Cap.2 . "Rum e Pólvora"

Andamos, andamos como nunca andamos. Somos cerca de trezentos robustos prisioneiros e a maioria irá para as galés dos turcos como remadores agrilhoados. Libertados dos grilhões ninguém ensaia uma fuga para o inferno escaldante. Nosso mestre berbere de nome Samir vai agastado em cima dum dromedário…

Passamos por algumas praças marroquinas portuguesas, tais como Mazagão e Arzila onde assentávamos arraiais na nossa demanda pelo sul. Via esperançado os muros guarnecidos de bocas de fogo e ainda gritava para lá dizendo que tinha sangue luso. Os meus algozes riam-se.

- Porque raios se estão a rir eles? - Monga só me respondia:

 -Só se pagarem um resgate por ti, dado que o mestre não te venderá a não ser para as galés dos turcos, e qual é o português que pagará um resgate por ti, acaso és nobre?

- Não, Ramon disse que o meu sangue é da baixa nobreza minhota, sou um bastardozinho….

90 dias sobre o Saara. O império  Mali e o Benim  volveram, pelas areias escaldantes junto ao mar não paramos bebendo vinho ou água de palma.

Passado esse tempo todo, chegamos a Cacheu[1], depois de ultrapassarmos a custo diversos mangais cheios de hipopótamos e crocodilos . Chiça!!! Percorremos a pé metade de África! Não sei como não morri, estou tísico e as plantas dos meus pés estão tão duras como solas de botins!!

Os algozes deram tiros de arcabuzes para o ar festejando a nossa chegada. À nossa frente estava uma pequena feitoria, cujas margens lodosas, tirando um pequeno espaço para a entrada e saída dos barquelos dos negros, estavam guarnecidas por estacas altas e negras.

Afastadas vinte passos dessas estacas, casas caiadas a branco de dois andares e telhas vermelhas discorriam a acompanhar o rio, faziam-me lembrar Santarém. Havia um palacete de estilo mouro ao meio, os pomares cercados por altos muros igualmente brancos entremeavam as casas e lá dentro palmeiras e cabaceiras de grande porte fazem-me lembrar a fresca sombra que eu não desfrutava.

O calor era opressivo e húmido, quase irrespirável, diferente do calor seco e árido do deserto marítimo dos últimos tempos. Empurram-nos e alinham-nos encostados às estacas, o que era bom, proporcionava alguma sombra.

 A noite no equador desce rápido como um relâmpago distante e uma leve brisa corre do rio Farim e nos acaricia as maceradas e chagadas costas. Os negros da feitoria que Monga me diz serem da Tribo Manjacos dão-nos numa gamela carne de gazela. Monga fala no seu dialecto com eles trocando palavras furtivas. Os algozes estão encostados à parede do que parece ser uma casa senhorial.

- Querem-nos bem nutridos para amanhã. Vão-nos vender aos turcos inimigos dos portugueses e está ancorado um galeão holandês ao largo, dizem que é um galeão pirata.

- Não percebo, isto é uma feitoria portuguesa apesar do domínio espanhol.

- Meu inocente Montês, todos lucram com o comércio dos escravos, paga-se luvas e subornos aos feitores e eles deixam os negócios correrem, até com o próprio diabo, se disso houver lucro por debaixo da mesa. – replica-me, rasgando a carne cozida com argão do osso da sobre-coxa, dá-me a gamela:

- É esta a tua terra?

- Monga pára de mastigar a tenra carne de gazela, relança o olhar na fortaleza branca e encolhe-me levemente os ombros:

- Fui feito escravo em tenra idade pelos Balantas, minha tribo ainda vive a montante do rio. São os Casangas, veio uma guerra, fomos derrotados e feitos escravos…

- Diabo, este calor não nos larga.

- Sim, juntamente com as moscas. Devíamo-nos ter untado mais de lama. Depois disso, vim com dez anos para esta feitoria e mestre Rafaello resgatou-me e levou-me para cima para o Mediterrânico.

- Chiça, não foste a pé, pois não? – Monga ri-se.

- Não, fui de barco…velhos tempos, saí como escravo e retorno como escravo.

- Raios! Nunca pensei que eu também chegasse a escravo. - torno a olhar a fortaleza:

- Não percebo isto: é uma feitoria portuguesa e ninguém me liberta.

- És um português pobre, lembrai-vos disso.

Alguém nos interrompe, apesar do negrume conseguíamos ver as suas formas recortadas contra a fogueira dos algozes de Salé. Dá um pontapé com a sua bota de couro de cano alto a um negro escravo também sentado para se apartar, mira-nos imponente com seu chapéu emplumado de abas largas. Tentei decifrar se seria um soldado ou um mercador, mas seu gibão negro sem manga indiciava que seria ou um mercenário, ou um negreiro, ou um marinheiro. Era alto, entroncado e escondia alguma na manga.   

- Bartholomeu Beirão, português de nascença mas o mar é a minha nação. – retira, de maneira espalhafatosa e rocócó, o chapéu saudando-nos e fazendo uma exagerada vénia que até paramos de comer a rica gazela da gamela.

- Não poderei falar muito. Os algozes berberes estão à cata. – confidencia-nos baixo olhando para eles na distante fogueira.

- Amanhã o  galeão do corsário neerlandês[2] van Gekookt  irá atracar na baía durante a prima hora, que será o tempo do suborno à feitoria. Viemos comprar escravos para o combate e essa é a vossa única hipótese de se safarem desta vida; é porem-se ao serviço da república holandesa, não vos preocupeis! Actuaremos nas Antilhas e só atacamos navios espanhóis cheios de ouro dos Incas. Tentarei comprar-vos, ficareis a dever-me o favor.

Ia dizer-lhe algo mas ele leva o dedo indicador aos lábios pedindo silêncio, retira-se furtivo por entre os outros escravos que igualmente comem a tenra carne de gazela das gamelas.

Os escravos arriatas retiram-nos as gamelas e encostamo-nos uns aos outros para dormitarmos. Minhas narinas já se habituaram ao cheiro intenso a catinga, apesar da brisa do rio Farim atenuar o cheiro através das estacas.

Na casa senhoril branca ouvem-se gritos de festa, os feitores portugueses e o nosso mestre Samir, debaixo do comando de Castela, fazem o que sempre fizeram antes de Don Sebastião: governam-se como podem. O galeão holandês é a nossa única safa. Cerro os olhos e deixo-me levar lentamente…Monga tinha a forma de polvo e estamos mergulhados no Mediterrâneo, bolinhas saíam do seu bico:

-  Se formos bem sucedidos faremos  parte da irmandade e seremos homens livres…

- tentava falar mas sempre que debitava algo a boca enchia-se de água.

Julgas que alguém te vai ligar? para eles serás apenas um escravo níveo do norte de África como existem muitos que até sabem português, apenas isso, ninguém te irá libertar, a única hipótese é sermos comprados pelo pirata holandês e começarmos do nada.

- Do zero?

- Sim, da mais baixa hierarquia dentro do navio para depois fazermos parte da irmandade; afinal,  ensinei-te a lutar, não?

- Sim, ensinas-te-me.

- Montês.

- Sim, ensinaste-me.

- Montês, cala-te. – Monga abana-me o ombro, abro os olhos raiados:

- Cristo! Sonhei que eras um polvo…

- O menino queria-me comer?

- És um bom companheiro, sem ti não sei como aguentaria. – digo-lhe satisfeito.

Como o dia nestas latitudes nasce também como um relâmpago, a brisa do rio parou e um calor ensurdecedor diluía o nevoeiro e fazia submergir as sombras do magnífico galeão voador, com seus três mastros a pique querendo agarrar o céu africano, com as suas compridas vergas tais como as cruzes de Cristo a abraçar os oceanos e um casco enorme que suportava 44 canhões. Uma verdadeira máquina de guerra! Levantamo-nos todos admirando-o. Não trazia bandeira, o que não era de estranhar, um barco com quatro remadores e três passageiros dirigiam-se às calmas margens lodosas enquanto que os pescadores, indiferentes à azáfama do tráfico negreiro, faziam-se à faina do camarão.

Arrastaram-nos então para o adro poeirento entre os portos dos barquelos e as casas alinhadas brancas, nem sei como apareceram, vindos do nada, milhares de escravos agrilhoados uns aos outros com seus negreiros, todos desembocando na praça. Samil puxa-nos para as margens juntamente com dez escravos escolhidos por ele e que me pareceram os mais robustos.

 O barco de Van Gekookt e de Bartholomeu atracou e os dois galgaram as águas verdes com as suas botas de canos alto. O capitão bávaro era alto, ruivo, sardento, com uma casaca carmesim de galões doirados por cima de uma camisa branca de folhos que desabrochavam no peito e punhos como se tentassem explodir aprisionados pela casaca vermelha. Fumava cachimbo e subitamente lembrei-me do cachimbo de marfim do padre Ramon perdido no fundo do Mediterrâneo:

- Kopen, meneer! Wij zifn Portugezen en we vechten![3].  O Bávaro e seu imediato liso miram-me surpreendidos por eu arranhar o neerlandês. Depois, impassível, ordena a Samir:

- Mostrem-me los dientes, todos! – Samir põe-se a arreganhar os dentes incentivando-nos com o chicote a imitá-lo, claro que os dentes dos pretos eram melhores do que os meus, dentes podres no alto mar eram sinal de problemas.

- Weet niet waarom je wilt de witte nemen barto!?[4]

- Lezen en schrijven.[5] – responde o beirão. E eu interrogo-me como ele podia saber isso. O capitão analisa os negros; vê-lhes rispidamente a cara, as pernas, o tronco e  manda-os alinhar a todos, e, num portanhol crioulo dirige-se-nos a palavra:

- Escravos, sabeis-de ao que yo vengo necexito corsários para saquear navios espanhóis nas Antilhas carregados de oiro das Américas, os reis da Holanda vos garantizam, se se sobreviverdes e aguentardes 7 anos no mar ao serviço de la republica sereis libres, tereis direito a una ração per dia e a uma percentagem do saque que será entregue à coroa, tereis que combatir e velejar.

