Capítulo Um: Uma proposta inesperada

Capítulo Um

Uma proposta inesperada

A crise na economia brasileira afetou todo o conglomerado de empresas privadas, causando cortes orçamentários e redução de pessoal, criando pânico em todos os pobres assalariados sem estabilidade.

Eu trabalhava no escritório de uma grande empresa bancária na época. Dez anos de casa e um rendimento muito bom. Todas as agências da região que era de minha responsabilidade haviam batido a meta de vendas nos últimos dez meses e esse era um feito e tanto em anos normais, mas em era de crise... Era estupendo.

Para falar a verdade, eu e meu ego estávamos esperando uma promoção a qualquer momento.

Acho que nunca poderia ter previsto o que aconteceu, que aquilo estava vindo voando em direção à minha cabeça. Por alguns momentos, me esqueci da realidade que gritava ao meu redor desde que eu viera ao mundo: eu era mulher. E estava fadada a sofrer por causa disso.

É claro, houve uma complicação. Há pouco mais de dois anos, tive um affair com um rapaz no escritório. Não foi o primeiro que me envolvi no trabalho, embora eu sempre tentasse evitar, esse tipo de coisa sempre acabava acontecendo. Eu tinha a cabeça nas nuvens e era só um homem razoavelmente interessante demonstrar que gostava da minha companhia e eu já estava arrastando-o em uma série de piscadelas, charmes e decotes abusados até que acabássemos dividindo um edredom.

Nunca houveram muitos problemas, até Vinícius. Porque, bom, Vinícius era chefe de todo o escritório.

E casado.

Começamos a dança do acasalamento apenas algumas semanas após ele assumir o cargo; estava vindo da grande São Paulo por algum motivo a qual eu nunca me atentei de perguntar. Ele era bonito, inteligente, tinha umas ideias loucas e novas que amarraram minha atenção no segundo em que pus meus olhos nele. Não demorou muito até que ele pusesse os olhos em meus decotes abusados e passasse a ouvir minhas sugestões.

Por dois meses, ficamos nessa de trocar elogios e cantadas baratas. Eu sabia que ele era casado, então, e fiquei um pouco balanceada. Entre meus colegas, porém, rolava um boato de que o casamento dele não ia muito bem e que a esposa tinha ficado em São Paulo e também algo sobre o divórcio já estar em andamento. Não que eu tivesse interesse em algo sério com ele, na verdade, mas me sentiria mal pela esposa caso acontecesse. Aquele boato foi o suficiente para que meu bom senso me abandonasse e eu voltasse a investir em Vinícius.

Ele era alto e forte – forte no estilo um pouco gordo. Parecia um grande urso, imponente e respeitável, do tipo que só a presença põe ordem no lugar. Tinha os olhos em cor de amêndoa e seu cabelo e barba (quase sempre muito bem feita) já tinham os sinais dos seus quarenta e poucos anos, com alguns fios grisalhos. Mas isso era só a cereja no topo: sua inteligência sempre fazia com que minhas pernas parecessem gelatinas e eu tinha que respirar de forma bem ridícula para acalmar meu coração antes das reuniões.

Um dia, ele me chamou para jantar. Um jantar de negócios, ele disse, para definir uma estratégia para as agências que eu comandava, em uma das regiões mais pobres de Santos. Um jantar de negócios, ele disse. Eu fingi que acreditei e vocês também podem fingir que foi isso que aconteceu.

Ele me levou em um restaurante caro, pago pela empresa. Conversamos sobre as estratégias durante os primeiros dez minutos e ele começou elogiando meu cabelo. Quando viu que eu estava gostando e dificilmente o denunciaria por assédio, as coisas começaram a tomar outro rumo e a noite acabou em seu apartamento. Não era muito distante do que eu divido com a minhas amigas, mas infinitamente maior e mais luxuoso. O que eu tenho a dizer sobre aquela noite é que sua cama era muito confortável e, bem, ele fazia as coisas direito.

