Capítulo 3

Ao estacionar o carro simples em frente ao prédio, um longo suspiro escapou dos lábios de Sara. No porta-malas, algumas roupas, acessórios, notebook e o unicórnio antigo – presente dado pelo pai no seu aniversário de oito anos – compunham sua bagagem.

Buscou o envelope dentro da bolsa e conferiu o número do local. Pelo vidro, avaliou a fachada. De tijolinhos à vista, três andares, janelas marrons, sem portaria, a não ser uma grande porta maciça de vidro, com trava e interfone, o prédio a fazia lembrar-se das casas antigas que conhecera em uma de suas visitas à Nova York. Procurou por uma entrada de garagem, mas não encontrou. Que lugar é esse, vô?. Em nada combinava com a extravagante mansão dos Tisiros. Será que tem elevador, Sara se perguntou. E, por mais que a simplicidade fizesse parte de suas características, a falta de um jardim aparente, onde pudesse se alimentar da energia da terra, a fez questionar sobre a decisão de abandonar seu antigo lar.

Determinada e, ao mesmo tempo conformada com a situação, Sara desceu do carro com a bolsa amarela pendurada. Decidiu buscar a bagagem, após conferir o apartamento. Com sandálias rasteiras, caminhou até a entrada. Digitou os números escritos nas instruções, e ouviu o som agudo destravando a fechadura.

Adentrou no hall livre de adornos. O espelho retangular com o nome do edifício jateado em letras cursivas cimentava o endereço correto.  Um sofá na cor verde-exército de dois lugares, aguardava o seu uso. Assim como a única planta que enfeitava a sala. Como um ímã, dois passos a levaram direto para o grande e opulento vaso de madeira enegrecida. O coração se encheu de alegria, porém, esvaziou-se na mesma velocidade que seus dedos tocaram na imitação bem-feita de Iuca. Lindas e artificiais, suas folhas longas, rígidas, pontiagudas e com bordas serrilhadas, tiravam a vida do local. Sara se questionou sobre a escolha – da pessoa que o colocara ali – do vivo pelo morto. Por que colocar um plástico se o natural é essencial para nossa existência?, ela indagou.  Preciso consertar essa merda!

Resolveu deixar o lance da planta para outro momento e seguir caminho. Procurou por um elevador. Lógico que não havia nenhum. Por um ínfimo momento, Sara ameaçou reclamar. Contudo, como odiava frequentar academias, aceitou subir os três lances de escada, como parte dos exercícios diários.

Subiu degrau por degrau, bem lentamente. Como se estivesse se preparando para um confronto. E de certa forma era exatamente o que aconteceria. Seus novos dias, as novas responsabilidades transformariam sua simples rotina – ir à faculdade, cuidar do jardim, aceitar as lições de casa e preocupar-se com o avô – em atribulações que ela só conseguiria evitar por mais um ano. Afinal, seus estudos estavam na reta de conclusão.

Conforme as panturrilhas doíam pelo esforço, o som de um violão chegou aos seus ouvidos. Os mesmos acordes se repetiam, como se estivessem sendo treinados. Sara apurou sua audição, ao tempo em que procurava por pessoas transitando nos andares, ou até mesmo outros barulhos que não fossem a tentativa quase desastrada de tocar o instrumento. Sentiu o aroma de café e respirou aliviada. Mais um pouco e a dúvida em talvez ser a única morada, se instalaria.  

Quando chegou ao segundo andar, mesmo com as pausas, Sara reconheceu a melodia. Nothing Else Matters fazia parte de sua playlist, enquanto cavoucava a terra.

— Mais um ano treinando e você chega lá — falou para o eco do corredor. Não que ela fosse alguma expert nesse quesito. Mas, pelo que ouvira até aquele momento, a conclusão do trabalho parecia longe de ser atingida.