Silêncio seguiu-se. O que nos oferecia o holandês era a melhor vida possível para um escravo. Claro que teríamos que começar por baixo, mas depois em alto mar quase todos são iguais, quase irmãos, quase…

- Bartholomeu ! Teremos que partir o quanto antes. Foi esse o trato com a capitania! – Bartolomeu saca do seu cinturão um lenço vermelho de seda e acena-o para o galeão. Quase de imediato três barcaças se acercaram galgando o mar que abraça o rio, outro navio, outra partida; tomara que não me afunde como afundei com a galeota de Rafaello.

Mar das Caraíbas, 60 dias depois…

Escovava arduamente o convés com uma rude escova que me sangrava as mãos, ainda por cima a água utilizada era salgada num pavimento já corrido pela salinidade, depois era o sol abrasador e o calor sem ventania alguma, por vezes, achava que a travessia do Saara foi um paraíso comparado com isto.

O sangue da regra da Maria Chanfrada tornava-se mais difuso. Perguntarão vocês quem é essa Maria, eu próprio nem sei se é homem ou mulher, o tal ou a tal é mais robusta do que eu e dizem que ata as mamas com gaze branca e rapa todos os dias o buço para enrijecer o pêlo, ela ou ele são de facto esquisitos, as ancas são largas e as pernas roliças, anda sempre com uma faixa vermelha atada à cintura onde enfaixa dois bacamartes de pederneira secos e prontos a disparar uma bala maciça de chumbo, traz uma coquilha e por debaixo dessa coquilha quem sabe o que estará?...Estou danado com a Maria chanfrada porque de certeza que sei que ela é fêmea e se desmazelou com a regra e sangrou o tombadilho todo e eu agora tenho que limpar o puto do sangue senão o capitão manda-me para o cesto do joanete de castigo onde já se encontra Monga de plantão.

Miro para lá mas a intensidade amarelada da luz obriga-me a fechar os olhos, não o consigo ver mas consigo ouvi-lo gritar:

- Galeão a bombordo! Galeão a  bombordo! – chiça, pelas chagas de Cristo o Santa Trinidad carregado de ouro do novo mundo, vejo capitão Van Gekookt e o imediato Bartholomeu a acercarem-se da amurada do castelo de popa, o capitão saca o seu longo binóculo tentando confirmar a identidade do longínquo galeão. Passados alguns momentos em que todos estávamos com o coração nas mãos, o imediato brada pelo megafone de latão:

- É O SANTÍSSIMA TRINIDAD, RAPAZES! VIVA A REPUBLICA UNIDA DE LOS PAISES BAIXOS. – todos gritaram viva, e quem tivesse o chapéu ou o gorro listrado atira-o ao ar, eu apenas fiquei apreensivo. Andávamos atrás do galeão há dias e finalmente ele estava ali a bombordo, mas não podíamos abordá-lo, havia pouco vento, nem remos, apenas poderemos aguardar…

- Piloto! Virar a bombordo! Mestres! Guinar a mezena, giba e o velacho[6] a bombordo.  Imediatamente os marinheiros das velas laboram afincadamente, fico amarrado à amurada a observar os trabalhos do velame para aprender. Monga, acabado o castigo, desce cuidadosamente pelos enfrechates[7] , vindo ter comigo e observando a azáfama,

- Mas não há vento para ir ter com o galeão das Espanhas! – comenta. Engulo em seco

- Será a nossa primeira batalha em alto mar! Monga, já mataste alguém? – o negro responde-me negativamente pondo-me a mão no ombro.

- Não te preocupes, diz quem sabe que não custa nada ao contrário do que pensas. – faz o gesto de cortar a goela com uma faca. Deve ser como matar um coelho ou uma galinha, penso eu, mirando o sol descendo vertiginosamente no horizonte.

Somos quatro barcos com dez homens cada e navegamos no escuro.

- Raios, piloto, estamos a las ciegas!

- Falai baixo capitão, eles podem ouvir-nos. Devemos estar quase em cima deles… – Mas navegamos há duas horas com os remos em silêncio e nem sombra do galeão fundeado. De repente vimos uma luz que se apagou, dirigimo-nos para lá remando. Por debaixo do barco, nas águas escuras, tubarões rondam…Estou com as mãos trémulas e quase me mijo, é a primeira abordagem da minha vida, mas não vou trepar para o navio com o cabo do sabre na minha boca, mas é quase igual.

Os espanhóis são uns desmazelados, apesar de nos saberem perto existe sempre um desleixado que acende um cachimbo ou uma tocha aclarando-nos o caminho, e finalmente vimo-lo, e era enorme recortado com as suas sombras contra o céu escuro com altos mastros e um casco capaz de albergar uma pequena cidade.

Setenta peças de artilharia, julgam-se inexpugnáveis, tal como o império espanhol. Rodeamo-lo aproximando-nos do altíssimo castelo de popa com as suas janelas corridas, seria mais fácil abordá-lo daqui subindo cautelosamente pelas colunas das janelas rendilhadas tomando as sentinelas no topo. O primeiro barco, o nosso, avançou, atracamos em silêncio:  

- Sabes disparar lo bacamarte? – questiona-me Van Rufiing, dando-me a pesada arma pela coronha de prata. Aceno afirmativamente balançando no barco, vejo-os a abocanhar os cabos dos alfanges com a boca e a começarem a subir feitos gatos escalando agilmente e em silêncio os varandins do camarote do capitão. A morte trepadora vai pintada de negro… aguardo. Aguardo….aguardo no barco vacilante com as mãos a tremer preenchidas com uma clava de puas e com a pesada arma de pederneira. Desaparecem lá em cima no escuro, ouve-se alguém a bater a caçoleta, um corpo escuro cai nas águas, um disparo de mosquete assusta toda a gente!! Imediatamente enfaixo na faixa vermelha o bacamarte, agacho-me, pego num gancho preso a uma longa corda e arremesso-o lá para cima fixando-o cá em baixo, os outros três barcos embatem com o casco no meu, e todos começam a trepar o castelo de popa, novo tiro de mosquete, e outro e outro, a tripulação espaniola adormecida começa a bradar:

- Abordage! Piratas, hijos de perra!! - É só granel e confusão.   

- Monga, onde estás?

- Estou aqui no barco, está atento e pega no bacamarte. – agacho-me e de bacamarte em riste aguardo, corpos caem, um vem à tona, ouço-o a insultar a minha mãe  em espanhol,  disparo o bacamarte, mas a pedra cilíndrica da pederneira devia estar húmida.

- Raios! – Então, com a coronha, desfiro-lhe um golpe profundo na cabeça, ele fica a boiar até que sinto-o a ser abocanhado pelas pernas por um tubarão, sua cabeça sangrada ainda viva submerge com os braços a gesticularem freneticamente ao mesmo tempo que  tochas se acendem, faço fogo faiscando a pedra de sílex e acendo a minha, o cheiro a pólvora começa a ser intenso juntamente com o ardor da batalha, ouço, na refrega inebriante Van Gekookt a ordenar a Bartholomeu:

- Virem as columbrinas[8] para o casco!  Para o camarote do capitão!!! Disparem! Disparem! – uma violenta explosão seguiu-se que até me atirou para as traves da embarcação. Noto, enquanto recozias as dores na mona,  que o barco de Monga apanha com diversos estilhaços de madeira.

- Monga, estás bem?

- Chiça, menino! Falhou-me as ventas por pouco! - Acima das nossas cabeças flutuantes o castelo de popa com as suas largas janelas rendilhadas e seus varandins estavam a arder encimados por estátuas de madeira de sereias e trintões, num quadro irreal de inferno marítimo. Perante tal quadro de perigosidade manobramos os barcos seguindo-os ao largo do casco sempre com o bacamarte pronto a abrir fogo. De lá de cima intuíamos o que se estaria a passar pelos gritos e ordens dum lado e do outro. Aparentemente, ao dispararem a columbrina, um rombo abriu-se no camarote do capitão, entraram todos de rompante caindo como lobos do tecto esburacado e tomaram-no como refém a ele e aos oficiais nos camarotes contínuos. Os pobres coitados nem sabem o que lhes caiu em cima, todos de camisa de dormir com os alfanges apontados à goela, o resto foi fácil perante as ameaças da Maria Chanfrada ao resto da tripulação armada no resto do galeão:

- RENDEI-VOS, FILHOS DUM CÃO, OU O VOSSO CAPITÃO E OFICIAIS SALTAM DO TOMBADILHO SEM CABEÇA!!!

- Sem dispararem um tiro renderam-se. Achei a abordagem muito fácil e ao mesmo tempo tudo podia correr mal. Grito para a escuridão.

- Monga, vou subir.

- Está bem! Atira-me o teu cabo para amarrar o barco. – fiz o que me era pedido  e alço uma corda com um gancho para a amurada, certifico-me com dois puxões que está bem preso, começo a subir como me ensinaram, de gatas com os pés descalços alicerçados nos travessões, na escotilha, na portinhola,  e obrigando os braços com uma força descomunal a puxar o corpo. Fui lento, tenho muito que aprender; a tremer salto para o convés onde agrilhoam os espanhóis e os alinham sentados, sacando-lhes os anéis e os fios de oiro e prata onde balançam as cruzes do mesmo material, o nosso cirurgião abana-me:

- Criado-de-bordo, rápido! Arranja já água doce para o camarote! Rápido, porque esperais! – como um relâmpago abalo para a popa. Imediatamente tomo um archote e grito para os prisioneiros sentados:

- Despenseiro! Despenseiro! – a medo um Don sevilhano levanta o braço, dou pontapés aos outros que me atravancam o caminho, pego-lhe pelo colarinho do seu gibão de couro de mangas curtidas e berro-lhe ao ouvido:

- Água fresca!!