O clima no escritório parecia favorável para mim, ele sempre ouvia meus projetos e me colocava acima dos outros. Estava tão feliz... Saímos por cerca de três meses antes que ele me chamasse para conversar e dizer que não poderíamos nos ver mais por motivos de ética no trabalho. Os outros começavam a suspeitar, ele disse, mas jamais deixaria de me tratar do jeito que eu merecia; eu tinha realmente boas ideias e era muito bonita e inteligente, ele disse. Seria como se nada tivesse acontecido, precisava ser assim. Bom, realmente foi assim.

Paramos de sair e ele passou a me ignorar nas reuniões, claro. Imaginei que duraria um tempo, para fingirmos que nada havia acontecido, então permaneci calada e passei a nem sugerir mais nada, mas a continuar a fazer meu bom trabalho sozinha, com minhas próprias estratégias, apesar de ser recomendada a seguir outras. Não demorou nem um mês para a esposa retornar de São Paulo. Fiquei sabendo, após isso, que ela apenas estava demorando para conseguir transferência de sua faculdade e da escola das crianças. Precisaram terminar o ano escolar para conseguir com mais facilidade, nenhum divórcio jamais tinha sido mencionado em algum momento do relacionamento deles.

E eu, claro, tinha sido usada.

Foi duro por algum tempo. Piorou quando um dos meus colegas, que havia me chamado para sair e eu recusei (agora muito mais assustada em ter um relacionamento com alguém no trabalho depois do que eu estava passando) espalhou o boato de que eu e Vinícius transávamos, mas que agora eu tinha sido jogado fora. A parte que doeu era que era verdade, claro. Tive alguns dias ruins em que eu me trancava no banheiro para chorar e continuar fingindo que tudo estava bem.

Minhas amigas insistiram que eu largasse o emprego muitas vezes. Eu estava infeliz, não era o máximo de infelicidade que eu já tivera, mas estava infeliz. Arrastava-me para fora da cama até o trabalho como se estivesse indo para forca, e isso era completamente diferente da animação que Lisbela e Bianca tinham para ir trabalhar, e até mesmo eu há algumas semanas antes daquele incidente.

Em algum momento, o boato se dissipou e virou algum sussurro distante incômodo de fofocas de banheiro. Vinícius começou a me tratar como uma funcionária normal e parou de me ignorar totalmente – era claro que não ouvia mais todas as minhas sugestões, mas uma ou outra eram colocadas em prática. A vida pareceu a voltar aos eixos e, com isso, voltei a amar meu trabalho.

Alguns rapazes tentaram se aproximar de mim após tudo se acalmar. E, bom, as coisas ficaram esquisitas. Os dois primeiros a me chamarem para sair, foram transferidos sem aviso prévio para uma unidade mais afastada – para agências, o que era uma espécie de rebaixamento. O terceiro foi demitido. Houve um quarto, que quando eu o abordei perguntando se estava tudo certo para o nosso encontro, gaguejou e disse que não iria dar certo. Foi quando eu pude ver o padrão. Cheguei a lançar alguns olhares magoados para Vinícius: por que ele achava que era dono da minha vida sexual?

Foi mais ou menos por aí que a crise nos acertou com força e eu me rebolei para manter os meus índices de sucesso e metas. Comecei a passar menos tempo no escritório e mais tempo nas agências, conversando com os funcionários cara a cara. No chão de fábrica, como dizem. Estive na boca do lobo, assumi a pressão junto com os meus gerentes e caixas e, ao contrário de toda a rede, nossos números subiram. Meus outros colegas tinham dificuldade para sequer manter as mesmas metas de antes da crise e eu estava decolando.

Também criei um costume de festas e baladas por aquele ano. Minhas amigas quase não conseguiam me acompanhar. Bianca era mais na dela, mais calma, e Lisbela, apesar de querer me acompanhar quase sempre, tinha uma dificuldade de encontrar lugares acessíveis e, bom, nunca era exatamente fácil levá-la para uma festa. As pessoas não eram sempre preparadas para lidar com ela.