Avaliou o espaço. Quatro portas escuras, duas de cada lado, se encaravam. Dois extintores pendurados entre os apartamentos pareciam delimitar o espaço. O piso de granito, sob divergentes tapetes de entrada: welcome; não esqueça de limpar os pés e; trouxe a cerveja?, conquistaram um sorriso no rosto de Sara. Ali estava uma prévia de seus três vizinhos, pensou. O meu apartamento deve ser aquele sem tapete. O dono por trás daquela frustração chamada: estou aprendendo a tocar violão, residia em uma daquelas portas. Acho que é o da cerveja, Sara concluiu.  Abriu a bolsa para conferir a numeração, 20.

Poucos passos a levaram direto para o número descrito nas instruções. Buscou as chaves dentro da bolsa. Talvez o “violão” fosse seu vizinho parede com parede, já que o som continuava forte e irritante. Ela fitou a pequena placa prateada, pensando na ironia do destino, uma vez que esse era o número exato de Flamboyant-mirim que plantara na casa antiga. Uma para cada ano de seu nascimento.

Sara colocou a chave na fechadura cromada e a destravou. O violão parou por um instante. Ela gemeu um ufa. Porém, por pouco tempo. Os acordes voltaram enérgicos. Abaixou a maçaneta e tentou abrir a porta. Fez um pouco de força, uma vez que parecia emperrada. Quando conseguiu o propósito, uma lufada de ar a pegou desprevenida. O aroma de banho beijou suas bochechas. Um passo à frente. Dois. Até que a melodia parou outra vez, abruptamente. Assim como a sua longa silhueta.

— Ah... — Sara encarou o homem sentado com um violão posicionado entre as pernas, buscando por um raciocínio perdido entre a surpresa e um toque de pânico. — Mas... como...

Na face do intruso, a mesma perplexidade o açoitava. Pensou em exigir uma explicação imediata. No entanto, o semblante atônito da moça elegante que havia acabado de interromper o seu treino diário trouxe um toque de alegria para aquele dia que começara de maneira entristecida.

Sara deveria ter feito muito mais do que balbuciar palavras desconexas. Talvez conferir, pela enésima vez o endereço e afins do apartamento, ligar imediatamente para o advogado, melhor, polícia. Gritar por socorro; descer as escadas correndo, fugindo de um suposto homem armado... ou seja, a neta de Vargas carecia de atitudes drásticas e protetoras para sua existência. No entanto, o conjunto da obra bem à frente, com os olhos fixos nos dela, impediram tal discernimento.

— Não sei quanto a você, mas nunca fui muito bom nesse jogo de quem piscar primeiro perde.

A voz potente correu por todos os cômodos, até tocar o corpo de Sara. Ela piscou algumas vezes. O intruso sorriu. Havia sempre uma primeira vez, ele pensou. Se Vargas estivesse presente, diria que a neta era péssima em qualquer tipo de jogo.

Sara aprumou os ombros. Desviar os olhos daquela face bem delineada parecia ser o correto a fazer. Contudo, não ajudava o fato de que o homem expunha uma compleição digna de ser avaliada. O aroma sentido ao adentrar, combinava com seus cabelos úmidos e despenteados. O peito nu, com ombros largos e poderosos, compactuava com o calor que apunhalava as ruas. Com certeza, ela teria sonhos eróticos durante algumas noites. Lógico que Sara olhou para as pernas livres de roupas, afinal, era um dos pontos principais para a moça de quase 1.82 de altura. Homens altos, impertinentes e seguros de si.

— Quem é você? — Sara perguntou com determinação.

— Igor...

— O que está fazendo no meu apartamento?

— Seu? — A dúvida infiltrada em cada pedaço do corpo do intruso.

— Sim, meu. — Talvez fosse o momento mais oportuno valer-se do poder mencionado pelo advogado.

— Com certeza deve haver algum engano. — Ele sorriu. Os dentes brancos e alinhados esbanjavam certa ironia. Sara ignorou os dedos longos, alisando as cordas do violão. Por que ele está sem roupa?