- Abajo en el porão!

- Hei, Estevez, desagrilhoa o rapaz! – rapidamente o alentejano ao serviço da Holanda liberta o castelhano, amarro-o pelos cabelos e descemos à luz vacilante das tochas pelas inclinadas escadas, para dentro da enorme coberta, calcorreamos prudentemente o vau, vendo a bombordo e a estibordo da enorme coberta os alinhados e pesados pedreiros[9] tristes por não terem sido usados. Jesus! Eles estilhaçavam-nos num abrir e piscar de olhos! Paro por momentos e pergunto ao castelhano?

- Quantas peças?

- 86 peças, quarenta arriba e quarenta abaxo. Tengo que vos felicitar, fomos desleixados, tal como ustedes um dia, o serão, o dia a dia de vida no mar torna-nos relaxados e indolentes. – diz-me encolhendo os ombros num português quase perfeito. Torno a empurrá-lo à minha frente, tornamos a descer para outra coberta e o ar torna-se mais pesado, na mesma os pedreiros tristes e alinhados, chegamos à parte funda do porão junto à quilha, a luz da tocha faz fugir os ratos, barris alinhados  uns em cima dos outros serviam de lastro ao navio, depois deles uma porta com correntes presas numa bolorenta fechadura.

- O que é que está ali dentro? – o despenseiro de lenço negro na cabeça e bigode negro petulante não me responde encabulado, torno a pegar pelo colarinho do seu gibão. De súbito largo-o e alumio com a tocha a ferrugenta fechadura, saco o bacamarte  e com a tocha aqueço a pedra da pernedeira, a principio o espanhol julgou que eu o ia matar com um tiro na mona, vejo-o surpreendido a agachar-se e a rezar em latim pedindo à mãe de Deus que o leve junto para os seus familiares. Lembro-me de padre Ramon, disparo, disparo a bala redonda rompendo a fechadura e soltando as correntes estilhaçadas. O som propaga-se porão fora e levamos as mãos aos ouvidos, com o ar em polvorosa dou um valente pontapé na porta e de rompante alumio o seu interior. Céus! Minha mãe que eu nunca conheci! Que raios é isto?

- Que raios é isto, hijo de perra?

- Oro de las  Américas, oro de los índios, das minas, dobrões, estatuas, jóias, lingotes, onças, 70 mil peças além dum carregamento de cacau. – diz desalentado o despenseiro por agora tamanha riqueza estar à mão de corsários holandeses.

- Cacau?

- Sim, isso também é riqueza em qualquer porto do velho mundo é comercializável… -  Ficamos sem fala a alumiar as doiradas pepitas, estatuas, lucernas, candelabros, estatuas de deuses extintos pela ganância em curiosas formas, bruscamente lembro-me da água potável, e dou um pontapé ao despenseiro:

- Depressa a água.

- Sin Senõr. – subimos atabalhoadamente com um balde para cima onde me dirigi apressado à ré onde estavam os camarotes dos oficiais. Passo por Estevez que me diz para entrar num exíguo compartimento onde o nosso barbeiro juntamente com o cirurgião espanhol acompanhados de Bartolomeu e Van Rufiing estavam a assistir alguém em cima de uma dura mesa, céus! É Van Gekookt que está com o pé desfeito! Chiça! cheira a podre e é um mau cheiro bafiento e pestilento de carne putrefacta, o pé não tem hipótese! Dou a água fresca ao barbeiro e retiro-me para o apertado corredor onde Estevez e Bordallo e me dizem o que aconteceu:

- Foi de louco Montês! O capitão manda-nos disparar a columbrina para o casco. Ora assim o fizemos e nos distanciamos enquanto eu introduzia a mecha a arder no buraco e a pólvora explodia levando o casco, só que o raios da pesada columbrina em vez de flectir para trás para o lado onde estava presa, com o impacto da explosão solavancou e rodou no ar aterrando bem em cima do pé do nosso capitão,   

- Chiça!

- Bota chiça nisso rapaz!

- Ei! Alguém daí me ajude a serrar o pé!

Miraram-se os dois e depois encaram-me franzindo a selha:

- Ei, rapaz-de-bordo, porque esperas?

Enervado, ainda consigo dizer aos dois enquanto abaixava a cabeça para reentrar no apertado camarote:

- Estão setenta mil peças de oiro no porão! -  viro-lhes as costas e oiço-os a correrem como doidos pássaros gananciosos pelo apertado corredor. Entro para o martírio baixando a cabeça que rasa o tecto. Van Gekookt estava estirado numa mesa a tremer, o pé bom estava atado e pregado com um cinto à mesa para ele não espernear enquanto serrávamos o pé atingido e essa era uma poça de pus, carne putrefacta e sangue espesso. O físico espanhol manda-me segurar-lhe o peito com força juntamente com Bartholomeu. O capitão bebe duma botija de barro vidrado um rum escuro e forte, olha para nós a suar e a tremer, uma pálida imagem do que já foi, o cheiro do pé desfeito era nauseabundo.

- Wat Wacht verachtelijke worm?[10]

O físico espanhol saca do seu estojo de lona verde um serrote, rega-o com o rum, e depois borrifa o ferimento putrefacto igualmente com a bebida. Van Gekookt vai aos arames mordendo o cinto de couro e amarrando forte nos nossos costados, depois metodicamente com tinta de pena de ganso desenha com minúcia o local onde o serrote iria laborar comentando com o nosso barbeiro:

- Estás a ver? Aqui! entre o fim da tíbia e o tornozelo? Depois é só cozer e pronto. Amarrem-no bem!! – trememos todos, o barbeiro e Van Rufiing seguram forte as duas pernas, o serrote toca a pele acima da negra infecção, de repente num balançante movimento os dentes da serra penetram rasgando a branca pele e sangue holandês borrifa-nos no semblante. No primeiro impacto Van Gekookt fico sereno e em estado catatónico, depois, eram elas! Cospe o cinto  e um grito longo, rouco, alto quase nos fura os tímpanos.

O cirurgião castelhano, imune, continua metodicamente a serrar e a suar rangendo os dentes, sinto uma força enorme dos braços do gigante bávaro impulsionando-me para cima, cerro os meus também pressionando-lhe os fortes braços de homem do norte e mantendo-o em baixo com a ajuda de Bartholomeu, um repentino esguicho de sangue fere-me o olho mas não posso desentupi-lo porque tinha as mãos a pressionar o bávaro, e então com um olho a arder fechado vi o pé a ser separado do corpo e a ser atirado para um barril de detritos, vomito automaticamente em cima do bávaro.

- Que horror! – grita o cirurgião

- Virgem Santíssima, controla-te rapaz!  - Ordena-me Van Rufiing. Minhas narinas fechavam-se com o cheiro nauseabundo da carne, miraculosamente o vómito não caiu em cima da amputação do pé. Van Gekookt desmaiara, o cirurgião mede-lhe o pulso, eu torno a vomitar no chão, o cirurgião começa a cozê-lo puxando as peles escuras e pestilentas que ficaram soltas do tornozelo para cima, todos suamos e o camarote fede a tripas, sangue e bílis.   

- Pelos céus, Montês! Abre as portinholas!

Uma brisa marítima refresca-nos a tola, mas à minha saturada mente emerge a imagem do espanhol a ser levado pelo tubarão para dentro das águas escuras, estamos sós no mundo perante a morte. Estamos sós num mundo implacável e cru, sem salvação possível… acalmamos todos como o equador do decesso. Dou duas bofetadas ao sardento a ver se ele acorda, lentamente o bávaro abre os olhos. Quando o cirurgião acaba de o cozer, o barbeiro não o deixa olhar o pé coto e dá-lhe uma garrafa de grogue do bom. O capitão, a tremer com suores frios, emborca-a, saímos extenuados para o apertado corredor apoiando-nos estafados nas pranchas de madeira, de lá de dentro o capitão brada: 

- Heilige! Ik ben niet een complete mens![11] – o barbeiro pergunta preocupado escarrando para o chão:

- Hei! o capitão ainda tem a pistola com ele carregada?

Um tiro seco seguiu-se. Apavorados, reentramos no camarote entulhado de fumo do polvorinho. Espantados após dissiparmos a poeira com cheiro a enxofre, vimos nosso malogrado capitão estatelado no chão com a mioleira aberta e um sorriso rasgado rompendo-lhe as faces

Estava calor e nem uma ponta de vento zumbia nas velas mortiças. O sol queimava-me as têmporas atrozmente enquanto via o corpo do nosso malogrado Van Gekookt envolvo num branco lençol de linho depositado na longa tábua que saía do passadiço para a abissal fundura azul. Revejo, revejo todas as latinas orações fúnebres que Ramon me ensinara mas o único que me saiu da garganta frente aos homens alinhados no convés foi isto:

Mari quod est maris

Hoc piscis cadáver bavarium protestatium devorant

Ad infernum cum ile ![12]

Bartholomeu, ao meu lado, coadjuvando-me nas exéquias, pergunta-me emocionado:

- Que palavras bonitas! Que disseste?

- Encomendei-lhe a alma ao criador e aos anjos do Senhor! – à nossa frente Van Rufiing com a sua bota de coiro empurra o pesado corpo envolto em linho para as calmas águas do golfo do México, o mesmo cai pesado e rodeado em voo pelas gaivotas em frenesim com seus guinchos estridentes antes mesmo da voracidade dos tubarões. E agora, quem assumirá o comando do galeão? O imediato, sem mais delongas, ordena aos alinhados homens:

- Libertem os espanhóis, inutilizemos os canhões deles e as velas, se quiserem que remem até à próxima feitoria! Vamos! Porque esperam?