Depois de quase um ano com aqueles resultados maravilhosos, vagou um cargo similar ao de Vinícius. Na verdade, devido à crise e aos cortes de pessoal, o rendimento do banco havia caído pela metade e criou-se um cargo para que pudesse ser feita uma análise mais acertada da região da baixada santista. Vinícius, que cuidava de toda aquela área, teria suas funções divididas pela metade com uma nova pessoa. E, bom, eu estava pronta para a minha promoção. Era a escolha óbvia, não era?

Quando, em uma manhã de quinta-feira, Vinícius me chamou em sua sala assim que eu cheguei no escritório, eu já estava me imaginando em uma sala gigantesca com uma cadeira de recostar e uma pilha de papéis de dados para analisar. Estava empolgadíssima.

- Me chamou, chefe? – Bati em sua porta aberta com um sorriso confiante. Vinícius levantou o olhar dos papéis que analisava e tampou a caneta iluminadora que usava para apontar algumas coisas do que lia.

- Bom dia, Tainá – ele disse, virando-se para mim. – Pode entrar, e feche a porta, por favor.

Olha, uma conversa sigilosa. Parecia extremamente promissora. Abri ainda mais meu sorriso enquanto fechava a porta e caminhei até a cadeira à frente de sua mesa, me sentando. Vinícius uniu suas mãos por sobre a mesa e me analisou com um olhar de águia. Foi mais ou menos por aí que eu achei que as coisas não podiam estar tão certas quanto eu achava que estavam.

Meu coração disparou.

- Tainá, você está em nossa empresa há cerca de dez anos, passou por diversos cargos e subiu rapidamente. Começou como estagiária, ficou algum tempo como caixa e logo foi subindo. Aos 24, você era a mais nova super-intendente do país. E estagnou.

Pronto, eu estava de olhos arregalados agora. Estagnar não era uma palavra muito boa, mas será... Será que ele estava sugerindo que eu deveria içar voos mais altos agora? Parecia uma boa continuação de discurso.

“Não é que seus resultados não sejam bons, eles são um dos melhores da baixada santista, mas você dificilmente demonstrou maturidade comportamental em seu ambiente de trabalho... E a maneira com que você se envolve com... Hm... Colegas de trabalho é um pouco perigosa e, certamente, nem um pouco recomendada”.

Como assim? Minha cabeça estava gritando pela hipocrisia que eu estava ouvindo. E desde quando minha vida pessoal interferia em meu trabalho? E não fora ele mesmo quem se envolvera comigo? Mesmo casado?

“Estive ouvindo reclamações dos meus superiores e do RH sobre boatos que rolam na empresa com o seu nome. Tenho certeza que você já ouviu alguns deles e não cabe a mim repeti-los para você. Estive brigando pela sua competência por meses a fio, tentando mantê-la como minha funcionária pelos resultados que eu tinha como comprovar que você dá e, bom, tudo seria mais fácil se eu não soubesse que parte dos boatos são... Verdade.”

Não. Não. Isso não podia estar acontecendo comigo. Não podia.

“Semana passada, você chegou pós feriado com cheiro de bebida no escritório. Não demonstrou estar bêbada e fez seu trabalho bem, como sempre, mas o Sérgio Augusto estava aqui e, junto aos boatos anteriores de sua conduta, ele me perguntou como eu poderia mantê-la trabalhando aqui. Você sabe, nossa empresa é tradicional e não aceita determinadas coisas e determinados comportamentos; você esteve andando por cima da linha do limite por boa parte do seu contrato”.

Sérgio Augusto era o superior de Vinícius e eu jamais soubera que ele estava no escritório naquele dia. Eu realmente tinha chegado cheirando a bebida – tinha ido à uma festa de aniversário de um dos colegas de Bianca e Lisbela tinha conseguido derrubar cerveja em meu cabelo. Eu não fazia ideia de como aquilo tinha acontecido, mas o cheiro permanecera depois de lavar meu cabelo. Não tinha nada que eu pudesse ter feito; apenas tentei mascarar com um perfume, mas, aparentemente, não tinha dado certo.

“Seu aviso chegou na primeira hora da manhã. Preciso que você assine e retire suas coisas o mais rápido possível. O agendamento da baixa da carteira está feito e você vai ter que procurar a Carina no sindicato. Eu ou alguém do RH devemos estar lá para dar a tua baixa. Sinto muito”.

