II - A Porta

Tenho um pouco de queijo para você...                                       

 ~ ♣ ~

– Alteza – uma voz feminina a chamou, chacoalhando Violet pelos ombros, e a menina choramingou, abrindo lentamente os olhos inchados por conta do sono. –  Vossa Majestade a está esperando para o café.

– Hum... Aham... Sim, estou indo, obrigada Lorie – ela resmungou mais uma vez, sentando-se na cama ao ouvir os passos da criada se distanciarem, seguidos do som da porta pesada de seu quarto se fechando.

Ela fez uma careta ao passar o dorso da mão abaixo da boca e senti-la umedecer com a saliva pegajosa que escorria por sua pele. Ótimo, já estava começando o dia bem.

Depois de se arrumar com uma preguiça quase torturante, desceu as escadas em espiral até o salão principal com a maior lentidão possível, levantando a barra de seu vestido rosado com as mãos enluvadas para que não tropeçasse e saísse rolando pelos degraus logo pela manhã. Seus cabelos agora estavam presos numa trança lateral mas ainda assim alguns fios rebeldes escapavam, somando-se às suas olheiras e aparência cansada e lhe dando um ar ainda mais desorganizado e nada condizente com sua posição social.

Ela sorriu e pulou os dois últimos degraus, fazendo um "toc" ecoar pelo castelo silencioso ao chocar os pequenos saltinhos de seus sapatos com o chão de mármore.

– Bom dia mamãe, bom dia papai – ela disse com uma falsa felicidade ao entrar na sala de jantar. – E... Conde Mitchell?

Valentina abriu um sorriso cansado para a filha e deu dois tapinhas na cadeira ao seu lado, gesticulando para que Violet se sentasse, e assim a menina fez, ligeiramente preocupada devido à cena nada comum.

O Conde aparentava estar arrasado. Seu nariz se assemelhava ao de um palhaço de tão vermelho, e seus olhos inchados permaneciam marejados mesmo depois de já ter parado de chorar há algum tempo.

– Meu Jack... meu querido filho... – ele murmurava, balançando-se para a frente e para trás como um completo pirado.

– O que houve? – Violet perguntou para a mãe num sussurro e a mulher se abaixou em direção ao ouvido da menina, respondendo em tom igualmente baixo:

– Jack está desaparecido desde ontem à noite.

– Humpf... bem feito – Violet disse fazendo um biquinho e sua mãe lhe lançou um olhar de repreensão. – O que foi? Eu disse a ele que devia me respeitar, isso é resultado por não ter o feito.

Valentina suspirou pesadamente e se voltou ao conde, os olhos azuis agora repletos de ternura e compaixão.

– Vão encontrá-lo, ninguém desaparece assim do nada – ela disse e mais uma cachoeira de lágrimas desabou pelo rosto rechonchudo do Conde.

– Obrigado majestade, a senhora é realmente uma pessoa de bom coração.

Violet revirou os olhos e no mesmo instante pulou de susto na cadeira ao sentir uma coisa felpuda se enfiar por entre seus pés. Ela abaixou a cabeça até debaixo da mesa e suspirou de alívio ao ver ali uma bolinha de pelos alaranjada.

– Que susto, Ginger! Quer me matar do coração e ficar órfão, é? – Ela disse baixinho e, da maneira mais discreta possível, pegou o gato nos braços e o apertou em seu colo.

– Violet? – Carl chamou e a menina se levantou, indo até o rei com Ginger ainda preso em seus braços, os olhos verdes quase pedindo por socorro. – Meu Deus, já falei que não se deve sair carregando esse gato assim por aí...

– Se dependesse do senhor sei que eu nem teria um gato – Violet retrucou distraidamente e seu pai deu de ombros.

– É, eu realmente não vou com a cara desse bicho estranho – ele disse franzindo as sobrancelhas mas logo recuperando o foco da conversa. – Srta. Cheney está te esperando na biblioteca agora.

– O quê?! Por que a primeira aula de hoje tinha que ser justo francês? – reclamou apertando mais o pobre Ginger que miou baixinho em protesto.

– Vai precisar disso futuramente, agora vá.

Violet empinou o nariz e saiu em direção à biblioteca, pisoteando fortemente o chão enquanto andava e ainda apertando o coitado de seu gato que parecia implorar por liberdade.

Assim que chegou na extensa sala rodeada por prateleiras enormes de livros coloridos que iam do chão ao teto, Violet foi direto até sua mesa de estudos, devolvendo Ginger ao chão e jogando-se em sua cadeira de uma forma quase dramática.

– Bom dia, alteza – a professora Cheney disse sorrindo e ajeitando os óculos redondos em seu rosto.

– Bom dia – Violet respondeu dando seu mesmo sorriso falso de sempre e abrindo o pesado livro azul-marinho à sua frente.

