7 – Por trás do reboco

           Nandini desceu ao porão da adega por falta de opções. Havia dois seguranças a procurando na cozinha, e foi por uma sorte imensa que nenhum dos atarefados funcionários percebeu sua presença. Em um último instante de sensatez percebeu que os amigos não vinham em seu encalço, e que não chegaria à porta dos fundos antes de ser vista e perseguida. Esperaria lá embaixo até ter alguma segurança de que poderia subir – apesar de não ter ideia do que faria em seguida.

           O porão era só um aposento grande com paredes feitas em tijolo de barro, algumas colunas e uma adega repleta de vinho caro. Além do chão de terra batida, o único detalhe incomum era a parede recém rebocada e os materiais usados para o serviço, além do odor sutil e desagradável que impregnava o ar abafado.

           E de um sujeito, que de onde olhava era só uma silhueta, encostado à adega.

           – Oi. – Ele cumprimentou. Fugindo da segurança?

           – Também é um penetra? – Nandini perguntou, se aproximando. Dos três, era a única que mantinha a mochila na qual estavam o cofre, a boneca de trapos um pouco do sal grosso enfeitiçado e mais umas quinquilharias menores de magia.

           – De certa forma. Mas diferente de você eu estou preso aqui. Eu vi vocês hoje mais cedo. Estavam procurando uma moça, não é?

           – Ainda estamos. – Nandini revelou, desconfiada.

           – A Dama pegou ela de jeito.

           – Dama? Do que você está falando?

           Aproximou-se do homem e percebeu que, diferente dos outros fantasmas do lugar, ele era quase translúcido. Na certa, estava muito fraco. Ao lado dele uma poça fumegante e malcheirosa contaminava o chão e parte da parede, de forma semelhante à que deixaram para trás no quarto onde exorcizaram Igor.

           – A coisa que a dona da pousada contratou vocês para expulsar achando que se tratava de um fantasma. Vocês não vão conseguir. Aquilo, o que quer que seja, é forte demais.

           – Como sabe tanto sobre esse assunto?

           – Eu sei porque fui eu que trouxe a coisa para cá.

           Nandini recuou, assustada. Levou a mão à mochila, pronta para retirar o cofre.

           – Eu não vou lhe fazer mal. – O homem avisou. – Nem se eu quisesse. Estou fraco demais para isso. Mas se me trancafiar ou expulsar, perde a melhor chance de sair daqui com seus amigos vivos.

           – Então é melhor começar a falar. – Nandini ameaçou. – Quem é você?

           – A história é longa. Eu evanesceria no meio dela. Há um jeito mais rápido, mas vocês vão precisar daquela sua amiga ruiva, além de um pouco de trabalho braçal. – E apontou para a parede rebocada. – A filha da puta da Mercedes escondeu meu corpo ali. Enquanto ele estiver preso no gesso eu não posso deixar o porão.

           Por um momento, a atenção de Nandini se concentrou na tal parede. Quando estivera lá a primeira vez, se perguntara por que só aquele trecho era rebocado, mas a urgência do sumiço de Laura não a deixara pensar muito no assunto. Ela e o irmão haviam feito pequenos reparos em casa desde que passaram a morar juntos, de forma que ela sabia reconhecer um trabalho recente. Aquilo ali tinha no máximo umas semanas.

           Pensou em todos os clichês de filme de terror – do espírito de um sujeito emparedado que não descansava até obter sua vingança. Era tão conveniente que chegava a ser patético.

           – O que é essa poça aí do seu lado? – Nandini Perguntou.

           – É o que restou do pobre infeliz que a Dama enviou para tentar você.

           – Me tentar?

           – A julgar pelo lugar em que estamos e pelo merdinha viciado que estava te esperando, acho que ela pretendia te embebedar com o vinho da adega para te manter aqui até a hora em que pudesse vir te pegar pessoalmente. Pelo jeito, você deve ser presa fácil de um bom goró. Eu dei um jeito nele, mas olha só como fiquei. Quase desaparecendo.

           – Por que você não tentou falar conosco durante o dia? – Ela perguntou, ainda muito desconfiada.

           – Porque a soma das proteções mágicas que vocês tinham me impediram. Eu teria me desgastado demais tentando fazer contato, o que reduziria muito o tempo que ainda tenho. A Dama com certeza fez um bom trabalho separando vocês, mas foi sorte dentro do azar que dessa vez você tenha descido aqui sozinha.

           – Por que a dona da pousada escondeu seu corpo?

           – Não dá tempo. – Ele disse, já quase totalmente transparente. – Você terá que tomar uma decisão.

           Nandini tornou a avaliar a parede. A caixa de ferramentas largada perto contava com um martelo, talhadeira, desempenadeira e outros itens do tipo. Apesar de não ser um gênio da construção, começar a destruir o reboco foi relativamente simples. A cada golpe do martelo na talhadeira, porém, o odor sutil que se sugeria ao ambiente tornava-se fedor pestilento e impregnado. Nandini não era exatamente uma iniciante no que dizia respeito ao trato com cadáveres, mas até ali só havia lidado com os de animais.