Eu devia estar tendo um pesadelo. Era a única explicação lógica para me mandarem embora depois do tanto que eu rendia para aquele inferno de lugar. Não tinha como ser qualquer outra coisa... Eu...

- Isso é uma pegadinha, não é? – Eu perguntei, sem me importar nem um pouco com o meu orgulho. – Você já viu meus gráficos? Eu estou fazendo o dobro das metas toda merda de mês, o segundo colocado mal consegue bater as metas! Vocês tem o que na cabeça? Cocô?

Vinícius esfregou as têmporas e respirou fundo, tentando manter a paciência perante o meu mal comportamento claro e óbvio.

- Tainá, eu sei bem como é sua competência, mas um bom funcionário tem que ter boa conduta também, o que não é o seu caso. Você mal conversa com seus colegas de trabalho e quando o faz, é para discutir a plenos pulmões por coisas pequenas. Suas roupas nem sempre estão no padrão da empresa – ele apontou para mim e o que eu vestia, uma saia social no meio da coxa e uma blusa de botões com dois de cima abertos, além de um sapato fechado de salto que era bem confortável. – Você atrai seus colegas, sai com eles... Eu estive tentando afastar quem se aproxima de você com outros interesses para abafar os boatos, mas você não se corrige. Todos os feedbacks dos últimos anos tem pontuações sobre seu comportamento e suas roupas... Eu tentei manter você, você é uma ótima funcionária e tem ótimas características, mas isso foi um pedido de cima e eu não pude mais argumentar. Você mesma fez sua forca.

- Eu fiz minha forca quando dormi com você, achando que você era um cara legal, triste por estar se separando da esposa. Mas sou eu que tenho conduta ruim, não é? Não o cara que dorme com as colegas de trabalho às escondidas da esposa, né? Você acha que eu não sei da Sthefany? Da Carla? É esse tipo de conduta que a empresa tradicional quer de seus funcionários mesmo? Entendi tudo!

Levantei-me com fúria e tive que contar até dez para não virar o monitor do computador na cara dele.

- Tainá, por favor... Se acalme.

Ah, ele queria que eu me acalmasse porque eu tinha certeza que toda a repartição estava ouvindo aquilo. Se eu ia me afundar, eu pretendia arrastá-lo junto.

- Você é uma merda de um canalha, Viny – eu disse, chamando-o pelo apelido que o chamava quando estivemos juntos. – Talvez eu faça uma visita para a sua esposa assim que eu conseguir sair dessa espelunca.

Pisei para fora do seu escritório batendo a porta com força – quem ainda não tivera a atenção em mim até aquele momento... Bom, agora estava me observando também. Fui até a minha mesa e comecei a recolher meus objetos pessoais – dois porta retratos: um com uma das únicas fotos da minha mãe que eu tinha e um com as minhas amigas. Um carregador de celular em formato de sapato de salto vermelho, uma caixa de guloseimas e barrinhas de cereais que eu deixava escondido em uma das gavetas, além da minha carteira e da chave reserva do meu apartamento e do carro que eu dividia com as minhas amigas. Havia também uma pequena agenda telefônica com números de emergência. Estava tudo dentro da caixa de guloseimas antes que Vinícius tivesse atravessado o escritório até a minha mesa, na intenção de me conter.

- Tainá, vamos conversar com calma...

- Eu não vou conversar mais merda nenhuma sobre essa hipocrisia escrota dessa empresa. É ridículo. Ainda bem que eu estou indo embora. Não vou ficar nem mais um segundo nessa espelunca de merda. Fujam enquanto podem, meninas – gritei para as minhas colegas.

Vinícius, se fosse capaz de ficar vermelho, teria ficado, mas seu tom de pele escura apenas empalideceu um pouco com minhas ameaças vazias e minha gritaria sem sentido.

- Você nem assinou seu aviso! –  Ele tentou segurar-me pelo pulso.

