1982 - II

Thomaz totalmente desiludido se levanta e vai para o vestiário mancando, no meio do caminho encontra seu melhor e talvez único amigo de verdade na escola, Jonas, um garoto negro franzino que nos dias atuais seria rotulado como “nerd”, frequentava educação física apenas para cumprir a carga horária, mas não participava dos exercícios, ficava em um canto lendo algum livro de química ou física, ele não entendia este amor que a maioria dos meninos tinha pelo futebol, “_Qual a graça de um bando de caras correndo atrás de uma bola?”, mas ele respeitava a paixão de seu amigo Tom.

_Ei cara! Não pode deixar que eles façam isso com você. – Jonas sente compaixão pelo seu amigo.

_Eu sei disso, um dia isso vai acabar. - Tom respondeu com muito desânimo e seguiu seu caminho, entrou no vestiário onde chora muito e revoltado com tudo desfere socos na porta de metal do seu armário. Saindo do vestiário passou pela quadra onde o jogo já havia acabado e parou para ouvir da arquibancada as palavras do professor Mateus:

            _Bom, turminha, eu ainda não fechei o time, tenho duas semanas para escolher os jogadores, ou seja, quatro aulas para montar a equipe e estou com muitas dúvidas, faremos outras seletivas, preparem-se ok?

            Esta declaração animou Thomaz, ele ficou feliz em saber que talvez ainda tivesse uma chance.

            Fim do período escolar, Tom entra na Kombi do Tio Zé e parte para casa, olhando pela janela ele vê a dupla de mal – feitores caminhando pela calçada, sentindo muita repulsa, ele encosta a cabeça no banco do veículo e fecha os olhos, imaginando um mundo diferente, onde pudesse simplesmente ser ele mesmo, sem se preocupar com “aqueles” que por algum motivo não gostavam dele. O que mais lhe doía era exatamente este detalhe, não ter ideia do porquê de tanto ódio dos meninos com ele. Por vezes Tom tentava lembrar-se de algo que pudesse ter feito para despertar a raiva da dupla infernal, algo que tivesse feito e ofendido ou de alguma forma prejudicado um deles ou os dois, todavia, nada vinha em sua lembrança, era um mistério que talvez nunca chegasse a desvendar.

            Após uma caminhada de quatro quarteirões, Rubens se despede de André e entra em uma rua pequena sem saída, conhecida como “vielinha”, desanimadamente ele abre um pequeno portão e entra em casa, sua mãe de dentro da residência escuta o ranger do portão e dá um grito.

            _Rubinho! Querido! Seu almoço está pronto, pode se servir. – Era um grito fino e estridente que arrancou um grande sorriso do rosto de Rubens.

            _Valeu mãe! – Ele correu para dentro de casa, fazer o que mais amava nesta vida, comer.

            Um quarteirão depois André desce sua rua, e mais dois quarteirões depois chega á sua casa, era bem simples, entrou pelo portão e em seguida subiu dois degraus que davam em uma área coberta, ao abrir a porta de entrada viu seu pai sentado em uma poltrona assistindo tv.

            _Porque demorou vagabundo? – Odervan era um homem ignorante e alcoólatra, seu vício o mantinha a maior parte do tempo sem emprego e era comum descontar na esposa e no filho.

            _Vim direto da escola pai. – André respondeu enquanto passava em frente de seu pai seguindo para o seu quarto, repentinamente levou um pontapé no traseiro.

            _Sai da minha frente cretino! – O homem estava nitidamente embriagado.

            Da cozinha sua mãe, Angela, gritou com aflição em sua voz.

            _Odervan! Deixe o menino em paz!

            O homem enfurecido levantou-se e foi até a cozinha.

            _Como é que disse sua vagabunda? – Ele chegou dando um soco na cara dela, André correu para segura-lo.

            _Para com isso pai! – neste momento André também levou um soco que lhe acertou as costas.

            O homem embriagado virou-se para acertar sua esposa novamente, mas André o empurrou, ele caiu por cima do fogão derrubando duas panelas de comida no chão e batendo a cabeça na pia. Odervan ficou atordoado e consequentemente foi se acalmando, enquanto Angela, mesmo após ser agredida e estar com o olho roxo, foi socorre-lo, André tinha o ódio estampado em seu rosto, chutou uma das panelas que caíra próximo dele e foi para seu quarto.

            Dentro de seu espaço, sentou-se na cama e ligou seu radinho no volume máximo, não queria ouvir nada, estava sentindo o ódio percorrer lhe as veias. Ele não entendia o porquê de sua mãe ser tão maltratada e ainda assim se preocupar com seu pai, um homem ignorante que não respeitava a própria família. Enquanto André estava ali ofegante, remoendo a raiva que sentia, uma voz sinistra e maligna lhe perturbava a mente.

            “_Porque você não acaba com a vida desse animal? Vai lá, acaba com ele e seja feliz com sua mãe. Aquele homem faz o que faz porque você é um maricas, medroso, não tem coragem.” – A voz ia inflamando André por dentro até que ele deu um longo grito de horror com as mãos tampando os ouvidos e os olhos arregalados, um urro misturado com desabafo para se livrar daquele tormento.