           A tarefa seguiu, exaustiva e desagradável, até que sumo pestilento começasse a escorrer pelas fendas fazendo Nandini recuar e engulhar.

           – Está funcionando, continue! – Disse a voz do homem, muito mais nítida e presente. Sua forma semitransparente tornara a adquirir substância, mas ainda parecia disforme.

           Reunindo toda a determinação que lhe restava, Nandini seguiu destruindo a parede e aos poucos, primeiro uma mão, depois um pé, um torso e por fim uma cabeça decomposta surgiram detrás dela. Ela já estava pronta a derrubar tudo quando sentiu, firme, uma mão sobre seu ombro.

           – Já está bom assim. – O homem lhe disse. – Eu preciso só que você pegue um pedacinho do corpo e leve com você. Pode ser um dedo, ou um dente. Assim eu posso te acompanhar.

           Nandini finalmente olhou com atenção para quem lhe falava.

           Era um homem de meia idade um tanto acima do peso, negro, careca, vestindo uma roupa colorida que o fazia parecer algo entre um bruxo africano e o vocalista de uma banda de axé. Um olhar desatento nos símbolos estampados das mangas da túnica os julgaria um mero detalhe artístico, mas Nandini conhecia glifos e símbolos mágicos o suficiente para se deixar enganar.

           – Você é um feiticeiro. – Ela comentou.

           – Sim, eu sou. Fui contratado antes de vocês para um trabalho que terminou em uma briga com a dona da pousada e comigo emparedado atrás desse remendo de gesso.

           – O quê? – Nandini perguntou, perplexa. – Ela... ela matou você?

           – Não estou certo disso. – O homem respondeu. – Não percebi o que havia acontecido até vê-la terminando de aplainar o reboco nesse buraco. De qualquer forma, se apresse. A Dama logo vai perceber que estou livre outra vez, e virá me procurar.

           Nandini prendeu a respiração novamente e com o lado serrilhado da desempenadeira cortou fora um dos dedos da mão cadavérica presa à parede, enrolou em um lenço e pôs no bolso. Imediatamente ouviu, vinda de longe e de todos os lados, uma miríade de gritos horrendos e lamentosos se sobrepondo uns aos outros, ao mesmo tempo em que a temperatura no porão caiu bruscamente. O porão, já escuro, se tornou ainda mais tenebroso – como se mesmo o facho de sua lanterna tivesse de lutar contra algo mais sólido que a mera ausência de luz.

           – Você precisa chegar à recepção. – O feiticeiro continuou falando ao seu ouvido, mesmo que ela não pudesse vê-lo. – Eu não sei a razão, mas a Dama nunca cruza as portas que levam ao saguão de entrada. Você estará segura lá, e poderemos nos concentrar no que fazer para encontrar seus amigos.  

           Nandini subiu a escada do porão, se aproximou da porta e, com cuidado, abriu um pouco para espiar. Tão logo o fez, uma lufada de ar gelado atravessou a fresta aberta e a fez se arrepiar da cabeça aos pés. Aproximou o rosto e olhou, mas o breu total do outro lado a obrigou o uso da lanterna.

           Era outra cozinha. Não havia mais cozinheiros, comida, talheres e pratos – apenas os balcões de trabalho e algumas mesas, enferrujadas e envelhecidas. Sobre todas as superfícies uma substância branca e viscosa se espalhava, talhando nos cantos como teias de aranha e poeira. O chão estava coberto por uma camada grudenta de sangue seco e sujeira.

           Nandini seguiu, silenciosa, pé-ante-pé exalando pequenas nuvens de hálito condensado do frio cada vez mais intenso. Chegou à porta dos fundos, que levava à área da piscina e girou a maçaneta.

           A porta abriu com um estrondo e a força a empurrou de costas contra uma mesa próxima. Uma figura enorme, coberta de sangue e entranhas, brandindo um ameaçador cutelo de açougue acabara de cruzar o umbral, urrando de forma demente. Nandini mal teve tempo de se abaixar quando a lâmina desceu sobre ela errando por pouco e acertando o tampo. Gritando em desespero, engatinhou por baixo da mesa antes que o segundo golpe de cutelo atingisse suas costas protegidas, em parte, pela mochila. Ao levantar percebeu que o homem estava completamente nu, e devido a um rasgo na camisa escapou de ser agarrada pela manzorra.

           Correu na direção oposta, em direção à porta que levava ao salão de festas, mas para seu desespero havia uma crosta grossa, pulsante e purulenta em seu lugar, sem qualquer maçaneta à vista. O momento que levou para perceber que estava encurralada foi o que o homem precisou para agarrar sua cabeça com uma mão e lhe atingir novamente as costas com outra cutilada. Dessa vez a bolsa rasgou, espalhando grande parte de seu conteúdo pelo chão da cozinha. Nandini teve tempo de reunir, em um esforço extremo, forças para puxar a cabeça da mão que lhe agarrava, deixando mechas de cabelo para trás, e correu desabalada volta para o porão, desceu as escadas e se escondeu no pequeno vão logo abaixo dos degraus.