Sacudi-me até que ele me soltasse, com fúria. Um dos porta-retratos – o da minha mãe – caiu no chão e se espatifou. Um colega próximo pegou e colocou na caixa novamente para mim, me dando um sorriso quase compreensivo. Teria sorrido de volta, se pudesse, mas eu estava em puro fogo de ódio.

- É esse o problema? – Marchei com a caixa de volta a sala de Vinícius e rabisquei meu nome no papel que estava em cima da mesa. O “Bonfim” ficou quase irreconhecível dentre o malabarismo para manter a caixa e a raiva que dominava meu corpo. Vinícius estava entrando em seu escritório novamente quando eu terminei. Joguei o contrato na cara dele, deixando o estupefato quando eu passei por ele como um furacão.

Entrei no elevador tremendo de raiva e apertei o botão do térreo tantas vezes, pensando que talvez isso fizesse o elevador chegar mais rápido ao seu destino e acabasse logo com a minha humilhação. Assim que a porta do elevador fechou, achei ter escutado alguns gritos e palmas, mas dificilmente saberia se era pelo furacão que eu causei ou por eu ter sido demitida.

Eu achava que era o primeiro caso.

Mas talvez fosse só meu ego.

***

- Você realmente foi falar com a esposa dele? – Bianca estava horrorizada.

Lisbela riu e nós nos encaramos em um momento quase telepático. Na verdade, após sair do escritório, eu tinha passado na delegacia onde ela trabalhava e desabafado um pouco com ela. A partir dali, ela tinha me incentivado a procurar a esposa de Vinícius, mas eu estava um pouco com medo de que ele já a tivesse alcançado-a para me impedir. Então, alguns momentos mais tarde, Lisbela tinha o email e o w******p da esposa dele e, bom, nós encaminhamos algumas fotos comprometedoras. Para bom entendedor, uma imagem vale mais que mil palavras e uma palavra já bastaria.

- A gente mandou um email – eu lhe disse. – Ele vai ter o que merece.

Bianca estava andando de um lado para o outro, de nervosismo. Eu revirei os olhos e Lisbela rolou para fora do caminho da nossa amiga. A roda prendeu um pouco no tapete, mas ela logo se desvencilhou. Era sinal que a peça deveria desaparecer assim que ela fosse para o quarto e a tarefa seria obviamente minha, já que Bianca sequer prestara atenção naquele pequeno incidente.

Para entender um pouco da nossa dinâmica, eu devo voltar ao fato de que nos conhecemos no orfanato. Bianca e eu demos entrada no lugar quase ao mesmo tempo; ela era um pouco mais de um mês mais velha que eu. Foi abandonada pela mãe um pouco depois de um mês de vida. Eu, que só tivera a minha mãe, fora sobrevivente de um incêndio na maternidade que nasci. Lisbela apareceu alguns anos mais tarde, seus pais tinham sido assassinados. Dentre nós, ela tivera mais sorte: ganhara uma pensão bem considerável do pai, que era militar. Pensão, esta, que ela tentara manter depois dos 21 anos, quando se encerrou. Ela estava terminando a faculdade e não tinha para onde correr e, bom, seu namorado, que trabalhava justamente com benefícios, a convenceu que seria bom fraudar alguns documentos para ela continuar com a pensão. Eles invadiram o escritório durante a noite com a desculpa de que ele havia esquecido o celular. Lisbela, então, invadiu a rede de computadores, como uma boa hacker, quase formada em engenharia da computação, e alterou alguns dados para conseguir sua pensão por mais alguns anos.

A fraude foi descoberta em um pente fino poucos meses mais tarde. Ela e o namorado foram presos. Bianca e eu estávamos nos formando na faculdade bem naquele ano, as duas aos trancos e barrancos, e eu já estava trabalhando no banco. Nós duas morávamos na capital do estado e Lisbela estava em Santos. Ela não durou nem seis meses na prisão: em um motim, acabou levando um tiro na coluna que a deixou paraplégica. Fez um acordo com a polícia local que a liberou da prisão e, por algum motivo, acabou trabalhando na delegacia de crimes virtuais da cidade. Eu pedi transferência para Santos porque ela precisava de cuidados para se adaptar e Bianca começou a distribuir currículos nas escolas e cursos da cidade. Foi mais ou menos assim que as três chiquititas perdidas acabaram morando juntas em Santos.

