado. Iriam querer saber sobre Vitor e sobre o que eu havia descoberto e eu não tinha pensado o suficiente sobre o que eu poderia falar e o que não. Certamente, falar que eu tinha queimado o cara não era algo que eu gostaria de fazer, mas também não sabia se deveria contar sobre ele ter me drogado e me arrastado para um beco, isso, claramente, me colocaria na cena do crime e perguntas poderiam ser feitas. Lis, apesar de ser minha irmã de coração, ainda era uma policial e muito sagaz. Iria pegar minhas meias palavras e ter uma afirmação em poucos segundos.

- Ela ainda não acordou? – Ouvi a voz de Lis por detrás da porta. Conseguia até vê-la ali, parada de frente para o meu quarto, com as mãos nas rodas da sua cadeira e o olhar magoado e curioso em minha direção.

A resposta de Bia foi tão distante que eu quase não pude ouvir através dos estalos de louça que ela, provavelmente, estava guardando no armário.

- Não se preocupa, eu levo você – disse. – Na volta, se você me esperar por uma meia hora e eu der uma corridinha... Bom, vai dar certo.

- Não é isso – ouvi o sofrimento na voz de Lis e suspirei. – Tem algo errado. Ela está dormindo esse tempo todo? Não teve fome, vontade de ir ao banheiro? Não viu nem as mensagens que a gente mandou pra ela?

Na verdade, eu estava morrendo de vontade de fazer xixi e meu estômago se revirou com a palavra comida e eu até tinha olhado as mensagens no celular, sim, mas permanecia ali, escondida, com medo de encará-las.

- A gente não sabe o que aconteceu – Bia respondeu. – Vai ver ela só está cansada.

- Mas o problema é justamente esse – Lisbela insistiu. – A gente não sabe o que aconteceu. – Fez-se um silêncio por um momento enquanto eu sentia a preocupação de Lisbela no ar, quase palpável de tão intensa, e quase me senti mal o suficiente para cruzar o quarto e escancarar a porta antes de me jogar em seu abraço, pedindo desculpas. – Você está pronta? – Perguntou para Bia.

Ouvi o barulho de chaves  e, então, logo a  porta sendo aberta e trancada. Rapidamente, me esgueirei para fora do quarto direto para o banheiro. Fiz minhas necessidades matinais e voltei a pegar o termômetro. Coloquei-o em minha boca, apenas por desencargo de consciência, e, na cozinha, arrumei rapidamente algo para comer: cereais e leite. O micro-ondas apitou que o leite estava quente ao mesmo tempo que o celular avisou que eu já poderia tirar o termômetro. Encarei o mercúrio expandido marcar a temperatura de 39ºC. Suspirei, sacudindo o termômetro, sem saber o que fazer.

Durante a infância, no orfanato, eu tivera muito problema com febres. Eram febres demoradas, que vinham sem motivo nenhum, muito comumente após eu me zangar com algo ou alguém. Passei muitos dias deitada em minha cama, bem coberta, esperando melhorar. Depois de adulta, tinha escutado algumas vezes que minha pele era quente e eu sempre brincava que eu era uma pessoa quente, mas nunca tinha me preocupado com aquela temperatura um pouco acima do normal. Se eu colocasse um termômetro em mim, em um dia normal, tinha certeza que ele mediria algo em torno de 37ºC e 38ºC. A temperatura de hoje ainda era reflexo dos mais de 42ºC de domingo de madrugada e talvez demorasse alguns dias antes que aquele último grau me abandonasse.

Tomei o leite e o cereal e, antes que me desse conta, estava sentada no chão da cozinha, no canto do armário, abraçando meus joelhos. Não havia explicação lógica para a minha temperatura corporal e o que havia acontecido naquele beco. Não havia explicação para outros incidentes em minha vida, também, como  o cabelo da garota que me azucrinava na escola tinha pego fogo sozinho no parque, enquanto brincávamos ou como a maternidade que eu nascera pegara fogo...

Não.

Não.

Não era eu que causava aquelas coisas. Não era minha culpa eu ter ficado órfã porque minha única parente morrera em um incêndio algumas horas depois do meu nascimento. Não era minha culpa, devia haver alguma explicação para todas aquelas coincidências, qualquer outra explicação que eu não era inteligente o suficiente para descobrir.