- Vamos, toca a andar! - Conclui Bartolomeu disparando o seu bacamarte para o ar. Depressa esquecemos a morte do nosso bávaro capitão e executamos as ordens com prontidão sempre com os dobrões espanhóis no porão a tilintar nas nossas cabeças gananciosas.

Vimos partir a nau e manobramos pesado as 70 mil peças em direção ao Brasil para dá-lo à republica holandesa, mas sobreveio um burburinho acicatado por Bartholomeu que circulava sorrateiramente por entre o húmido porão, o salgado convés e o ventoso tombadilho: 70 mil peças! E vamos dá-las assim de mão beijada aos protestantes burgueses bávaros para recebermos uma miséria!?  Não é justo! Devíamos era ficar com o oiro espanhol para nós! Fazer-nos ao mar!

- Fazer-nos ao mar, que raios é que ele quer dizer com isso? -  Monga encolhe os ombros tornando a esfregar indolente as tábuas de madeira do chão:

- O sangue não sai! Metamo-nos na nossa vida, menino, e dêmos graças por estarmos vivos. Lembra-se há 60 dias onde estávamos nós? Lembra-se? – pergunta-me abanando-me os ombros:

- Estávamos agrilhoados na porra do deserto do Saara e a mim só me ocorria um pensamento: tirar a vida, irei tirar a vida! E agora menino não me ocorre esse pensamento. – torna a esfregar o chão já mais satisfeito. De cima alguém grita:

- Reunião no tombadilho! Reunião no tombadilho! – engolimos em seco e para lá nos dirigimos pelo apertado corredor atropelando-nos nas inclinadas escadas. Lá em cima no convés, subo por um dos enfretaches laterais para ter melhor visão. Juntamente com Maria Chanfrada amarrados feitos macacos ás cordas vimos Bartholomeu do alto do tombadilho vestido de gala com uma casaca carmesim com galões doirados, levantando a sinistra ordenando silencio. Soprava um vento Este de bombordo que trazia calor à minha pele crespada.

- O imediato parece um galináceo assim vestido!

- Sim, vestido como um capitão.

- Caros camaradas de armas, pedi esta reunião para dar azo ás vossas aspirações levantadas nestes últimos dias pela maior parte de vós.

- De vós quem? Dos portugueses e dos negros? – grita um marinheiro bávaro do fundo do convés provocando um alarve geral.

- Não só de nós mas sim da parte dos camaradas bávaros e que se resumem ao seguinte:

Estes últimos quatro anos temos sido corsários da república protestante holandesa, temos passado as passas do Algarve e para quê? Pergunto eu. Lembram-se das chalupas francesas há um ano e dos bergantins ingleses há seis meses, quanto é que a coroa pagou por esses saques que nos custaram a vida de tão valorosos companheiros? – alguém grita revoltado 1%.

- Sim, meus companheiros apenas uns míseros 1% que nem sequer nos dão para as solas dos sapatos!! Ora porra! Ao diabo com eles! – gritos de revolta  se ouvem  mesmo dos holandeses, apenas Van Rufiing não parecia estar a gostar muito da conversa.    

 – E agora pergunto eu, será justo, meus valorosos companheiros de lutas e desventuras, será justo entregar-nos no longínquo Brasil holandês de bandeja as 70 mil peças de oiro ao bandido que nada faz para as obter? – gritos de ao caralho com a República e revoltemo-nos se fazem bradar. Eu permaneci em silencio enfaixado no enfretaches, Maria Chanfrada com mais anos de mar do que eu, passa-me uma adaga e sussurra-me ao ouvido: - escolhe um lado, Montês, e espero que seja o meu senão corto-te os tomates! – engulo em seco procurando a carapinha de Monga algures no irrequieto e flamejante convés. Bartolomeu retira seu chapéu de abas largas da cabeça e continua: - Proponho, companheiros de má vida, que o ouro seja nosso e que o dividamos e o estoiremos em Hispaniola! Que sejamos livres! Como são os piratas como Robert Surcouf ou William Kidd! – brada Bartolomeu cerrando os punhos no ar. Van Rufiing sobe o tombadilho pedindo silêncio com as mãos. Era enorme, branco e gordo, bastante mais gordo que o beirão Bartholomeu, apartou-o para o lado de maneira ríspida, dirigindo-se à empolgada audiência:

- Pobres miseráveis mal agradecidos, sem a  república holandesa que vos foi buscar às mais tascas imundas dos portos de Portugal e da Bavaria onde vocês passavam fome de rato  e lhes deu o estatuto de marinheiro, que  é que seriam vocês agora? a Bavaria equipou-vos com um barco novo e a promessa de após vinte anos no corso, uma reforma vitalícia em território holandês de 100 florins mensais, e agora, ratos vis e mal agradecidos, quereis agora cuspir na mão que nos alimentou, seus ingratos! Além do mais os piratas são desmazelados, e andam sempre em embarcações degradadas e só sabem beber e andar à bulha. Isto é um barco da república holandesa e isto é um motim. A ti ingrato Bartholomeu português destituo-te de imediato, homens prendam-no! – um tiro seco de arcabuz seguiu-se, Diogo por detrás da mezena a uma distância de cinco metros desfaz a mona a Van Rufiing, e enquanto o grande bávaro tomba, sangue respinga o tombadilho que eu tantas vezes lavei e parte da mioleira caída é abocanhada por uma atenta gaivota que nem sequer aqueceu o chão de madeira. Começa a luta, Maria Chanfrada pergunta-me antes de sacar da sua ilharga o sabre:

- Com quem estamos?

- Com o português. – abocanho o cabo da adega  e  saltamos para o chão, ali na confusa refrega o primeiro a encarar-me é Monga,

- Com quem estás?

- Com o holandês. – responde-me,  fiquei confuso, Monga dá-me com o pau! Desvio-me por milímetros e com um pontapé frontal no peito atiro-o ao chão e caio em cima dele. Tentando chegar a minha lamina à sua traqueia ameaçando-o:

- Monga que dizes? Bartolomeu é melhor para nós! – berro-lhe aos ouvidos. Ele amparando-me os braços responde-me antes de me cabecear a nuca:

- Não quero ser pirata Montês! - Caio redondo com a narina em sangue. Ele torna a cair em cima de mim estrangulando-me com seus braços como cepos:

- Não podemos estar sempre a mudar de amos, menino!

Tinha perdido a adaga, tento rodar o corpo mas Monga não despregava as mãos asfixiando-me com os olhos raiados de sangue, uma enorme onda bate na quilha, aproveito e rodo o corpo, Monga desequilibra-se, rodamos feitos pipos pela coberta derrubando pés e pernas da refrega, estancamos na amurada, não o largo e pego na sua cabeça batendo-a nas tábuas, uma e outra vez esmurro-o até à exaustão chorando:

- Preto da merda, porque é que me fizeste isto? Depois de tudo o que passamos juntos preferiste os holandeses! – Maria Chanfrada pára-me as mãos assassinas:

- Já chega, Montês, o galeão é nosso! O GALEÃO É NOSSO! – brada aos quatro pontos cardiais, disparando o bacamarte polvoroso. A refrega antes inebriante e agora calma responde-lhe com brados e vivas!! Miro Monga com o crânio ensanguentado e nem uma ponta de remorsos percorre-me a espinha. Levanto-me com a ajuda da mão calosa de Maria e miro ao meu redor, a fação de Bartolomeu tinha ganho e os perdedores feridos ou mortos estavam a um canto da proa a aguardar a sua sorte…

            E ela chegou macabra, Bartholomeu e seus cabecilhas como Estevez e Bordallo e o Cirurgião Gonçalo de Taborda não podiam correr riscos com os desalinhados assim os que tivessem  apoiado Van Rufiing sairiam pela borda fora:

- Adeus, pedaços de carne rançosa, com sorte, se nadares para Leste encontrareis a costa do México! -  um a um caíram eles para uma morte quase certa no meio do oceano. Enquanto os via tombar acicatados pelos alfanges, cogitava que a vida é implacável e sem misericórdia, e eu naquele momento só pensava em sobreviver. Monga, afinal  tinha razão:  Não te preocupes, diz quem sabe que não custa nada ao contrário do que pensas…Deve ser como matar um coelho ou uma galinha . Bartolomeu desperta-me destes macabros pensamentos:

- Montês?

- Sim, Capitão.

- Tenho uma missão para ti. Hei, imediato desfralda o velacho para ganharmos mais velocidade! – grita ordenando. Põe-me a mão no ombro nunca deixando de controlar as tarefas árduas dos marinheiros com aquele olhar acutilante.

- Qual era o teu posto com Van Gekookt?

- Criado-de-bordo.

- Então nomeio-te agora rapaz-da-pólvora. Fala com o Telles ou com o outro…o Hansen para aprenderes o oficio, mas agora…- leva-me para baixo para a coberta com um sorriso rasgado debaixo daqueles bigodes negros e longos:

- Sabes ler e escrever e já me disseram que és bom a bordar.

- Sei fazer tudo. – respondo-lhe humildemente amparando-me numa coluna de madeira devido ao balançar do Galeão.

- Pois bem, Montês, meu pedaço de carne bastarda, vais-me confecionar uma bandeira pirata e tal como no meu sonho o seu símbolo será… -  puxa o meu ouvido da sua boca desdentada:

- Um marinheiro com um coração vermelho a beber rum com a morte esquelética.

- Magnífico!

- É, não é? será essa a nossa auriflama. – declara com os olhos negros a brilhar e um bafo a rum que faria desmaiar 100 baleias da costa nova.