Tudo o que nós tínhamos era adaptado para Lisbela. O apartamento, o carro, nossos horários... Nós éramos a família uma da outra e nós cuidávamos uma da outra de uma forma que eu não saberia colocar em palavras. Éramos tão diferentes, na maior parte do tempo, mas aquelas eram minhas irmãs. Eu nem exatamente as escolhi – foi o acaso do abandono e das mortes, além de todas as coisas ruins que passamos juntas e nos sustentamos para que fosse mais fácil –, mas eram minhas.

Bianca era a sensível. Havia uma teoria em mim e em Lisbela que sua insegurança vinha do fato da mãe tê-la abandonado –depois de ter lhe passado uma doença durante a amamentação. Ela era professora de inglês e português, também trabalhava com traduções de livros nas horas vagas. Era doce, sensível e adorava crianças. Era voluntária em alguns orfanatos, também. Lisbela era mais bruta, e Bianca achava que isso era porque ela andava mais com homens na maior parte do dia, ela não tinha cuidado com o que dizia e não era muito organizada, o que nós relevávamos bastante, mas vivia dando problemas em casa. Eu era a foguenta, a esquentadinha, a safada, devoradora de homens e arrasadora de festas.

Como a gente funcionava? Bom, esse é um dos mistérios do universo que, um dia, eu irei de desvendar.

- Você pode ter destruído um casamento, sabia? – Bianca ralhou comigo, mesmo que tivesse sido Lisbela a clicar no botão de enviar do email. – Ele tem filhos, Tatá, o que você tava pensando?

Eu tinha um discurso inteiro para fazer, mas Lisbela rolou para frente de mim, ficando de frente para Bianca e levantou a mão, pedindo permissão para falar. Sabia que dificilmente meus argumentos acalorados pela raiva fariam Bianca entender meus motivos, permiti que Lis o fizesse por mim daquela vez. Não que ela fosse muito centrada, também, mas por não estar diretamente envolvida, talvez fosse uma escolha melhor.

- Quem destruiu o casamento foi ele, dormindo com um monte de mulher. A Tatá só avisou para a esposa que ele era um canalha, que mal há nisso? – Ela fez uma manobra e virou-se para mim. – Se algum cara estiver me enganando e você souber, por favor, me avise, sim?

Eu estava quase rindo, mas sabia que uma gargalhada naquele momento faria Bianca ficar zangada (mesmo que isso fosse quase raro o suficiente), logo agora que ela começava a ceder ao nosso ponto. Bianca parou de andar de um lado para o outro e encarou Lisbela com raiva, o que era engraçado. Parecia um gatinho com seus grandes olhos esverdeados demonstrando mágoa sem perder a fofura.

- Mas os filhos deles não tem culpa. Nem a mulher dele tem culpa – ela pontuou.

Isso encheu meus pulmões de raiva. Eu tinha ficado com Vinícius apenas porque achei que ele estava se separando. Ele tinha deixado a entender que sim e, com a família morando em outra cidade, pareceu-me óbvio que estava falando a verdade. Então tudo começou a dar errado e eu percebi que ele estava mentindo. Era minha culpa, então? Não dele, mas minha e de sua esposa? Ou só minha?

- Exatamente! – Eu e Lisbela falamos. Nos encaramos por um momento, com sorrisos no rosto, ela virando a cabeça por cima do ombro para me olhar. Continuei. – Por que a esposa dele tem que continuar a conviver com esse cara, sem saber que ele é um canalha ridículo? Eu me livrei dele e achei que era melhor dar um aviso a ela. Foi só isso. A partir de agora, é com ela, o que ela vai fazer e tudo mais. Ela pode querer continuar com ele também, se quiser. Só que vai estar ciente do que ele faz.

Bianca não pareceu muito convencida, mas algo em seu rosto me informou que seus argumentos não durariam muito mais. Ela só estava chateada que havia algum risco de crianças acabarem se afastando do pai – como nós mesmas fomos privadas de tais carinhos.