O fogo e o calor me perseguiam durante toda a minha vida, mas deveria ter qualquer outra explicação. Eu não podia ser culpada da privação de uma família e de toda a ruína que se entranhara durante minha infância no orfanato. Não.

Não.

Antes que eu pudesse perceber, haviam lágrimas rolando pelo meu rosto e eu as sequei com uma esfregada de mãos, decidida. O celular de Vitor podia ter explodido em sua camisa, causando as queimaduras. Eu tinha imaginado o papel por causa da droga. E a febre era apenas uma reação pós-traumática do meu corpo. Decidi que era naquilo que eu iria acreditar, então terminei minha sessão de autopiedade assoando meu nariz e me levantando do chão da cozinha. Eu tinha mais o que fazer do que ficar chorando e me escondendo pelos cantos.

***

Ignorei as mensagens de Bianca e Lisbela o máximo que pude, mas por volta das 15h, eu as deixei saber que estava acordada e bem, indo para academia. Perguntei se Bia queria que eu pegasse o carro na volta e buscasse Lisbela e as duas pareceram bem mais tranquilas com aquela dinâmica. Gastei todas as minhas frustrações queimando calorias e puxando ferro. Eu gostava de me exercitar, principalmente, porque meu trabalho era muito estressante. Mesmo quando fiquei desempregada, continuei indo à academia ao menos quatro vezes por semana, por costume, mesmo. Os exercícios me acalmavam com extrema facilidade e, bom, depois da noite de sábado, se tinha uma coisa que eu precisava era me acalmar.

A academia não era muito lotada naquele período da tarde e era por isso que eu aprendera a gostar daquele horário desde que ficara desempregada. De manhã e à noite, os aparelhos tinham fila e precisávamos revezar. Na maior parte das vezes, era necessário andar com um borrifador para limpar o suor dos outros para que a utilização fosse possível ser realizada.

Eu sentia um prazer descomunal em ficar dolorida com os exercícios físicos. Não sabia dizer o porquê nem como isso funcionava no meu corpo, mas eu gostava o suficiente para sempre estar ali. Mas não era só isso: eu gostava de interação social e tinha facilidade em fazer amigos; a academia sempre foi um lugar propício para conversas sem muito teor intelectual e também era ótimo para arrumar sexo.

Flertei um pouco por ali, obviamente, e conversei com alguns colegas com quem não falava há algum tempo. Estava, obviamente, enrolando para encarar Bia e Lis, mas não podia fugir do inevitável. Por volta das 16h30, marchei para a saída da academia e meus olhos grudaram na sala de atividades, aonde um grupo de mulheres fazia exercícios com sacos de areia. Meus olhos brilharam e, três minutos depois, eu estava matriculada na aula de aerobox. De onde eu tiraria dinheiro para pagar aquilo, eu não sabia, mas depois do que eu tinha passado no final de semana, aquela era uma coisa que eu precisava para, pelo menos, me acalmar. Isso complicaria os horários, um pouco, para buscar Lisbela no trabalho, mas eu tinha certeza que nós encontraríamos um jeito para fazer aquilo dar certo.

Dei uma pequena corrida para o curso de inglês, preocupada com a hora. Bia deveria estar em sala, mas Lisbela saía da delegacia em cerca de vinte minutos e tinha uma paciência bem curta para atrasos – nem era por questões dela, na verdade, mas porque a delegacia não era exatamente adaptada para ela e um colega sempre a ajudava a entrar e sair. Ele a colocava na entrada pontualmente às 17h e, a partir dali, ela recebia algumas olhadas nem um pouco agradáveis de quem entrava e saía do ambiente. O que eu achava? As olhadas tinham mais a ver com o corte Joãozinho de seu cabelo e as camisas de flanela que ela vestia do que sobre a cadeira de rodas, em si.

“Bia, tô atrasada, preciso da chave do carro URGENTE. Correndo praí!” enviei a mensagem enquanto corria em passadas largas em direção ao curso aonde Bia trabalhava no turno da noite, todos os dias. Ela respondeu quase automaticamente, provavelmente deveria estar esperando minha mensagem. “Oi, Tatá. A chave tá na recepção. Só pedir lá. Bjs, n se atrasa”.

