Capítulo 2

Deixar o lar em que fora criada nos últimos oito anos sangrava um pouco mais o coração de Sara. E o fato de a mansão possuir ótimos esconderijos para uma pré-adolescente que adorava fugir dos criados e do avô, e perder-se na internet stalkeando os meninos mais interessantes do colégio, não arranhava os verdadeiros motivos para a sua dor.

Sara estava sozinha no mundo. Literalmente. Filha única, de filho único, de filho único... uma família reduzida a somente um indivíduo. Qual era o problema dos Tisiros, com relação à quantidade de crianças?, ela se perguntava.  Falta de grana? Impossível. Eles possuíam condições financeiras para bancar, tanto os estudos quanto as babás. Questões estéticas? Até poderia ser, mas o dinheiro daria um jeito nos peitos caídos e barrigas flácidas. Escassez de amor? Nem longe essa possibilidade estava em pauta. Todos eram muitos amorosos. Eu te amo, meu amor, minha vida... faziam parte do vocabulário cotidiano.

— Talvez seja a falta de tempo, Sara. Devido ao excesso de trabalho...  — Vargas analisava as cartas na mão. Jogar tranca com a neta, era um de seus passatempos prediletos. — Sempre fomos muito rigorosos com as provisões para o futuro da família. Não queríamos que nada nos faltasse. E não digo como um esnobe, e sim como uma pessoa que viu os pais em situações precárias.

Sara conhecia a história do seu avô quando criança. Da fome, do lar desfeito pela falta de dinheiro, dos estudos falhos. Uma vida dura que ele jurou manter-se bem afastado, assim que conseguiu o seu primeiro emprego como auxiliar de faxina em um restaurante. 

— Entendo essa parte, vô. Mas de que adianta ter tanto dinheiro, se ele não é aproveitado? — A neta conferiu os jogos descartados pelo avô. Enxergou possibilidades de buscar o “morto” antes que tudo ruísse.  

— Você pode aproveitá-lo. — O empresário ajeitou os óculos na ponte do nariz. Mentalmente contou os pontos que havia conquistado com a canastra. Outra rodada fácil, ele concluiu. Sua neta era péssima no carteado.

— Sozinha não tem nem graça e nem muito sentido. — Sara buscou por uma saída. Vargas só tinha duas cartas nas mãos. Já tinha dilacerado o morto dele e corria em busca do bate. Encarou os olhos iguais aos seus, por detrás dos óculos. Eles estavam descansados, percebeu. A doença dera uma trégua.

— Talvez você esteja certa, mas, infelizmente, não podemos mudar o passado. Caberá a você, encher essa casa de crianças. Quero muitos bisnetos. — Na face, um semblante inocente antes de dar a derradeira notícia. — Bati!

O som de um toque na porta conseguiu afastar Sara das lembranças dolorosas. Sim, o avô tinha razão quanto ao fato de ela ter muitos filhos. Nada de solidão em seu caminho, ela determinou. Mas, encher a casa de bisnetos, essa parte ficara somente nos desejos. Vargas não conheceria os filhos da neta.

— Não sei o motivo de tanta pressa. Você poderia deixar para fazer essa mudança amanhã. — Tereza comentou ao adentrar no quarto. Em uma das mãos, trazia um copo cheio de limonada gelada. A bebida preferida de Sara.

A moça aceitou o mimo de bom grado. Sorveu dois longos goles e sentiu o doce misturado à acidez do limão, acalmar a garganta. 

— E por que não ainda hoje? — Sara virou-se para enfrentar o armário abarrotado de roupas, pois não sabia como explicar sua ânsia em sair daquela casa.

Tereza compreendia, em partes, aquela pressa. Muitas lembranças, muitas saudades para lidar.

— Pegou tudo que precisa? — Resignada, a governanta ajeitou uma blusa verde que fora colocada por último na mala.

— O básico. Não tenho ideia de como é o apartamento, por isso levarei somente o essencial. Depois mando buscar o restante.

Arrumar os pertences, desde o momento em que chegara do escritório do advogado, levara de si uma boa dose do seu bem-estar. Relancear cada pedacinho da casa pesava em seu corpo. Os lustres bem polidos e perigosos para mãos descuidadas, muitos tapetes coloridos e desnecessários, na sua concepção. Mármores, pedras raras, porcelanatos que, em qualquer outra casa poderiam deixar um ambiente frio, mas que na mansão Tisiros não passavam de instrumentos para se escorregar com meias grossas. O quarto de adolescente, que abrigava pôsteres das bandas preferidas, perfumes cítricos, pelúcias – que aumentavam sua crise alérgica – a cama king size, enfeitada com a colcha de matelassê lilás... detalhes e mais detalhes que dificultavam a tarefa de organizar a mala e adiantara sua partida.

— Faço questão de te levar, pequena Sara. — Uma deliciosa contradição o carinho dito pela senhora. Afinal, de pequena a neta do senhor Vargas nunca teve nada. — Assim posso te ajudar na organização. Um tiquinho na limpeza. Quem sabe, passar uns dias como você? Claro, se não for atrapalhar.