- Você só fez isso porque ficou com raiva de ser demitida, Tatá – Bia continuou ralhando comigo. – Isso não foi certo.

Mordi meu lábio porque, bom, ela tinha razão. Eu não tinha argumentos contra aquela lógica, estava ardendo em raiva e queria me vingar de Vinícius de alguma forma – aquela foi a única coisa que encontrei. Por sorte, Lisbela estava do meu lado da batalha e puxou aquela parte do argumento para ela.

- O motivo não foi nobre, mas a atitude foi – Lisbela levantou o braço e curvou a mão como se estivesse apresentando um produto. Coloquei minha carinha sorridente sobre sua palma, piscando meus olhos para Bianca, que revirou os seus. – Dê um ponto pra ela.

Bianca suspirou e deixou cair os ombros, finalmente desistindo de guerrear conosco por algo que não poderia ser mudado. Nossa gracinha tinha feito com que ela abandonasse a batalha e arriscasse um sorriso idiota no rosto, como se não conseguisse lidar conosco e nossas palhaçadas.

- Tudo bem, vai – disse. – Vou dar um desconto. Mas ainda não acho certo.

- Ótimo! – Lisbela bateu palmas. – Agora vai colocar uma roupa menos moça do campo porque a gente vai sair pra comemorar.

- Comemorar o quê? – eu perguntei, meio risonha, meio chateada.

- A sua libertação das garras do mercado econômico! – Lisbela riu e eu tive que espelhá-la.

***

Apesar dos primeiros dias depois da minha demissão terem parecido mais como férias, logo o ócio me pegou em um péssimo momento. Ficamos eu e Preguiça em casa, enquanto Bianca e Lisbela trabalhavam.

Ah, antes que eu me esqueça: apesar de eu ter um bocado de preguiça em meu corpo as vezes, Preguiça é o nome da gatinha de Bianca, que ficava me fazendo companhia.

O problema todo era que eu sempre gostei de trabalhar e sempre trabalhei. Desde que ainda estávamos no orfanato, tínhamos nossas tarefas e eu gostava de fazê-las. Depois que comecei a trabalhar para conseguir meu sustento e continuar na faculdade, não parei mais. Estive na mesma empresa por quase uma década inteira e agora tudo tinha sido tirado de mim.

Acabei em uma coisa bem triste: jogada no sofá, com uma gata deitada na minha barriga e fazendo maratonas de séries nem tão boas assim na Netflix.

Mas o pior de tudo era que, embora minha rescisão contratual tivesse me dado algum montante de dinheiro, eu tinha uma vida um pouco cara para os padrões do desemprego e o dinheiro começou a escoar dos meus dedos enquanto eu pagava as contas remanescentes de quando ainda estava empregada. E ainda tinha o valor que pagávamos pelo apartamento e, bom, depois de dois meses paradas e três entrevistas sem sucesso, eu não tinha mais muito o que oferecer para minhas amigas. Estava morrendo de vergonha de falar para elas que, se eu pagasse minha parte do apartamento mais um ou dois meses, não teria o suficiente para comprar nem comida para casa ou gasolina para o carro. E o seguro desemprego era muito abaixo do que eu costumava receber.

Eu adiei ao máximo, até a semana que elas recebiam o pagamento, e chamei-as para conversar. Preparei um jantar bem legal, macarrão com almondegas e fiz um agrado de comprar um vinho para amolecer o coração delas. Após estarmos as três satisfeitas com a refeição, Bianca já me encarava com olhos suspeitos antes de eu começar a contar sobre meus problemas financeiros para elas.

- Posso cuidar da casa enquanto isso. Eu limpo, lavo a roupa de vocês, faço a comida... É só até eu conseguir outro emprego, então eu pago todas as prestações que eram minhas pra vocês... Eu...

Estava tão envergonhada. Eu era a que ganhava melhor de nós três e sempre estava lá para as emergências. Eu tinha comprado o carro para Lisbela quase sozinha quando fui promovida para super-intendente e nunca tinha pedido dinheiro emprestado para ninguém. Estava me sentindo super mal sobre aquilo tudo.