- E o lema da bandeira, senhor?

- Também sonhei com ele..- diz-me apoiando-se em mim para contrariar o enjoativo balançar..- era algo vago, como o tempo escasseia, mas  em latim. – a minha mente aclarou-se:

- Tempus fugit. – visualizo o marinheiro de chapéu alto a dançar e a beber com a morte entrelaçando-se num tétrico e negro amplexo, tempo foge, o tempo foge, é tempo de roubar, pilhar e beber antes que a nossa eterna amante nos apanhe.

- Sim, o tempo foge…dá-me uma casquete que até vejo estrelas…

Sem mais delongas desço aos mais húmidos porões onde o velame estava armazenado, assusto as várias ratazanas movimentando o lampião, tinha a ideia que isto andava aqui, salto para cima do velame amontoado e húmido, e finalmente vejo os pedaços de fazenda negros que foram as capas de dois oficiais da coroa britânica, descosidos e remendados serviriam perfeitamente.

A custo, com o balançar do galeão e os estridentes guinchares das ratazanas, retiro-os da apinhada prateleira, e de novo saio da coberta para o ar livre e salgado do convés. Lá agacho-me no chão e a giz faço um esboço do que pretendia, enfio depois o repucho no polegar e de grande agulha e grossa linha branca de algodão, início o laborioso bordar sentado em cima de um canhão.

Ao meu redor tudo decorria calmamente, dirigíamos com vento de feição para o Sul, para Hispaniola, e a maioria dos marinheiros estava na sorna nas redes do sono da coberta. Cá em cima, o piloto conduzia o leme indolente e os vigias vigiavam um mar imenso e calmo. A terrível negra auriflama começou a ganhar forma, tentei fazer o marinheiro gordo como o nosso falecido capitão, com um daqueles chapéus alto de penacho, com a perna mais levantada do que com a outra a dançar irmanado com a morte e a beber um bom rum, o vento soprava augurando tempestade tropical.

- Montês? O capitão chama-te ao camarote! – ao camarote! Nunca tinha ido ao camarote. Guardo meticulosamente o projeto da auriflama, pelos apertados corredores de madeira puída dirijo-me à popa, onde bato à porta.

- Entra, Montês. – HÁ! Finalmente o camarote, era amplo e espaçoso, ao contrário de todos os compartimentos do galeão, havia uma larga mesa entulhada alumiada pela luz natural que entrava dos altos janelões que rodeavam todo o camarote virado à popa. Pendia do tecto um exagerado candeeiro abalaustrado de ferro, fiquei surpreso quando vi que o capitão dormia numa rede e não numa cama, acerco-me do alto cadeirão pregado ao chão, donde Bartholomeu fumando cachimbo com tabaco das Antilhas, alapado está com ar distante. Mira-me enquanto aproximo-me com certa reverência e retiro o gorro listrado da cabeça.

- Senta-te, rapaz! – ordena-me apontando-me o pequeno banco de couro asiático.

 Lá me sento perscrutando a amalgama de coisas em cima da ampla mesa; moedas de prata de oito reais, um sabre vistoso, caixas de rapé de cobre que eram muito apreciadas por Van Gekookt, polvorinho, uma pistola de pederneira, um compasso e um cursor em cima de um mapa de pergaminho mostrando a costa braziliana, cheio de nódoas de vinho e cinza de tabaco. O capitão, acaricia o oleado bigode negro, arregaça as mangas brancas de linho, levanta-se tomando o equilíbrio da embarcação e declara:

- Montês, temos que ter um código, liberdade não significa anarquia, a lei é a base da Humanidade, e nós, piratas, não somos animais, temos que zelar uns pelos outros, percebes? – encolho os ombros tentando parecer indiferente, assim não apanho por não dar-lhe razão.

- Escreve, Montês, tens ali penas de ganso e tinteiro. – aponta para a caótica mesa onde num copo vidrado colorido estavam penas de gansos e ao lado um tinteiro que, pelo cheiro deve ser feito à base de moluscos. O capitão, entusiasmado dirige-se ao armário donde retira folhas brancas de pergaminho e mas atira quase me entornando o tinteiro. Depois, torna-se a sentar nervoso e dando uma larga passada no esguio cachimbo de marfim inquire-me:

- Sabeis ler e escrever, não é vero?     

- Sim, aprendi isso à paulada com um preceptor jesuíta espanhol.

- Vamos escrever um código que regerá toda a pirataria, tenho pensado constantemente nele, até nos sonhos. – acerca-se de mim perscrutando o fundo lodoso da minha alma com aqueles olhos de falcão negros como a morte turva, mas apesar da sua vista vítrea e assustadora, havia algo de sonhador neles, como se algum dia houvesse a esperança de existência de uma ilha paradisíaca onde os homens fossem todos iguais ou algo do género. A utopia… a utopia de que Ramon me falara, mas essa utopia só existe dentro de nós mesmos.

- São sete pontos, e irás escrevê-los. -  enche-me uma caneca de barro com rum.

- Bebe, rapaz, bebe de um só trago, ordeno-te! que as ninfas da cana-do-açúçar te invadam o ego e te inflamem a imaginação. Já agora como está a bandeira?

- Está quase pronta. – digo-lhe mentindo e sentindo o calo do polegar a ressentir-se. Tomo a valente caneca e respiro fundo. Bartolomeu torna a dar outra larga e pausada cachimbada. A princípio emborquei bem, mas lá pela metade da caneca, o puro rum misturado com pólvora começou a fazer mossa pelo gargalo abaixo e tive que borrifá-lo para o chão enquanto vomitava a ração de biscoitos duros que comera de manhã, numa massa informe de cor bege. O capitão ri à gargalhada, amarra-me, põe-me de pé e dá-me valentes palmadas nas costas, senta-me oferecendo-me um guardanapo de renda para eu limpar as beiças:

- Grato capitão. – vejo-o a voltear pelos enormes janelões do castelo de popa onde o astro rei se afunda no mar e acende a lanterna dependurada no baixo teto.

Começo a ficar hambriento, como um rato com o porão vazio. O capitão ordena ao rapaz-de-bordo, que lhe tragam a ceia. Jaquim traz então, periclitante, numa larga bandeja de latão, ovos cozidos de tartaruga e galinha, carne de cabra e uma outra botelha de rum, tenta achar espaço na mesa mas, desalentado, desiste e coloca-a, perante a passividade de Bartolomeu, em cima das nossas cartas de navegação.

- Come, rapaz, e escreve:  Todo Pirata tem que seguir o código pirata. – meto uma fatia da cabra cozida com açafrão à boca. Molho a pena de ganso no tinteiro colorido e rabisco o pergaminho lentamente perguntando inocentemente:

-  Perdão, capitão, isso não é algo estúpido? Se é um código pressupõe-se que todos tenhamos que segui-lo, não ? – espero a resposta coçando as lêndeas da minha farta cabeleira, desde o Saara que não a corto e tenho então que atá-lo atrás da nuca. Miro Bartholomeu que perante a minha impertinente pergunta  me dirige  um olhar raiado de sangue, decidi daí para a frente não lhe perguntar mais nada. Badameco!!

Todo homem tem direito a  voto nas questões do momento, direito a uma porção igual de provisões e utilizá-las ao seu modo, a não ser que a escassez obrigue o racionamento. - Mais devagar, capitão, não sou nenhum escriba.                                            - Sim, mas bebes como um alarve. Prossigamos:                                                           - Todo homem só pode ser chamado no seu turno, conforme a lista, pois fora dele está livre para descansar e fazer o que desejar. Porém se defraudar a companhia, o castigo é ser abandonado numa costa deserta para ser encontrado por outro navio.                   – Isso não é muito radical, capitão? – pergunto-lhe mesmo a tempo de baixar a cabeça da caneca que ele me atirou:                                                                                                                        - Perdão, capitão, não abrirei mais a boca.                                                                          Ninguém pode jogar cartas ou dados valendo dinheiro. – ainda esbocei uma ténue reação com o olhar mas o capitão tateou o cabo do seu longo sabre:                               Passa-se algo, Montês?                                                                                                     - Posso beber mais rum? - Era para aí a terceira caneca de madeira que eu emborcara e apesar do gosto metálico da pólvora sentia-me relaxado e com uma névoa de todo o tamanho.                                                                                                                         As  velas devem ser apagadas às oito horas da noite. Depois desta hora quem desejar continuar a beber o deve fazer no convés.                                                                             – Finalmente uma boa ideia!! – digo-lhe ébrio brindando-lhe com a caneca. Apanho então um sopapo no olho esquerdo que me fez bater no chão.                                                        Água… água fria nas ventas entrando-me pelas narinas. Jaquim abanava-me a mona e Estevez inspecionava o meu olho esquerdo, declarando sabedor:                                       - Já está bom para continuar, capitão!                                                                                 - Muito bem, contrameste! Ergam-no e tornem a sentar a besta à mesa, baixem as velas e ancoremos, não quero velejar de noite. - Continuar? Continuar o quê? Já sei, meu nome é Montês Malheiro, sou oriundo de Santarém e estou a escrever o código pirata de Bartolomeu e acabo de apanhar um sopapo, ufa! Graças a Deus! Julguei que tinha perdido a memória. As pistolas, espadas e demais  armas devem sempre estar limpas e prontas para a batalha. Chiça! dói-me o olho e sinto-o a inchar.                                                   Crianças e mulheres não são permitidos a bordo. Quem embarcar pessoas disfarçadas é punido com a morte. - E a Maria Chanfrada? – pergunto, agora vou apanhar no outro olho, Bartholomeu pensativo inquire-me na dúvida:                                                          - Essa é homem? Não é?                                                                                                     - Essa?                                                                                                                                  – Hein?                                                                                                                                 – Prossigamos, capitão.                                                                                           Desertores durante combates são punidos com abandono em uma costa deserta ou morte.                                                                                                                                As disputas são resolvidas em terra com um duelo de pistolas ou espadas. Vence o duelo de pistolas quem não for atingido. No duelo de espadas perde o primeiro a sangrar.                                                                                                                   Ninguém pode desistir da pirataria enquanto não juntar mil libras.                                 – Acorda, Montês, Cum raio!                                                                                                – Tenha calma com o cotovelo, capitão.                                                                             Se tornar incapacitado deve ser indemizado com oitocentas libras e assim proporcionalmente para ferimentos menores.  – Mil libras? E porque não reais ou dobrões?