Sabendo que parte do problema estava resolvido, apressei minhas passadas para o curso e o alcancei em poucos minutos. Esperei liberarem minha entrada na recepção e corri para a porta de vidro, afobada. Diego estava ali, sentado junto com as meninas da recepção e sorriu ao me ver.

- Oi – ele cumprimentou. Levantou-se e colocou a mão no bolso, tirando a minha chave. – Ele tá do outro lado da rua, caso você não tenha notado. E pode deixar que eu acompanho a Bia pra casa. Tô esperando por ela.

Concordei com a cabeça, afobada. De qualquer forma, achei bonitinho que ele estivesse esperando só pra levá-la em casa. Embora eu achasse que podia ter algo a ver com uma pegação atrás dos brinquedos do play, eu ainda estava feliz por Bia. Despedi-me dele e corri até o carro. Dirigi rápido o suficiente nos limites de velocidade para chegar à DCI às 18h05, o que não caracterizava, exatamente, um atraso. Lisbela já me aguardava na entrada da delegacia e desceu a rampa com cuidado, parando ao lado do passageiro. Dei a volta no carro e dei um beijo em sua cabeça, ao que ela me respondeu com um sorriso de lado. Ajudei-a a passar para o banco, dobrei a cadeira e coloquei-a na parte traseira do carro. Voltei ao motorista e Lisbela estava me encarando com seus grandes olhos escuros incriminadores.

- Então? – Perguntei, quando liguei o carro.

Fingi que não era comigo, não que fosse levar à algum lugar.

- Não vai me contar o que aconteceu? – Questionou.

Eu não queria falar sobre o que tinha acontecido. Eu não queria, nunca mais, lembrar da existência de Vitor na minha vida, o que ele tinha quase feito comigo e nem ao menos o que eu tinha feito a ele. Tudo o que tinha acontecido naquela noite era passível de esquecimento e era o que eu desejava fazer imediatamente.

Infelizmente, Lisbela não parecia disposta a aceitar meu silêncio. Bufou depois de me encarar por dois minutos completos, sem conseguir nenhuma resposta minha. Cruzou os braços no peito e eu tenho certeza que ela pesou o fato de que era eu que a tiraria do carro quando chegássemos em casa, então evitou um confronto antes que aquele gesto simples virasse um grande constrangimento. Embora, pela minha concepção, eu sabia que ela voltaria a me atacar no momento em que estivéssemos fora do carro e, bom, eu não planejava fugir para longe e me esconder, como havia feito no dia anterior, mas também não estava disposta a dividir detalhes do acontecimento que ela queria.

Dito e feito. Porém, Lis esperou que estivéssemos no elevador para começar. Eu tinha dirigido o mais lento possível no retorno, para adiar ao máximo a conversa e, pela hora, se Bia não estivesse se agarrando com Diego no play, ela já devia estar no apartamento, esquentando o nosso jantar.

Assim que as portas do elevador se fecharam e ele começou a subir para o 12º andar, onde morávamos, Lis começou.

- Sabe, quando eu cheguei no trabalho hoje, meu amigo... Aquele detetive que conhece o Vitor, sabe? – Eu continuei impassível, encarando meu reflexo na superfície brilhante da porta do elevador. – Disse que ele estava internado no hospital com algumas queimaduras graves do corpo e algum ferimento na genital que ele não entrou em detalhes. Ele foi encontrado em um beco, algumas quadras além da boate que você foi para pesquisar ele. Tem alguma coisa a dizer sobre isso?

A porta do elevador abriu em nosso andar bem naquele momento e eu apenas saí do ambiente, sem dizer uma palavra. Lisbela me seguiu, quase ladrando, a cadeira fazendo um barulho irritante no piso de madeira do corredor. Parei à porta do nosso apartamento, enquanto ela me xingava, exigindo atenção, e virei a chave, abrindo para que entrássemos. Bia e Diego estavam se pegando no sofá e os dois pularam de susto ao ouvir eu e Lis entrando no apartamento, ela aos gritos e eu impassível.

- O que aconteceu? – Bia exigiu, tão nervosa quanto. Levantou-se do sofá, sem se importar em fechar totalmente sua blusa de botões, que exibia o sutiã rosa que havíamos comprado para ela antes da viagem. – Lis, se acalma. O que aconteceu?