- Tatá, pelo amor de Deus, você não precisa nem pedir – Bia atravessou a mesa em uma corrida só e passou os braços ao redor de mim enquanto eu escondia o rosto, envergonhada.

Lisbela rolou em nossa direção também e senti sua mão esfregando meu braço em uma demonstração de carinho desajeitada.

- Tatá, a gente já meio que sabia que isso ia acontecer – ela murmurou. – Tá tudo bem, a gente vai manter tudo em ordem até você conseguir um novo trabalho. Não precisa pagar a gente não.

- Claro que preciso! – Exclamei, desvencilhando-me do abraço de Bianca. – Eu vou dar um jeito, eu... Posso fazer docinhos. Posso vender docinhos. Meus docinhos são bons, não são?

Pela cara que Lisbela fez: ela não queria me dizer que não eram. Urg, eu precisava de um novo plano.

- Você não precisa pagar nada por enquanto, Tá – Bia insistiu. – É sério. A gente vai dar conta. Só relaxa e continua procurando o emprego. Pode fazer a comida, se quiser. Mas de resto, não tem problema.

Eu balancei a cabeça negativamente com tanta força que foi uma surpresa ela não ter desencaixado e saído rolando por aí.

- Não é justo – eu murmurei. – Eu posso pegar café pra vocês, é sério. Qualquer coisa que vocês precisarem, eu faço. Qualquer coisa mesmo.

- Você vai limpar minha bunda? – Lisbela perguntou.

- Quase qualquer coisa – corrigi, fazendo-a cair na gargalhada.

Bianca, porém, estava absorta em seus pensamentos e mordeu o lábio com as minhas palavras. Sabia que ela precisava de algo e me curvei para ela, querendo saber logo o que era. Cutuquei-a, sorrindo, passando uma tranquilidade para que ela pudesse falar.

- Tem um cara – ela murmurou, envergonhada. Lisbela assoviou, empolgada. Não era comum Bia “ter um cara”. – Ele é professor também, tem duas turmas no inglês e a gente conversou algumas vezes. Ele me chamou pra sair e ele parece legal, mas eu tô com medo, sabe, de falar pra ele... E ele não querer mais sair comigo.

- Bia, se ele não quiser sair com você por causa disso, ele não te merece – murmurei.

Ela se sentou na cadeira ao meu lado, parecendo derrotada. Já tinha se magoado algumas vezes por conta da mesma situação e não era surpresa que se sentisse tão insegura quanto aquilo agora.

- Eu sei, mas eu meio que entendo. Quero dizer, você não se assustaria se um cara te dissesse que é soropositivo?

- Bia... – Murmurei. Aquele era um assunto tão delicado, Bia era sempre super sensível quanto aquilo. Só descobriu aquela situação já quando maior de idade e ela ainda era virgem, o que nos levou a crer que a mãe havia lhe passado durante a amamentação, antes de lhe entregar para o orfanato. E isso tinha afetado ela de todas as formas. – Eu ficaria com cuidado, sim, mas não ia exatamente me assustar. A gente sabe como funciona.

- Mas ele pode não saber, e, sabe, não tem muita gente falando sobre isso – ela parecia realmente chateada e com medo. – Mas e se você saísse com ele e dissesse que é soropositiva em meu lugar? Se ele não ligar, tudo bem, melhor pra mim, mas e se ele... Se ele... Bom, você ia me poupar de mais uma humilhação.

- Ai, Bia... – Murmurou.

Lisbela estava quieta até aquele ponto e eu encarei-a por um momento. Ela deu de ombros porque compreendia os pontos. Eu mesma compreendia. Só estava chateada da minha amiga sofrer tanto na mão de caras que não a mereciam.

- Você disse que faria qualquer coisa – Bia me acusou.

- Quase qualquer coisa – Lis a corrigiu. – Ela se recusou a limpar minha bunda.

- Você não pode fazer isso? – Bia a ignorou. – Por mim?

Modi a boca por dentro e suspirei profundamente. Se eu podia livrar minha amiga de uma decepção?

- Tudo bem – eu concordei. – Como eu encontro esse cara?

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