– Página trinta, favor – a professora disse e Violet assentiu, distraidamente passando para a trinta e cinco.

Praguejou mentalmente e voltou até a trinta, suspirando e levando os olhos até a grande janela que brilhava sob a luz do sol atrás da professora Cheney. Ela queria muito sair, definitivamente não havia nascido para ficar enfurnada em salinhas cheias de livros chatos cujos ela abominava.

A professora Cheney começou a ler em voz alta uma frase qualquer em francês para a qual Violet não dava a mínima. Ela apoiou a bochecha na mão e levou um susto ao sentir patinhas fofas lhe cutucarem a perna.

Ela abaixou os olhos até o chão e suspirou mais uma vez. O que Ginger ainda estava fazendo ali?

O gato miou baixinho e a professora pigarreou, chamando a atenção de Violet.

– Desculpe – a menina disse tentando deixar de lado o fato de seu gato querer atenção bem no meio de uma aula.

– E é por isso que esses dois verbos não podem ser usados juntos...

Pare! – Violet exclamou quando Ginger afundou as garras na barra de seu vestido, desfiando o pano.

– Alteza se não...

Ginger! – Violet repreendeu novamente quando o gato prendeu a barra já rasgada de seu vestido por entre os dentes e começou a puxá-lo. – Pare com isso! Parece até um cachorro!

A professora Cheney bateu a mão na testa, impaciente. Aquela menina não prestava atenção em uma única aula sua e para ajudar agora vinha aquele gato para perturbá-la.

– O que foi agora? – Violet perguntou, já irritada, e o gato andou até a porta, soltando um miado longo e agudo.

A princesa se levantou e começou a segui-lo pelo corredor, ainda que hesitante.

– Alteza! – A professora Cheney gritou de dentro da biblioteca e a menina pôs o rosto junto ao batente da porta, abrindo um sorriso amarelo para a mulher.

– Volto em um instante. Prometo. Me desculpe – ela disse e voltou a correr atrás de seu gato, que já andava bem mais rápido em direção ao salão do castelo.

Violet parou, pensativa. Não era possível que Ginger estivesse querendo levá-la à algum lugar – pelo menos assim ela pensava até ver que ele havia notado que a princesa já não o acompanhava mais, também parando e novamente miando para ela.

– Droga – Violet murmurou baixinho e começou a correr quando Ginger disparou pela porta principal, em direção ao jardim.

Ela esbarrou em alguém enquanto corria, cambaleando e quase caindo no chão. Virou-se para trás e murmurou um pedido de desculpas ao jardineiro, que apenas assentiu com uma expressão confusa no rosto.

Quando se voltou para a frente à procura de Ginger, a bolinha de pelos laranja já não estava mais lá. Correu os olhos por todo o local até ter o vislumbre de um vulto ruivo entrando por dentro de um buraco na cerca viva que cobria o muro do castelo.

– Ginger! – Violet gritou, correndo até onde o havia visto pela última vez.

Ela parou diante da abertura, fitando com um olhar curioso o bosque que havia por trás do muro. Não deveria ir lá, sabia disso, Carl e Valentina não a deixavam ultrapassar os muros do castelo a não ser que estivesse com alguém.

Mas... era só um bosque afinal de contas, não era? Um monte de árvores e insetos, o que poderia acontecer de pior a ela? Ser picada por uma abelha não parecia algo muito assustador.

Violet deu de ombros e se ajoelhou diante do buraco pelo qual Ginger passara, pois era baixo demais para que pudesse passar de pé. Engatinhando, passou primeiro a cabeça e os ombros para o outro lado, praguejando novamente ao sentir os galhos das plantas que envolviam o muro lhe arranharem os braços nus.

Ginger estava parado sobre um montinho de folhas secas, lambendo uma de suas patinhas de maneira despreocupada. Ele voltou os olhos verdes para sua dona e correu novamente.

– Mas que droga, gato! – Violet sussurrou, irritada. O monte de panos em seu vestido a havia feito empacar no buraco, prendendo-a.

Mamãe ficaria doida da vida caso Violet rasgasse mais um de seus vestidos, mas a menina não podia ficar presa ali até que alguém a visse e resolvesse ajudá-la, o que demoraria muito. E ela não estava na posição mais confortável do mundo com as pernas para o lado de dentro do jardim e o resto de seu corpo para dentro do bosque.

Ela grunhiu e se impulsionou para a frente com os cotovelos, dando graças à Deus por só ter terra fofa abaixo de si, o que impossibilitava sua pele de acabar sendo esfolada.

O som da saia de seu vestido rasgando veio seguido de uma Violet caindo de cara no chão. Ela xingou e se levantou, alisando o que restara de seu vestido com as mãos e analisando com uma careta os buracos que haviam sido feitos.

Ginger saiu de trás de uma árvore e miou novamente para ela, voltando a correr e desaparecendo em meio àquele monte de verde e marrom.