- A libra é aceite em todo o mundo em que o pirata queira refugiar-se. – responde-me o capitão.

             O capitão e o contramestre devem receber dois quinhões do saque ou tesouro. O imediato, o mestre e o oficial armeiro, um quinhão e meio e demais oficiais um quinhão e um quarto.                                                                                                                         - Afinal os do poleiro tem que proteger-se -  diz satisfeito e ensonado com as botas em cima da mesa. Torno a apagar-me e a fechar os olhos, mas depressa os abro com um casquete.                                                                                                                             – Ui!                                                                                                                            Músicos podem descansar na noite do Sábado, mas não nos demais dias a não ser que tenham um favor especial. – torno a reclamar ciente que Bartolomeu já teria poucas forças para me dar outro sopapo:                                                                                        - Mas, senhor,  e se quisermos farra ao sábado, depois de um saque? Não iremos ter músicos?                                                                                                                              – Mum….talvez devamos modificar isso.                                                   

Era uma agonia de estômago, mas o pior de tudo era aquela sensação de incomodo de estar debruçado na mesa, ouviam os homens lá em cima na azáfama habitual mas a minha cabeça estava no fundo do mar, enterrada nas areias pesadas, moles e húmidas da ressaca.

Predisponho-me a abrir os olhos fazendo uma força desmesurável para levantar a cabeça, Céus! O astro rei já despontou no horizonte, oiço um ressonar incomodativo, pesado e turbulento; Bartholomeu dormia nas redes de barriga para baixo ainda segurando na sinistra uma botija de cerâmica de rum, à minha frente várias folhas amassadas de pergaminho continham muitos mais dos que os sete pontos iniciais que Bartolomeu me ditara. Rebusco-os e abismado constato que escrevemos noite dentro 57 pontos, entre os quais alguns, sob o efeito da bebida tão estúpidos quanto estes:

 um pirata nunca deve trocar de botas!

Mas que é isto? -  deito a mão ao meu rego donde um caudal de sangue coagulado manchava-me pernas abaixo as bermudas listradas de linho. Chiça, nem quero pensar nisso!

A Bandeira,, tenho que acabar a puta da bandeira, ui meu rabo! Atabalhoado, Tropeço e caio nas tábuas, o estrondo apenas fez voltear a cabeça de Bartolomeu que coça a desgrenhada cabeleira negra e torna a roncar que nem porco.

Cá fora no convés, habituo os olhos à claridade, e de novo sentado no canhão retomei o meu labor, perante o olhar curioso dos marinheiros, com uma dor de cabeça de todo o tamanho. Talvez por causa disso ou pela visão do meu sangue coagulado nas bermudas decidi depois de debruar o gordo marinheiro do alto chapéu, bordar-lhe um coração vermelho bem no meio do peito, coração… sangue… tomates…mum… como ficará em latim em vez de tempus fugit? cor, sanguinis, tomatoes,  ainda pensei em escrever isso em baixo da gravura mas, relembrando as casquetadas de Bartolomeu, desisto. Agora já só falta o esqueleto da nossa eterna amante; la muerte, aquele que nos esperará sob o afiado fio do alfange….

Antes do anoitecer cerimoniamos o hastear da bandeira, todos alinhados no convés disparamos tiros de mosquete enchendo o ar pestilento de pólvora, miseráveis querendo encher o bandulho da avareza… cães sarnentos adorando a liberdade fraternal do caos…  

À noite celebramos todos na coberta, apartamos as redes do descanso e, com tábuas em cima dos barris, improvisamos uma longa mesa ladeada de lamparinas balançantes. No convés, assamos com cuidado três cabras e dez galinhas que tínhamos capturado do Santa Trinidad e já estavam a ficar magrinhas. Tendo as cabras até começado a comer, no seu desespero, a madeira carcomida da embarcação. Sentado estou ladeado de Hansen e Telles que me tentam ensinar a vida de canhoteiro:

- Com sorte aguentas três anos como canhoteiro! – diz Hansen na sua pronuncia bávara antes de emborcar mais áspero rum.

- Chiça, três anos, assim tanto tempo. Mas, há quanto tempo vossas mercês estão neste ofício? – pergunto surpreendido mastigando uma fibrosa coxa de galinha untada de mostarda.

- Cá o ruivo está na canhota há dois anos, e eu há um ano, é um mester bom até que a boca de fogo rebente devido à pressão e nos estilhace a todos! – sentencia Telles rindo-se à gargalhada com o batavo e dando-me violentas pancadas nas costas, quase que expulso a carne da coxa enquanto observo as suas mãos com poucos dedos e um olho vazado

- É simples rapaz. – torna Telles…- Só tens que primeiro enfiar pela sua boca uma haste de esponja húmida e a seguir introduzes a pólvora comprimindo-o com um soquete, depois nós os dois introduzimos a pesada bala e tu encostas-te a um canto rezando que o solavanco do disparo não rebente as correntes de segurança ou que o próprio canhão expluda.

- É uma vida sobre o fio do sabre.

- Bebamos a isso! – grita o bávaro.  Obrigam-me então a brindar e a beber o meu perigoso mister. Enquanto o saber metálico da pólvora e os altos graus da cana-de-acuçar fermentada desciam goela abaixo causticando tudo, eu cogitava que já andava com saudades do meu anterior posto.

- Nervoso rapaz? – Maria Chanfrada à minha frente brindava-me com a caneca metálica de rum. Respondo-lhe mentindo e chocalhando a sua caneca com a minha, a espuma vil banhou-nos o semblante, entre a anarquia da voracidade:

- Não estou nervoso meu lindo! – Nunca sei o que chamar-lhe – viver sobre o fio do Sabre! – digo-lhe encostando meu ouvido ao seu devido à algazarra, salto por cima da mesa e ponho-me ao seu lado amarrado como dois irmãos da fraternidade, tentei apalpar-lhe as mamas para ver o que afinal era ela, mas recebo um estilete acariciando-me a pele do pescoço.

- Calma, Montês Malheiro, acaso será rabeta?

- Penso que não. – respondo-lhe emborcando mais rum – mas o nosso capitão deve ser. Afinal acordei alagado em sangue ontem dentro do camarote dele, mas como estava com uma carroça de todo o tamanho não me lembro de nada. - Maria ri-se à gargalhada com Telles e Hansen, aproveito para encher a boca com biscoitos imersos em mel e toca a empurrá-los para baixo com mais rum. Creio que me apago batendo com o queixo violentamente na mesa, sentia-me esfrangalhado e não conseguia abrir os olhos, ouvia-os a rir e a comer e a beber.

Novamente água a entrar-me nas narinas, abro os olhos, Jaquim levanta-me e Maria torna-me a sentar na mesa, havia menos algazarra e todos cachimbavam. Torno a meter dos pratos de estanho figos e ameixas à boca a ver se o gosto metálico do rum saía, merda! Tou um farrapo.

- Conta-me a história da tua vida, Montês. – pede Maria deveras interessada. Encolho os ombros, as lamparinas eram ténues e balançantes dando um aspeto fantasmagórico à ceia.

- Vivi toda a minha vida em Santarém mas dizem que vim do Alto Minho duma família da baixa nobreza rural.

- Ah é!

- Sim, dois homens puseram-me de madrugada frente à matriz de Viseu, depois esses homens foram pernoitar a uma tasca antes de seguir para o Norte, ora o taberneiro no dia seguinte veio ter com o meu preceptor…

- O padre Ramon.

- Sim Deus o tenha, e contou-lhe toda a história e daí o meu apelido Malheiro, dos Malheiros de Ponte-de-Lima. Passei então a crescer, indigente, entre as igrejas e os átrios, aprendi a ler e a escrever e agora, no meio de piratas, estou aprender a viver. – Maria passa-me o fino cachimbo de madeira, sorvo-o lentamente e no fim tusso.

- Mas… quem era a tua mãe?

- Aparentemente eu era um filho bastardo da esposa de Estêvão Malheiro, um pequeno nobre que envia sempre os seus filhos para ser soldados, ora a esposa minha mãe teve-me e Estêvão retirou-me numa noite de invernia e ordenou aos dois homens: o mais longe possível para o Sul, se for para Marrocos tanto melhor. Os pobres homens cavalgaram toda a noite e deixaram-me em Viseu…

- Triste história.

- É! Já agora conta-me a tua história? És mulher, não és? – ela pega na minha mão e leva-a aos seus peitos. Lá desaperto-lhe dois botões do jaleco de couro olhando em meu redor a ver se alguém reparava, mas à minha volta estavam todos bêbados que nem cachos ou a dormir pousados com as cabeças na comprida mesa, tateio por debaixo da gaze e eram uns seios magníficos, grandes e fofos.

- És uma fêmea.! – constato a babar-me.

- Sim e depois? Anne Bonny e Maria Red  também são, sabes de quem estou a falar?

- Sei, são mulheres piratas.

- Limpa a baba, Montês.