— Não existe engano algum. Esse local é meu, tenho as chaves... — Sara apontou para a fechadura.

— Nos dias de hoje, isso não significa nada. Qualquer um pode conseguir uma cópia.

A maneira como Igor combinou a face descontraída e ergueu os ombros trouxe a Sara uma sensação inquietante com um toque de ultraje. O intruso segurava um violão e não uma bolsa amarela.

— Eu tenho o código de entrada. — Vargas se remexeria no túmulo se presenciasse a cena. Sua neta portando-se como uma criança. Talvez se Igor fosse um homem barrigudo, careca, sem dentes, baixinho... aquela conversa poderia tomar outro rumo. O mais sensato, óbvio.

— Também não me diz nada. Você poderia muito bem ter aproveitado a saída de algum morador para entrar. — Igor escondeu o rosto ao encarar o violão. Que final de tarde mais divertido, pensou.

— Quanta criatividade! Acho que você anda vendo muita televisão ou talvez já tenha utilizado desses artifícios.

— Quem sabe?! No entanto, posso te garantir que nunca invadi a casa de ninguém.

— Eu não estou... — Sara cerrou as pálpebras e respirou fundo. Envolvida pela surpresa e luxúria, nem percebeu o sorriso diabólico que o visitante exibia. Importuná-la estava realmente alegrando seu dia. Por essa razão, continuou.

— Sim, já sei. O apartamento é seu... blá-blá-blá... — Igor balançou a cabeça e dedilhou dois acordes. Fora do tom, claro.

Preciso marcar um horário com a manicure. Esqueci de fazer o trabalho da faculdade. Sara se repreendeu mentalmente. Não era o ideal refugiar-se na sua imaginação. Em contrapartida, Igor decidiu amenizar a penitência causada a ela.

— Moça, você não é a dona daqui. Eu conheço o proprietário e ele é um senhor alto, grisalho, olhos azuis. Gosta muito de conversar, é bem simpático, astuto, adora um bom carteado...

Sara abriu os olhos e, no mesmo instante, suas feições se modificaram. A descrição de Vargas não poderia ser a mais precisa. Sua irritação anterior cedera lugar a algo mais profundo e desesperador. Igor percebeu. Cada transformação. Desde o brilho se apagando, os lábios perdendo a linha fina, devido à raiva, os ombros pesando, até mesmo a cadência melancólica de sua respiração.

— Está tudo bem? — A preocupação dele perfurou a tristeza de Sara. Ela chacoalhou a cabeça, para afastar a fuga, mas falhou. Quanto ele tem de altura?

— Sim. — Sara pigarreou. Os olhos ardiam pela perda latente. No entanto, o intruso exibindo um vinco entre as sobrancelhas não tinha o direito de conhecer essa parte de sua vida. Hora de volta para as questões, ela decidiu.

Igor notou a determinação de Sara para recuperar-se da devastação que invadiu seu semblante. Respirou aliviado. Por algum motivo, perceber que ele fora o causador daquele dissabor, o deixou perturbado.

— Como estava dizendo, ele me autorizou a ficar aqui por uns dias, enquanto acaba a pintura do meu.

O intruso elevou o queixo em direção ao teto, expondo o pescoço longo e deliciosamente livre de barba.

— Ah...

O avô não costumava confiar nas pessoas, mas quando acontecia, Sara poderia depositar sua fé na decisão dele.

— Sim. Bem, da minha parte estamos resolvidos, mas ainda temos que esclarecer como você tem uma chave.

A brincadeira estava divertida para Igor. Porém, Sara resolveu que era hora de terminar o jogo. Já passara tempo suficiente envolta pelo perfume e a névoa da luxúria.

— Porque eu sou a neta desse senhor. — A moça atraente, cruzou os braços em frente ao peito. A ideia era transmitir uma postura séria. Lógico que falhou. Para Igor, não passava de uma menina assustada e triste.