           – Fantasmas não deveriam ser capazes de me machucar... – ela sussurrou, de si para si mesma, tentando controlar desesperadamente a tremedeira nas mãos e a taquicardia que martelava as costelas. – Fantasmas não deveri...

           – Não é um fantasma. – A voz do feiticeiro sussurrou de volta em seu ouvido. – É a Dama. Todos eles fazem parte dela agora. Nós faremos, se nos pegarem. É um destino pior do que a morte.

           Nandini calou-se quando ouviu o primeiro passo pesado no degrau de cima da escada. Depois outro. E mais um.

           O homem do cutelo descia a escadaria farejando o ar como um perdigueiro. Era possível ouvir sua respiração asmática mesclada ao riso cheio de malícia de alguém desejoso por trucidar uma vítima indefesa. Quando chegou ao pé da escada começou a cheirar e tatear, cada vez mais próximo. O fedor de sangue velho, suor e sujeira inundou todo o lugar, tornando difícil de respirar.

           – Você consegue achar o caminho para cima sem ligar a lanterna? – A voz do feiticeiro tornou a sussurrar. – Não responda.

           Nandini sabia que sim. O problema era que suas pernas não obedeciam. Os olhos transbordavam e o ranho escorria pelas narinas, mas ela não se atrevia a fungar. As costas doíam das pancadas do cutelo e ardiam no ponto em que, talvez, a pontinha dele possa ter rasgado alguma pele. Mas o pior era cheiro morno do pavor líquido que encharcava suas calças, sinal da bexiga que, assim como as pernas, se recusava a obedecer.

           O caçador se aproximava e Nandini sabia que não havia escapatória. Ele sentiria o cheiro de seu suor, de sua urina, ou de seu pânico. A encontraria, a rasgaria e se banharia com seu sangue e com suas vísceras. Morreria ali, naquele porão imundo e amaldiçoado – ou coisa pior, fosse lá o que isso significasse.

           O barulho ensurdecedor de metal tombando e vidro estilhaçado anunciou que alguma coisa acabara de derrubar a adega e sua cara coleção de vinhos no chão.

           – Ainda não. – O feiticeiro lhe alertou. – Espere, e fique pronta.

           Ouviu os passos pesados se afastarem rapidamente, urrando de alegria doentia.

           – É agora. – O feiticeiro sussurrou novamente. – Devagar, sem luz. Suba!

           Nandini se obrigou a levantar, carregando consigo a mochila mutilada. As pernas bambas foram alcançando solidez à medida que seus passos firmes e silenciosos cobriam a distância entre o pé e o topo da escada. Tateou para encontrar a porta, abriu tão cuidadosamente quanto pôde e saiu. Atravessou a cozinha ainda tateando e encontrou a porta dos fundos.

           Estava fora.

           O brevíssimo momento de alívio foi rapidamente subjugado pela perplexidade: sobre sua cabeça, o céu escuro coberto por nuvens cor de fumo e rajadas de rubro vomitava relâmpagos escarlate e derramava chuva ferruginosa e viciada. O ar gelado da noite era pressuroso, pesado e quase insuportável. Nandini ligou a lanterna apenas para descobrir que sua luz mal alcançava dois ou três palmos à frente.

           Correu como nunca antes na vida. Passou pela área da piscina e meramente notou que alguma coisa acontecia dentro dela – um emaranhado disforme de corpos nus e cobertos de sangue que se esfregavam uns nos outros e gemiam lamuriosamente, tão alto que suas vozes venciam a chuva e a tempestade. Deixou-os para trás e avançou pela área dos chalés, dos quais a maioria tinha os abajures acesos banhando seu interior em um vermelho vivo tão intenso que as atrocidades que aconteciam em seu interior deixavam sombras no chão do lado de fora. Algumas das portas se abriram e, mesmo que não se atrevesse a olhar para o que saíra delas, Nandini podia ouvir que o que quer que fosse agora a perseguia a meio caminho das portas duplas da recepção. Em algum momento, pisou em falso e quase caiu, mas conseguiu cobrir os últimos passos antes das portas de madeira que levavam ao refúgio seguro, ainda que mancando dolorosamente.

           Passou por elas, se desequilibrou e se estatelou no chão. Enroscou-se como uma bolinha e esperou pelo pior – mal tinha fôlego para respirar, muito menos para levantar e correr. Por uma eternidade de cinco ou seis segundos manteve-se deitada e de olhos fechados.

           Por fim, os abriu lentamente. Primeiro reconheceu o tapete de poliéster macio e branco, rodeado por cadeiras de palha de coqueiro trançadas e estofadas. Depois, o quadro enorme com um barco virando a bombordo para evitar uma tempestade. Por fim, a luz suave dos abajures chiques e o chorinho tocado suavemente pelas caixas de som nos cantos das paredes da recepção.

           Desatou a chorar, como uma criança pequena.

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