*

            De volta pra casa, Thomaz vai direto para seu quarto, quer ficar isolado de tudo e de todos.

            _Filhoooo! Vem almoçar. – Regina está preocupada, mas não pode ir vê-lo, precisa terminar o vestido de uma cliente que está prestes a chegar para experimentar; _O almoço está quente!

            No quarto do garoto tem um pequeno gol com traves de plástico, montável, e rede vermelha que fica atrás da porta, um pôster de Pelé em um salto socando o ar com a mística camisa 10 do Santos, e pendurado na cabeceira da cama uma faixa do Santos Campeão Paulista de 1978. Thomaz ainda tinha algumas figurinhas dos jogadores do Santos e de outros times brasileiros, ele era realmente um torcedor apaixonado por este time e pelo esporte. Sobre o criado mudo estava seu álbum de figurinhas do filme E.T. o extraterrestre e um gibi do Recruta Zero que já havia lido, mas ainda estava por ali. Trocou de roupa e colocou a calça rasgada para lavar, sabia que teria que explicar muito sobre o que ocorrera com a calça e ouviria um longo sermão sobre cuidados com a roupa, mas estava chateado demais para receber esta bronca agora, era melhor adiar até quando sua mãe descobrisse por si só. Colocou sua bermuda preta com listras laterais brancas e sua camiseta com uma estampa no peito da cara do Spok e ao fundo a nave Interprise. Ele se aproximou da janela do seu quarto que tinha os vidros forrados de adesivos com o tema futebol, olhou para o céu com lágrimas nos olhos e pediu:

            “_Deus, preciso de sua ajuda, não aguento mais o que aqueles meninos fazem comigo, eles são maus, eu achava que toda criança tinha um anjo da guarda, mas já vi que isso é lorota, ou o meu anjo da guarda está de férias; eu quero tanto entrar para o time de futebol, mas sem apanhar, se o senhor realmente me ama pede para o meu anjo da guarda acordar e vir me socorrer, amém.”

            Thomaz saiu da janela e desceu para almoçar.

            Após o almoço o garoto fez seu dever de casa e foi para o quintal treinar, na parede dos fundos da casa ele pintou as traves de um gol, eram traços improvisados e tortos, a meta não era muito grande, porém o suficiente para simular um gol de futebol de salão. O chão era cimentado e sua bola de capotão, que havia ganhado de aniversário do seu tio Rogério, para ele era o suficiente, além de que aquele treino o ajudaria a melhorar seus chutes a gol, isso lhe dava esperança que iria melhorar.

            À noite, durante o jantar o clima estava tenso entre seus pais, mas Tom não fazia ideia do que estava acontecendo e após terminar de jantar, como de costume, subiu para seu quarto para assistir uma de suas séries favoritas, “The Monkeys” e levou Aninha consigo. Enquanto a série não começava ele ficou deitado na cama jogando Aquaplay de pescaria. Sua TV era uma Telefunken de vinte polegadas que pertencera a sua finada avó, mãe de seu pai, e o Aquaplay era outro presente importado do Paraguai que ganhara de seu tio. Aninha se deitou na cama de Tom e rapidamente adormeceu agarrada com sua boneca, logo Tom a leva para seu quarto e a coloca na cama, lentamente, com muito cuidado ele a cobre com um edredom florido, sai do quarto da menina sorrateiramente e deixa a porta semiaberta para entrar um feixe de luz do corredor.

            Assim que a série começa uma discussão se inicia lá embaixo na cozinha, ele abaixa o volume para tentar escutar do que se trata.

            _Você não me respeita! Não se interessa pela família, tudo aqui sou eu, sozinha tenho que cuidar de tudo. – Regina estava com a voz embargada e irritada.

            _Eu trabalho para colocar o pão na mesa, o que mais quer de mim? – Rodrigo falava com muita raiva e superioridade machista.

            _Mas isso não basta, as crianças precisam de sua presença.

            Tom sai de seu quarto sorrateiramente e vai ao quarto de Aninha ver como ela está, e fica aliviado em ver que a menina está em sono profundo.

            _Ou eu trabalho ou dou atenção ás crianças, o que você prefere?

            _Prefiro que concilie as duas coisas.

            _Mas como mulher? – O homem irritado desfere um soco na mesa fazendo um enorme barulho de pratos e copos saltando na mesa.

            _Ao invés de sair do trabalho e ir beber no bar com os amigos ou fazer farra com a mulherada venha para casa, seus filhos precisam de sua presença. – Regina fala muito estressada enquanto acende um cigarro.

            Como se as palavras de sua mulher fossem a gota d’agua, Rodrigo dá um salto da cadeira, e sai em direção ao quarto enquanto Regina senta e passa a chorar.