Violet tentou correr em seguida mas seus saltinhos afundaram na terra fofa.

– Ótimo, primeiro o vestido e agora os sapatos – disse a si mesma, tirando-os de seus pés e os deixando de lado. Ela observou por um momento seus pés descalços, cobertos apenas por uma meia branca e fina. – Que exemplo de princesa, Jack amaria me ver assim.

Ela deu de ombros e começou a correr na direção em que Ginger havia ido, esfarelando as folhas secas que forravam o chão e vez ou outra tropeçando na raiz de uma árvore que havia crescido demais.

Conforme se enfiava mais profundamente no bosque, Violet começava a se arrepender de ter ultrapassado os limites do castelo. Tudo ali era frio e úmido, os mosquitos não paravam de picá-la nos braços e suas meias estavam encharcadas e imundas de terra. E o pior: ela já não sabia mais para onde Ginger havia ido.

Tudo ali era verde. Verde-musgo, verde-claro, verde-pinheiro, verde-bandeira... Só verde, para onde quer que olhasse só via uma cor, nada de vultos laranjas.

Ela se encostou no tronco de uma árvore qualquer que não sabia qual mas também não se importava nem um pouco. Não sabia se chorava ou se gritava de raiva.

Não se lembrava qual caminho havia feito, portanto, não poderia voltar. Furiosamente, secou os olhos marejados com o dorso da mão. Nunca havia feito uma burrice tão grande em seus catorze anos de vida.

Talvez nascer, mas isso não vinha ao caso. Discutir com o rei da Itália também não havia sido a coisa mais inteligente a se fazer, mas... É, ela tinha uma lista longa de burrices já feitas.

A barra já esfarrapada e encardida de seu vestido foi puxada levemente pelas garrinhas de uma coisinha laranja, e Violet mal sabia se agradecia ou se xingava por finalmente ter encontrado o animal.

– Ginger! Gato idiota, quando voltarmos eu vou te dar para alguém que não vai estar nem aí para você e vai te deixar morrer de fome! – Esbravejou e Ginger saiu correndo por entre as árvores. – Volte aqui!

A menina voltou a correr atrás do bichano, pois mesmo já estando exausta ainda se sentia bem mais segura com Ginger por perto, ainda que fosse só um gato pelo menos não estaria completamente sozinha.

Ele se enfiou por dentro do tronco grosso e coberto de musgo de uma árvore que já aparentava ser bem velha e Violet parou, boquiaberta. Seu gato havia atravessado uma árvore?

Não. Ela olhou melhor e viu uma pequena portinha redonda de madeira se fechando com um rangido logo após Ginger passar pela mesma.

Em passos lentos e vacilantes, a princesa andou até a árvore e se abaixou diante da portinha à sua frente. Assim como o buraco no muro, o espaço era grande o suficiente para que conseguisse passar engatinhando.

Com os dedos das mãos frios e trêmulos, girou a maçaneta e voltou a abrir a porta. Do lado de dentro estava tudo totalmente escuro, e Violet estremeceu levemente imaginando o que poderia haver ali dentro.

– Hum... tudo bem, não vim até aqui à toa. Seja corajosa, Violet – disse a si mesma e pôs uma das mãos para dentro.

Ela se arrastou um pouco para através da porta e, quando foi apoiar a outra mão restante no chão, tudo o que agarrou foi um monte ar.

Violet gritou quando seu corpo caiu para a frente, rolando pelos degraus que pareciam ser infinitos. Ela terminou caindo com os braços e pernas estirados, um filete de sangue escorrendo do corte que se abrira em sua boca.

– Mas que droga – murmurou já se levantando e se sentando. – O que é isso?

Seus olhos violeta correram maravilhados pelo salão que estendia à sua frente. O chão no estilo xadrez era colorido em tons pastéis de rosa e amarelo e as paredes eram pintadas num tom suave de azul. Um grande e elegante lustre dourado estava pendurado no teto formado por raízes grossas de árvore.

– Hum? – Um jovem alto - ou algo que parecia muito com um - saiu de uma porta próxima e parou, se voltando à Violet de forma confusa.

Seus cabelos brancos e bagunçados caíam por cima dos olhos vazios e um sorriso costurado com pontos irregulares estampava seu rosto de uma orelha à outra. Ele vestia um terno preto com listras brancas e segurava uma bandeja com um bule e xícaras na mão direita, o que ajudou Violet deduzir que fosse algo como um mordomo.

Ela encolheu os ombros e abriu um sorriso sem graça, sem saber como reagir. Devia estar parecendo alguém que acabara de fugir de algum tipo de cativeiro, toda suja de terra, vestindo roupas rasgadas e com o cabelo parecendo um ninho de pássaros – além dos machucados recém-feitos em seu rosto.

– Bom... – ela disse por fim, o garoto ainda a encarando com certa curiosidade. – Olá.

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