- Mas como vieste para esta vida? – ela torna a emborcar mais rum rebuscando no pesado e bolorento baú da memória:

-  Cheguei com treze anos a Lisbonna sem família nem eira nem beira. Uma minha tia, que o inferno a tenha.. – cospe no chão. - …entregou-me ao convento da Madre de Deus em Lisboa Oriental, até era um mosteiro arejado, branco, de traça mourisca. No início as coisas até corriam bem, punham-me a lavar o chão, a polir os azulejos, a tratar do jardim…

- Eras uma espécie de escrava.

- Sim, Montês, pode-se dizer que sim. Depois as coisas pioraram, chegou uma nova abadessa e eu já tinha crescido e tornei-me sem poder de escolha uma noviça, mas essa puta madre batia-me, despia-me até estar com o rabo todo ao léu e com um pau de espigões punha-me o cu a sangrar. Então numa noite de chuva, fartei-me e fugi ao calhas até que cheguei ao Cais da Ribeira, lá estavam uns mendigos encostados a uma fogueira a dormitar, gamei umas roupas de homem e fiquei por lá a observar durante os dias seguintes; a azáfama do porto, os marinheiros que chegavam e partiam dos galeões, os bêbados, as putas, os mendigos, aprendi tudo o que havia de aprender sobre como conduzir um barco, acantonar a mercadoria, fazer os intrincados nós, subir a um enfretache para desfraldar o velame, medir os côncavos do mar. Fiz-me aprendiz e nunca mais parei…- encolhe-me os ombros resignada e brinda:

- A vida de homem é a melhor de todas.  

- Brindemos a isso, Maria! – chocalhamos com as canecas de metal. Encosto-me aos seus seios e creio que dormito lá, na mãe que nunca tive e sonho com a ganância de Rafaello e com o tesouro de Ali Pascha na ilhota do Mediterrâneo, o tesouro que nos afundara e nos enviara para a escravidão de Argel e do Saara.

Os tesouros são malditos e atraem desgraças, e afinal tínhamos as 70 mil peças no porão. Levanto a cabeça preocupado deixando os seios maternais de Maria. Angustiado, discorro a visão ao longo da comprida mesa entalada no meio da coberta contando a tripulação:   Bartolomeu, ladeado por Estevez, Diogo, o cirurgião Gonçalo de Taborda, os canhoteiros, o piloto, os marinheiros do velame, os das cordas, os criados-de-bordo, PELA TRINDADE SANTA!

- Maria, quem é que está lá em cima a comandar o navio? – pergunto-lhe amarrado a ela, na minha cabeça o espectro de Van Rufiing admoestava-me cadavérico:  os piratas são desmazelados, e andam sempre em embarcações degradadas e só sabem beber e andar à bulha.

Maria tenta combater a embriaguês e ao dar-se conta que ninguém estava a tomar conta do navio levanta-se, mas torna a tombar, dado que um enorme estrondo no casco a estibordo atira-nos ao chão, tento levantar-me mas a enorme embarcação começa a inclinar e a mesa das iguarias cai-me em cima. Aii meu pé!! Maria Chanfrada com uma força sobre-humana levanta-a gritando enquanto eu rastejo debaixo dela. As lamparinas caídas do tecto inflamam-se e incendeiam-se em contacto  com o rum espalhado na coberta, grito para a Maria no meio do pânico:

-  As barricas de pólvora que fazem de acento, vão explodir!!

Maria beija-me violentamente quase me mordendo o lábio; 

 - Adeus, filho, até à eternidade…

Uma violenta explosão a vinte metros estilhaça o tabuado, levando vários corpos pelo ar, abaixo-me pondo as mãos na cabeça, é só fumarada e homens em pânico a atropelarem-se tentando pôr-se na alheta. Bartholomeu chamuscado, pega em mim e abalamos, a coberta contorce-se em dor, fogo, estilhaços e madeira contorcida. Gritos de horror se ouvem no ar bafiento:

-  Anda, rapaz, anda daí! -  entramos num corredor e descemos para o porão ao mesmo tempo que os sobreviventes no tombadilho tentam chegar aos escalers[13]

- Espere, capitão, o código!! Vou ao armazém das pipas!! – ele não me liga e vejo-o a  desaparecer para baixo, para o maldito ouro.

Estamos a morrer e ele só pensa nas vis peças! Atabalhoadamente e com o pé em dores, retiro de um compartimento secreto nas tábuas da parede uma pasta de couro com o código, ainda pensei em salvar a bandeira, mas decido-me a seguir Bartholomeu para baixo, para o escuro porão. Tomo uma lanterna e com todo o navio inclinado desço pelas apertadas escadas que agora são cascatas de água para baixo com as ratazanas a saltarem-me para cima. Finalmente chego enregelado ao enorme e fundo porão, alumio as barricas de sal a flutuarem na água e chamo pelo meu capitão:

- Barthomoleu? Bartholomeu donde estais? – vou chapejando ás aguas frias que me dão pela cintura e mais à popa, vejo a nossa ganância a ir ao fundo e Bartolomeu inconsolável como um menino em cima das amontoadas e pesadas peças de ouro que se afundavam com o navio. Chego-me a ele e aproveito, pragmático como sou, de meter uma estatueta inca de ouro na capa de couro do código:

- Capitão, meu capitão, largue as barras! não as conseguiremos levar. – mas Bartholomeu não me ouvia obcecado com o abastança que se afundava, encaro-o e obrigo com as minhas fortes mãos nas suas têmporas a encarar-me:

- Bartholomeu, as riquezas vão para o fundo, mas nós temos que ficar à tona. – ele encara-me desgostoso e, de súbito, acorda para a realidade:

- Ao diabo com o oiro! salvemos pois a nossa vida! – lutando contra a escuridão e contra ás águas cada vez mais fundas, subimos a custo para o convés onde o último escaler preparava-se para ser  atirado ás águas:

- Estevez, Telles, entrem no barco, nós desceremos as cordas.

- Sim, capitão! – amarramos então nas cordas enquanto o escalier com 5 homens a bordo era periclitantemente descido através de duas roldanas:

- Força, Montês, devagar! – enquanto meus braços doridos se rompiam, via meus malogrados companheiros em baixo no mar revolto a esbracejarem  para não serem lançados contra as rochas, corpos boiavam e um escaler era despedaçado contra um enorme rochedo, esperemos que não tenhamos essa sorte…  por fim, após um extenuado esforço, sentimos o escalier a esbarrar nas águas.

- Saltemos nós agora, Montês!

- Mas, capitão, você não sabe nadar! – ele amarra-me pelos ombros e grita-me aos ouvidos confiante:

- Não faz mal, eles puxam-me –  subimos a tremer como varas verdes para a amurada, damos as mãos e  atiramo-nos o mais possível perto do escalier lutador lá em baixo. Era mais alto do que eu imaginava, nunca mais caía lá em baixo, de repente mergulho, fechos os olhos e como um prego vou ao fundo devido ao peso da estatueta inca, como é fácil ir ao fundo sem forças é só deixar-nos levar…resolvo lutar contra o atroz destino, esbracejo nas escuras e revoltas águas por vir à tona, vejo a dois metros Bartholomeu a ser içado para o escalier, então do âmago pantanoso do espírito arranjo forças para nadar, submergindo e amarrando uma corda do escalier que me puxava  para a vida. Içam-me para a vacilante embarcação da salvação , lá dentro, amarrados à amurada e aos acentos, esperamos vendo os outros escaliers a desaparecerem e pedindo a que Neptuno não nos atire contra as rochas. Subitamente Bartholomeu começou a recitar fervorosamente o rosário, eu acompanhei-o e de cada vez que fechava os olhos estava de volta à alcáçova de Santarém a acompanhar padre Ramon como os pés descalços a serem aquecidos pela salamandra….

Passamos toda a noite sem estrelas ao sabor do vento, vendo as formas recortadas e afiadas dos rochedos ameaçarem-nos constantemente. De vez em quando um corpo dos nossos malogrados passava a boiar, como dizendo-nos adeus canalhas! Cá vos espero no fundo ih! ih! Ih!

- Chiça, tou a ficar maluco, capitão, acho que oiço os mortos a zombarem de nós no fundo do mar. – grita Estevez encolhido.

- Coragem, homens, não tardará a amanhecer, tapem os ouvidos e não liguem à vossa consciência!

Lentamente, muito lentamente o mar amainou à medida que ia clareando, destroços aqui e além do galeão voador boiavam e diziam adeus. Bartholomeu põe-se de pé, avalia o vento, tenta decifrar por onde andaríamos nós, retira do bolso lateral do seu jaleco uma bússola, sinaliza o Noroeste a bombordo e perante a nossa apatia ordena:

- Recoloquem a verga, içem o mastro e desfraldem a vela, iremos para Campeche!

- Mas, capitão, demoraremos…

- Três dias e três noites com vento favorável e força de remos…

- Mas, capitão, não temos água potável nem comida.

- Ora imediato, o corpo aguenta duas semanas sem sustento e dois dias sem água potável, apanharemos chuva concerteza e em Campeche comeremos… será à tangente. – diz esperançado..- E agora porque esperam, marujos, temos vento de feição alé lá para Campeche não temos o dia todo! – e assim o fizemos, ensopamos, no nosso limite de forças e numa exígua embarcação apanhamos vento de bombordo e seguimos para Campeche, deixando para trás 70 mil peças de oiro do fundo do mar, mas ninguém disse nada a Bartolomeu e apesar de estarmos incomodados por ele não destacar ninguém para comandar o navio durante o jantar, estávamos tão ensarilhados na nossa própria miséria que tudo o que queríamos era safar-nos, apenas isso.

Conseguimos matar, com um dos remos, uma gaivota, e um dos marujos de nome Mendo Fernão atirou-se de repente ao mar com o cabo do punhal trincado na boca e trouxe de lá uma tartaruga que nos aprovisionou para dois dias, alem do mais o sangue substitui a água….apesar dos vómitos.  