Sara encarou os olhos ansiosos de Tereza. Enxergou a tristeza que a senhora de cabelos cinza, com toques brancos, tentava esconder. Tantos anos de cuidados, desfeitos porque ela não conseguia ficar ali sem que as lembranças a sufocassem. Por mais que a imagem daquela senhora a remetesse direto ao avô, ela concluiu que da mesma forma em que sentira uma necessidade gritante de escapar do lar desfeito, talvez a governanta também carecesse do mesmo intento.

 — Eu adoraria. Mas será que o seu Jonas ficará bem, sozinho? — Sara sentou-se no baú ao pé da cama. Lá dentro, bem no fundo, sob camadas e mais camadas de relíquias da infância, uma carta, envolta no papel de presente delicado, descansava longe de suas vistas.

— Ah. Pelo amor de Deus! Aquele homem me deixa louca. São quase 50 anos aguentando suas reclamações. Tenho certeza que ambos adoraríamos uma pausa. — A governanta ajeitava o pouco que havia fora do lugar. Relanceou a bolsa de tecido amarela – um presente dado por ela à Sara, no ano anterior – sobre a cama e sentiu o aroma cítrico que vinha do banheiro.

Um comentário fingido, Sara refletiu. O amor entre aquele casal estava escrito nas paredes da casa. Casados desde sempre, com três filhos crescidos, dois netos pequenos e outro a caminho, eles construíram sua família trabalhando para os Tisiros há mais de vinte anos. Sempre presentes em cada aniversário de Sara, festas na escola e durante o desenvolvimento da menina triste para aquela mulher sábia, os Fonseca possuíam várias páginas do diário de bordo da vida de Sara.

— Ok. Bom, vou indo. — Sara fechou a mala. Depois alisou o vestido longo. Correu os olhos pelo espelho inteiriço, buscando pelo seu reflexo. Os cabelos soltos escorriam pelas costas. Passou os dedos pela franja crescida, afastando-a do seu rosto. Nada fora do lugar, concluiu. Somente o coração...

Tereza, que odiava despedidas e conhecia a forma como Sara esquivava-se dos sentimentos tristes, não se importou com nada, quando foi em direção à neta postiça e a abraçou com todo o amor que preenchia seus poros.

— Sentirei sua falta, pequena.

Sara retribuiu o abraço. O queixo sobre a cabeça da governanta. Apertou o corpo fofinho que cheirava lar e amor. Tenho que comprar absorvente. Permitiu que Tereza extravasasse sua dor, por alguns segundos. E, mesmo caminhando para o seu mundo imaginário, um pensamento lhe veio à mente.

— Como não vou mais morar aqui, o que acontecerá com vocês? — Um questionamento simples, mas que ela deveria ter feito antes de sugerir a troca do lar. E se eles perdessem seus empregos por causa dela? Como poderia ajudá-los? Desde quando ela se tornara tão egoísta?

— Não se preocupe... — Tereza afastou-se e limpou o rosto no avental negro. Os olhos vermelhos e inchados combinavam com o nó em seu estômago. Por que ela tinha que ir embora?, se perguntou. — Seu avô...

— Sim, ele já tomou providências para isso, certo? — Talvez estivesse aí sua despreocupação para com o futuro deles. Sara pegou a bolsa. Colocou sobre o ombro, procurando no quarto por algo indispensável.

— Já. O Castelo nos disse que ficaremos aqui, até o inventário ser concluído. O depois ainda é uma incógnita, porém, de toda forma, eu e Jonas já estamos aposentados. Quem sabe, não será a hora de cessar e cuidar dos nossos netos.

Ambas pararam uma em frente à outra. Na face de Tereza, a tristeza ameaçava novas lágrimas. Na de Sara, o imaginário escondia sua dor. Raspei as pernas hoje? Vou ao mercado antes ou depois de ir ao apartamento? O jardineiro precisa regar as plantas amanhã bem cedo, antes do sol forte. Coloquei o fio dental na nécessaire?

— Agora vá! — Tereza desprendeu-se daqueles olhos azuis. Passou por ela e levantou a alça da mala a puxando para fora do quarto. Ou as lágrimas regressariam. — Tenho uma casa para limpar.

Por sorte, ou por puro planejamento de Jonas, ele não estava presente quando Sara acomodou a bagagem no porta-malas. Assim como sua esposa, o senhor de barriga proeminente — à custa de muita torta de banana — odiava despedidas. Mas o que ele poderia fazer? Jonas viu a menina crescer, a fez sorrir para afugentar a melancolia pela perda dos pais, ensinou a dirigir... como poderia simplesmente bater em seu ombro e dizer: “Sim, pode ir. Me deixe aqui, não tem problema!” Tinha e muitos. Contudo, preferiu não demonstrar. Pelo menos para ninguém.

No entanto, Sara sabia o quanto sua partida machucava aquele casal. E o pensamento: com quantos quilômetros preciso trocar o óleo do carro?, serviu somente para fugir da imagem vista assim que passou pelo portão da propriedade. Jonas escondido por entre as árvores, limpando o rosto com o seu lenço de bolso.

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