Pareceu, naquele momento, ter notado o quão desarrumada estava. Não corou, e acho que era porque estava acostumada com nós duas e nossas desvergonhices de momentos de intimidade familiar, mas arrumou-se rapidamente, colocando os botões em seu lugar e fingiu que nada tinha acontecido. Diego, por outro lado, estava com uma almofada sobre o colo, nada discreto, e a boca levemente entreaberta, sem compreender a dinâmica rápida de três mulheres em ebulição total.

- O que aconteceu? – Lisbela repetiu, irada. – O que aconteceu é que o Vitor foi encontrado ferido em um beco no sábado à noite e a Tatá não fala nada do que aconteceu. Isso aconteceu. Ela é uma louca, filha duma...

Bia tampou a boca de Lis sob resmungos altíssimos, porém inteligíveis da nossa amiga. As duas me encararam com olhares preocupados e eu acabei cedendo um pouco. Suspirei, olhando para Diego, que parecia um pouco bobo e sem saber o que fazer, no meio daquela dinâmica. Ele entendeu meu olhar rapidamente.

- Ahn... – Ele murmurou. - Eu me vou, meninas – levantou-se e caminhou até Bia, dando-lhe um selinho. Ela até soltou a boca de Lis para acariciar o rosto dele, com um sorriso. – Até quarta, linda. Boa noite pra vocês, meninas. Qualquer... Hm... Problema, me liga, tá? – Ele terminou, dizendo para Bia. E para mim, também.

Murmuramos despedidas e ele saiu pela porta, sozinho. Uma semana de relacionamento e ele já era de casa.

- Então? – Lis insistiu.

Muitas coisas passaram pela minha cabeça pelo breve segundo que demorou dentre a pergunta de Lis e a minha resposta. Pensei em me jogar no chão, chorar e contar tudo o que havia acontecido em um drama que sairia além de mim. Pensei em contar sobre Vitor ter me drogada, sobre a garota no celular dele, sobre o beco... Talvez até sobre o efeito da droga ter me confundido o suficiente para achar que tinha colocado fogo nele. Pensei em muitas possibilidades, mas o olhar de Lisbela me derrubou. Ela já estava suspeitando do meu comportamento e o que faria quando descobrisse que fora eu que abandonara Vitor desacordado e sangrando em um beco, sem nenhum remorso? Mesmo com o que ele havia me feito, ela iria me julgar. Não iria?

Eu me julgava. Um pouco.

Mas, principalmente, por ter sido idiota o suficiente para não perceber quando ele me drogou. Por não ter notado o tipo de cara babaca que ele era no momento em que me beijou, quando eu já estava desconfortável. Por ter passado tanto tempo aos amassos com ele e não ter me dignado a sair mais cedo, quando o efeito da droga ainda não estava tão alto.

Preferi afundar toda a informação dentro de mim. Quanto menos soubesse, menos me julgariam. Eu já me julgava o suficiente.

- Então que ele não presta, Lis, e isso é tudo o que você precisa saber. – eu disse, a voz embargada por toda a informação que eu estava contendo dentro de mim e o medo de que elas jamais me perdoassem pelo que havia acontecido, pelo meu descuido e a minha reação exacerbada pela noite. - Nunca chegue perto dele. – Alertei-a. Se fosse Lisbela, eu pensei, ela jamais teria conseguido fugir. Exceto se a rua fosse uma ladeira, o que não era o caso.

Lisbela me encarou com os olhos arregalados e ela soube, naquele momento, que eu que tinha mandado Vitor para o hospital. Como, não importava, na verdade. Bia demorou alguns segundos a mais para entender e levou as mãos à boca, sem saber como reagir.

- O que ele fez? – Lisbela rangeu os dentes, com raiva. Eu tremi, por dentro, achando que ela só podia estar com raiva do que eu havia feito, destruindo as chances dela com um cara, chutando o seu saco além do conserto, provavelmente. – O que você fez?

As imagens daquela noite se passaram como um filme na minha mente. Eu correndo de Vitor. Ele me segurando pelo braço, me arrastando para o beco. Suas mãos e sua língua, intrusivas. A queimação da adrenalina, seus gritos, suas queimaduras, meu chute e seu desmaio. Pisquei meus olhos algumas vezes, afastando a memória.

- Eu te fiz um favor – disse a ela. – Isso é a única coisa que importa.

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