De noite navegávamos tendo por referencia as estrelas, era horrível e dei por mim a pensar que iria morrer ali, mas capitão Bartolomeu mantinha a moral em alta, ora cantando ora rezando, ora recordando as mil e uma aventuras e façanhas por que ele passou. Finalmente, ao raiar do terceiro dia, vimos ao longe a baia de Campeche recortada contra o céu

- Jesus seja louvado! – gritamos.

- Calma, marujos, não podemos aportar ás claras, esqueceis-vos quem nós somos? teremos que desembarcar numa praia cercana e graças à prudência de Montês em guardar a estatueta inca, poderemos  comprar roupas condignas antes de entrar em Campeche que não vos faz mal lembrar é uma feitoria espanhola e já devem ter chegado aos ouvidos das autoridades que o Santa Trinidad foi espoliado.

- Ou seja, capitão, temos a cabeça a prémio! – constata deveras preocupado o imediato Esteves.

- Sim, meu macabeu! Teremos que dizer que somos honestos comerciantes portugueses ou algo que o valha.  Mas agora toca a remar que estamos longe da costa…

Sob um sol escaldante de Estio e sem vento algum decorreu uma eternidade à custa dos nossos braços esbulhados para chegarmos à costa. Vimos, lentamente, a soberba fortaleza branca controlando a praia dos barquelos, contornamo-la a custo indo aportar à ponta da mesma, onde puxamos o barco para terra e escondemo-lo nuns arbustos. Mendo Fernão, o mais hábil falador de castelhano leva a estatueta de oiro para arranjar roupas e abrigo. Agachados toda a manhã permanecemos com o estômago ás voltas,. Decido tirar as folhas de pergaminho da bolsa de couro perante o olhar atento de Bartholomeu. Raios, está tudo desbotado! constatamos enquanto íamos esticando as amarrotadas folhas na areia grossa:  

- Capitão, as únicas folhas que se safaram foram as primeiras, os primeiros 7 pontos, os outros 52 foram à vida.

- Raios e coriscos, Montês! quando os ditei estava bêbado que nem uma carroça, ficam os sete primeiros e depois à noite com outra piela veremos se a memória volta! – eu engulo em seco amparando o meu rabiosque.

Finalmente, perto do meio-dia, Mendo Fernão apareceu cambaleante e carregando uma trouxa branca e dois odres de vinho presos na sua ilharga. Suava e fedia a tintol por todos os poros sob o atroz sol e tivemos que ampará-lo na sua queda. Puxamo-lo para a sombra e enquanto sorvíamos o fresco néctar dos deuses Mendo Fernão contava-nos, a enrolar as palavras da língua dormente do vício, o que se passava na cidadela:

- Já sabem que o Santa Trinidad foi espoliado, mas julgam que foi por holandeses e nesse aspecto….- dá um valente arroto - …estamos safos, comprei roupa e aluguei um quarto espaçoso com vários colchões de palha para nós. O ourives a quem eu vendi a estatueta é de confiança e negociamos por uma portinhola em que nenhum viu a face do outro, a avareza supera qualquer risco. Meu capitão, posso descansar? Acho que bebi de mais! – pergunta Mendo Fernão aterrando duro com a cabeça no solo.

- Raio de Fernão Mendo esqueceu-se da comida mas não da porra do vinho!

Vestimos então a roupa já quentes pelo vinho: Gibões de couro fendidos nos braços, camisas de linho, chapéus de abas largas de feltro negro, calções até ao joelho aos folhos atados com fitas 

- Raios, além da comida Mendo Fernão também se esqueceu das botas! – constata Lopo

-  Vamos andar descalços. Isso é bom, podemos ser confundidos por pescadores ao entrarmos na cidade de noite. – remata Bartholomeu

           

                       

A noite serena, quente e mágica acabou por chegar e encontrou-nos a passar, desferrados mas não descamisados, pela puerta de la tierra. Lá, os soldados armados de alabarda, morrião e rodelas, sonolentos estavam ouvindo o dedilhar de um alaúde iluminado pela fogueira e não nos prestaram atenção nenhuma, cabisbaixos, ora ouvindo o tocador ora observando taciturnos as ténues labaredas da fogueira:

Sé poco de mi vida

Sólo la memoria de tu amor

Mis recuerdos son tus besos distantes…

- Bonito. – não sei porquê, veio-me à memoria aquela noite acorrentados em Chacheu, era uma noite igual, corria uma brisa do rio Farim como esta que corre agora do mar, e havia estrelas e Monga estava vivo…

Enveredamos cautelosamente por uma rua estreita ladeada de casas baixas de várias cores e fomos desembocar a uma plaza menor controlada pelo carcel e pelo palácio municipal e por uma torre de defesa. Ao lado do carcel estava o que nos pareceu ser uma tasca com vários homens à porta entre soldados, nativos com seus ponchos e comerciantes e mariolas na amena cavaqueira.

- O quarto é em cima da tasca! - diz em surdina Mendo Fernão.

- RAIOS! foste-mos alugar mesmo ao lado da prisão! – ralha Bartholomeu apertando o braço de Mendo.

- Mas, senhor, é a melhor maneira de passarmos despercebidos.

- Entremos na tasca meu capitão, estamos a morrer de fome. - cumprimentamos todos amavelmente e passamos por umas portas giratórias de madeira rendilhadas iguais ás de Santarém. Lá dentro o cheiro intenso da cera derretida das velas e a bafarada pesada dos cachimbos enchia o denso ar. Reparamos numa mesa escura a um canto encoberta por uma coluna e sentamo-nos lá admirando o baixo teto puído amarelado abobadado. Um índio, sentado noutro canto de calzoneros de algodão tocava o bandolim, e era na mesma  uma canção leda e triste como ouvíramos há bocado na puerta nova

De sus  palabras mi dolor

De tus hechizos mi roto corazón

Mi triste corazón abandonado

Te espera…

- Linda cancion, muchacha. – uma índia descalça, cabelo liso negro esticado escondendo-lhe o semblante, envergando pouco mais do que uma tanga e uma túnica curta castanha se acerca de nós com movimentos ondulantes trauteando a doce melodia das algas tépidas. Começa-se a roçar lentamente em cada um de nós, volteando sensualmente aquele longo cabelo pardo. Senta-se escachada em cima de Telles, que começa a ficar nervoso e a tremelicar. Mendo Fernão, indiferente, pede a Bartholomeu que, entretido de boca aberta admirava as curvas morenas da índia:

- Capitão, posso ir ao balcão pedir rum e comida? – O capitão desperta e amarra-lhe o punho:

- Rum não! podem-nos associar à pirataria, não fales português e tenta saber as novidades!

- Capitão, será que eu e Telles podemos levar a índia lá para cima, para o quarto? – pergunto guloso. Estevez acariciando o seu farfalhudo bigode negro entremeado de brancas. Bartholomeu deita as mãos à cabeça e olha para mim como perguntando se podemos gastar dinheiro. Eu aceno afirmativamente, tínhamos dobrões na bolsa de camurça aí para vinte dias…o capitão acena aos dois sôfregos aconselhando:

- Ide, tende juízo e não falem nada com ela de nós

- Capitão, a intenção não é falar…. – contrapõe Telles pegando na índia como se pega numa ovelha e era um regalo vê-los a abalar os três a toda a brida  lá para cima. Entretanto chega Fernão Mendo com malgas de barro e uma caneca de tintol nativo, ajudo-o a pôr tudo na mesa;

- Capitão pedi fajitas de carne e tenho novidades; a filha do governador deu à luz e é um rapaz. – informa-nos satisfeito e com o sentido de dever cumprido. Ficamos, os quatro, a olhar para ele com cara de burros. Impetuoso Bartholomeu pega-lhe pelos colarinhos respingando enquanto gritava perdigotos para o seu semblante:

-  Diabo de incompetente, novidades é de nós! do galeão! do Santa Trinidad….porra!

- Áh isso, o corsário Van Gekookt está acusado do roubo, nós os portugueses não fomos implicados, creio que podemos estar descansados. – replica Fernão Mendo olhando para todos os lados a ver se a conversa era escutada, mas nada nem ninguém parecia nos prestar atenção. O bandolim continuava a tocar a lamentosa canção das águas serenadas e os poucos  bêbados continuam encolhidos e encostados

- Temos que nos voltar a erguer, tomar uma escuna, que é mais fácil manobrar e fazer-nos ao mar para recuperar as perdas – vira-se para nós, mas apenas lhe respondemos inertes em silêncio e cara de poucos amigos.

- Diabo de morcões – torna a beber mais vinho

Chegou a iguaria e devoramo-la como lobos.

- Não era melhor comermos no quarto? assim passávamos despercebidos. – avisa Lopo

- Não! seis homens enfiados num quarto atraem mais as atenções, quem anda escondido é que teme e depois o castelhano é quase igual ao português. Até os arrotos são iguais! – Complementa Bartholomeu puxando por um valente eructação das suas entranhas. Ninguém se riu dessa piada tardia

- Diabo de morcões. – insistiu desalentado.

[1] Aldeia piscatória de Guiné-Bissau

[2] Holandês

[3] Compre-nos Senhor! Somos portugueses e sabemos lutar!

[4] Nem sei porque queres levar o branco?

[5] Sabe ler e escrever

[6] Velas de proa e popa.

[7] Redes laterais que permitem a subida e a descida dos marinheiros para os mastros e as vergas altas

[8] Canhão relativamente pequeno e bastante manobrável

[9] canhões

[10] Que esperas, vil verme?

[11] Céus! Não sou um homem completo!

[12] Ao mar o que é do mar. Que os peixes devorem esta carcaça protestante bávara. Ao diabo com ele!

[13] Espécie de barco salva-vidas.

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