            Tom entrou correndo em seu quarto aumentou o som da TV e fingiu estar rindo de alguma cena engraçada. Percebeu que seu pai passara lentamente pela porta do quarto, provavelmente tentando observar o que o menino fazia, preocupado se Tom havia escutado algo.

            No dia seguinte Regina acorda e percebe estar sozinha na cama, passa a mão pelo edredom tentando encontrar Rodrigo, mas, encontra apenas um pedaço de papel, um bilhete de despedida, “_Sinto muito querida, mas não posso mais viver dessa forma, preciso ser livre, a vida de casado e compromissos com o lar não me servem, diga às crianças que eu as amo muito, desculpa.”

            Regina ficou horrorizada ao ler aquele bilhete, dá um salto da cama e abre o armário, constata que Rodrigo levou suas roupas e sente falta de uma mala de viagem, corre para a cômoda onde há um potinho estilo oriental, no formato de um hexágono onde o casal guarda algumas economias para emergências, e sua suspeita se confirma, o potinho está vazio. Regina senta na cama com o objeto vazio e começa a chorar inconformada com tudo o que estava acontecendo.

            Alguns momentos depois, surge Aninha se escorando no batente da porta, com a carinha inchada de sono.

            _Bom dia mamãe.

            Regina disfarça o choro, passa a mão nos olhos para enxugar as lágrimas.

            _Bom dia, minha querida.

            _As torradas estão prontas, mamãe?

            _Não querida vou lá preparar agora mesmo.

            As duas descem para a cozinha, enquanto Regina prepara o café, vai orientando Aninha a se trocar, colocar o uniforme da creche.

            _Bom dia mãe! – Tom já está pronto para a aula.

            _Bom dia querido, sente-se já vou lhe servir. – Regina tenta esconder o rosto, acima de tudo por se sentir envergonhada por ter sido rejeitada.

            _Mãe, porque seus olhos estão inchados e vermelhos? – Tom é muito observador.

            _Não é nada filho, talvez uma conjuntivite.

            A buzina da Kombi grita três vezes e as crianças saem correndo.

            _Cuidado crianças!

            Agora sozinha em casa, Regina chora tudo o que tem para chorar, toma um banho e decide ir até o trabalho de Rodrigo, não para pedir que volte, mas para pedir que não volte nunca mais. Ela atravessa a cidade com dois ônibus e ao chegar à construção descobre que ele não foi trabalhar, apenas ligou e informou que estava se demitindo, Regina retornou arrasada para casa.

            Na hora do almoço ela sentou junto a Thomaz, mas ambos ficaram em silêncio, o tempo todo, até terminarem de almoçar, Tom sabia que havia algo errado, mesmo que sua mãe não houvesse tocado no assunto, ele se levantou e foi lavar a louça, Regina o observou com um leve sorriso no rosto.

            _Obrigada pela força filho.

            _Não é nada mãe.

            _Tom, preciso te dizer uma coisa muito séria e conto com a sua compreensão.

            _É algo com o papai?

            _Sim, aconteceu uma coisa muito grave e séria.

            _Ele está bem? – Tom conversava sem parar de enxugar a louça.

            _Esse é o problema filho, não faço ideia de como ele está, ele nos abandonou e não disse pra onde foi, nem deixou um telefone de contato, nada.

            Tom coloca a última louça no escorredor de pratos e se aproxima de sua mãe, dá um abraço apertado nela enquanto diz em seu ouvido:

            _Ele nunca esteve aqui, vamos seguir bem sem ele mãe.

            Regina desaba em choro novamente, aperta Tom com força pressionando a cabeça do menino em seu peito:

            _Obrigada filho, ficaremos juntos sempre, um pelo outro, unidos como os três Mosqueteiros.

            _Sim mãe, vamos superar isso e mostrar pra ele que não precisamos dele para ser feliz.

            Juntos, eles levantam a mão direita de cada um acima da cabeça e batem as palmas de suas mãos com o grito de guerra dos Mosqueteiros:

            _Um por todos e todos por um!

            Eles riem muito juntos enquanto Tom pega os talheres de Regina e vai lavar.

            _Vai descansar mãe, tira o dia de folga, amanhã tudo volta ao normal.

            Regina sorri, se levanta e segue para seu quarto onde irá chorar mais um pouco pelo sentimento de rejeição, e depois planejar como será a vida da família daquele momento em diante.

            Tom termina de lavar a louça lentamente olhando pela janela, sente uma grande tristeza invadir seu peito, uma mistura de perda e medo que lhe percorre a espinha. A vida era muito difícil, mesmo seu pai sendo ausente, ao menos ele ajudava com alguma porção financeira, e agora o que já era difícil se tornaria ainda pior. O garoto também se preocupava com sua mãe, não sabia se ela suportaria toda aquela situação, uma pressão muito grande se abatera sobre ela e talvez ele tenha que ajudar de alguma forma, quem sabe até abandonando os estudos para trabalhar.

            “_Se eu fosse um jogador de futebol famoso resolveria tudo, poderia dar uma vida melhor para minha família.” – Tom pensou mantendo os olhos fixos na janela.

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