— Bom... — Igor sorriu com um dos cantos dos lábios, aumentando o interesse de Sara. Como alguém poderia combinar tanto?, ela se questionou. — Então isso explica a sua altura e os olhos azuis. Muito prazer... — Ele ameaçou tirar o violão do colo.

— Não se levante! — A voz de Sara fora ouvida pelos vizinhos. O dono do tapete “trouxe a cerveja?” buscou pela intromissão do jogo de futebol, pelo olho mágico. — Você está... — Ela apontou para as pernas de Igor.

— Estou o quê? — Talvez ainda houvesse tempo para mais algumas impertinências.

— Sem calça.

— Uau. Que conclusão óbvia... — Ele se ergueu e no mesmo segundo, Sara tampou os olhos. — Mas estou usando cueca. Se quiser conferir. — Sua voz jovial destoava da impertinência que tumultuava os pensamentos de Igor.

— Obrigada. Que tal colocar uma calça, por favor?

— Se prefere assim. Volto já.

Sara bisbilhotou por entre os dedos. Igor realmente vestia uma boxer preta, tinha uma bunda excelente de se olhar e caminhava para o quarto. Quando retornou, trajava um short de tactel abaixo dos joelhos. A camiseta escondia os ombros largos e definidos, mas Sara tinha uma ótima memória. Ele estendeu a mão para cumprimentá-la. A neta de Vargas retribuiu o gesto. As faíscas que deveriam acontecer durante o toque não ocorreram. Contudo, não havia necessidade. O sorriso, a voz e a péssima atuação com o violão, já haviam conquistado a atenção de Sara.

Mesmo com a cabeça enevoada pela junção mágica daquele homem contagiante de dedos longos, Sara assimilou a situação. Aparentemente eles dividiam o mesmo apartamento. Estranho e perturbador a sensação de ter um companheiro de quarto, ela percebeu. Ainda mais quando o homem parado à frente, todo solícito, era um completo forasteiro, pelo menos para ela. No entanto, se Vargas permitiu tal abertura, o sujeito não deveria representar qualquer perigo. O correto seria regressar para sua casa, por mais alguns dias, mas a saudade...

— Olha, moça...

— Sara. — Ela clareou a garganta e soltou-se do aperto de mão. Percebeu as pequenas sardas na face dele. Um toque juvenil, num rosto com feições másculas. Uma deliciosa contradição.

— Sara, não se preocupe. Eu irei para o um hotel aqui próximo.

— Espere. — Sua voz saiu esganiçada. Parecia estranho até mesmo para os seus ouvidos, aquele tipo de interdição. Mas, pensando por um ângulo diferente, era ela a intrusa. — Acho que podemos chegar a um acordo.

— Eu me sentiria melhor não abusando da sua hospitalidade, quando você nem ao menos me conhece direito. Tenho certeza de que o meu apartamento amanhã estará livre do cheiro de tinta e poderei voltar para casa.

— Ok. — Havia certo desapontamento na voz dela. Ambos notaram. Com certeza, se insistisse naquele abrigo ele sairia vitorioso. No entanto, a sensatez fazia parte do caráter de Igor.

— Se você puder me dar alguns minutos para eu ajeitar minhas coisas. — Ele a encarou fixamente. Sara ficou presa nos olhos atentos dele. Sua pulsação acelerou. Cor de terra. Sua favorita. Será que ele gosta de planta? — Tudo bem pra você?

Muito perturbador, hora de fugir, ela concluiu

— Lógico. Preciso mesmo ir até o mercado. 

Sara virou-se para a porta e saiu sem olhar para trás. Pura falta de educação, ela sabia. Contudo, a intensidade daquele matiz escuro afetava seu discernimento. Dando-lhe energia, revigorando suas decisões, mas essa constatação talvez só viesse com o tempo.  

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