Capítulo 6

Todo o seu corpo doía na manhã seguinte. Mas isso não podia ser motivo para não ir trabalhar. Tinha muitas coisas a fazer e não podia deixar a oficina fechada.

            Acordara de madrugada, às três da manhã, caída no chão da sala, quase sem conseguir se mexer. Por sorte sabia que Igor não tinha lhe quebrado uma costela ou teria que ir ao hospital. Já havia acontecido uma vez, então ela sabia muito bem como era a dor.

            Um hematoma enorme na cintura e outro no rosto foi o que lhe restou como lembrança. Ao menos serviria para que aprendesse a nunca mais se meter com alguém bem maior e mais forte do que ela.

            Estava trabalhando em um carro, com o capô aberto e verificando qual era o seu problema quando alguém entrou na oficina. Estava com um mau humor do cão, mas não podia espantar os clientes.

            Mas, afinal de contas, nao era um cliente. Era sua amiga Marcela, noiva de Paulo.

            Pela expressão em seu rosto, ela já tinha chegado preocupada, mas ao ver o machucado em seu rosto, ela arregalou os olhos, indignada.

            — Mas que merda, Cristine! Aquele filho da puta encostou em você outra vez? — ela falou alterada. Cristine não quis responder, apenas deu de ombros. Já sabia exatamente o que ela falaria em seguida. — Você tem que denunciá-lo.

            Sim, Cristine sabia disso. Aliás, ela já tinha feito isso. E Igor fora preso por alguns dias. Contudo, ligou para sua mãe rica, que logo pagou sua fiança. A consequência? Outra agressão.

            — Você sabe que é pior. Ele tem vários amigos daquela gangue dele que iriam vingá-lo.

            Marcela ficou calada, como se consentisse. Cristine sabia que sua amiga compreendia a situação. Solidariamente, ela mudou de assunto, sabendo que o anterior a incomodava demais.

            Contudo, o novo também não era lá muito agradável.

            — Paulo me falou que você saiu com Enzo Azevedo ontem... — Pronto. Ela sabia que Marcela iria lhe passar um sermão. E Cristine não estava a fim de ouvir um.

            — Sim. Saí. — Foi curta e grossa, enquanto continuava seu trabalho.

            — Mas ele não te odiava?

            — Até onde eu sei, ainda odeia. Inclusive, dizem as más línguas que ele tem a intenção de se vingar de mim por tudo que lhe fiz no passado — Cristine falou com certo sarcasmo.

            — Então você ficou ainda mais louca do que eu pensava. — Marcela colocou a mão na cintura.

            — Por quê?

            — O cara deve estar doido para te fazer sofrer... você não acha que já tem problemas demais na vida?

             — Deixa ele tentar e entrar na fila. Até porque ele merece... eu realmente fiz um bando de merdas naquela época.

            — Ah, não é possível que você não se importe.

            — Realmente não me importo.

            Cristine quase riu da expressão surpresa de Marcela. Ela era uma mulher extremamente expressiva, além de leal. Sabia que ela faria Paulo feliz — o que era recíproco — e que era o tipo de mulher que nascera para ser uma boa esposa. Algo que ela mesma jamais seria. Cris tinha plena noção de que nenhum homem em sã consciência teria coragem de se casar com alguém tão cheio de problemas.

            Mas isso não era pensamento para aquele instante. Afinal, não pensava em casar-se tão cedo.

            E como se o seu dia já não estivesse difícil o bastante, uma terceira pessoa chegou na oficina. Claro que não poderia ser ninguém além de Enzo Azevedo. Exatamente o que precisava para completar seu mau humor.

            Mas era óbvio que a primeira coisa que ele iria ver seria o machucado no rosto de Cristine. O que ela não esperava era sua reação.

            Assim que olhou para ela, Enzo franziu o cenho sem dizer nada e a pegou pelo braço, puxando-a para si, colocando-a de frente para ele.

            — O que é isso? Quem te machucou? — parecia indignado, revoltado.

            — Primeiro de tudo, tire as mãos de mim. — Cristine se afastou, e Enzo a soltou, sentindo-se envergonhado. — Em segundo lugar, eu sou desastrada, bati com a cara direto no armário.

            — Você acha mesmo que eu vou cair em uma história dessas? — ele estava alterado demais, o que era algo surpreendente, principalmente se levasse em consideração que ele a odiava e com certeza iria querer vê-la se ferrar.

            — Eu não teria nenhum motivo para mentir para você, porque não te devo satisfações.

            Cristine virou-se de costas para ele, para olhar para Marcela e buscar algum apoio naquela conversa, mas nem teve tempo de falar nada, pois foi novamente agarrada e puxada de encontro ao corpo forte de Enzo. Ficou tão atordoada com aquilo que demorou para se defender, para reagir. Ele a segurou em seus braços com força, para que não fugisse.

            — O que pensa que está fazendo? — ela berrou, se debatendo. Enzo, por sua vez, continuou a segurá-la, de costas para ele. Sem responder nada, ele levantou a barra de sua camisa e logo encontrou a marca arroxeada.

            — E bateu com a cintura também? — Então ele a soltou. — Alguém bateu em você, e eu quero saber quem foi.

            Enquanto Cristine ajeitava a camiseta para esconder toda a barriga, tentava se afastar dele o máximo possível.

            — Assim que vi o machucado no rosto, sabia que deveria haver um também na parte mais óbvia. Um chute na costela é sempre o segundo passo quando um covarde bate em uma mulher. — Ele ainda estava enfurecido. — Vai me dizer quem foi?

            Marcela estava prestes a abrir a boca, e Cristine sabia que ela iria contar sobre Igor, mas ela a impediu.

            — Não. Não é da sua conta. — Cristine respirou fundo, tentando manter a calma. — Olha, Enzo, eu permiti que nos tornássemos amigos, saímos juntos e conversamos de forma sociável, mas eu sei que você não gosta muito de mim, então, vamos parar de fingir. Acho que está na hora. Seja lá o que estiver pensando em fazer para se vingar, desista. Não vai dar certo, já estou com a vida fodida o suficiente para uma eternidade.

            Depois de dizer isso, ela simplesmente deixou os dois na oficina e subiu para o quartinho anexo, a passos largos, apenas querendo fugir, desaparecer. Se pudesse desapareceria para sempre.

***

            Enzo não conseguiu falar nem fazer nada. Mas algumas coisas passavam por sua cabeça. A primeira e mais banal delas era que Cristine sabia que ele tinha intenção de se vingar. O que poderia atribuir à sua mãe, que parecia ter adquirido uma espécie de carinho fraternal por ela. Em segundo lugar, e que não saía de sua cabeça, era que Cristine tinha sofrido uma agressão. Não tinha nada a ver com o ato de uma pessoa desastrada, aqueles eram hematomas de soco e chute, respectivamente. Com certeza tudo estava interligado: o fato de ela ter saído do bar daquele jeito, seu trabalho na oficina e sua mudança drástica de comportamento.

            Enquanto refletia, porém, voltou sem querer os olhos na direção de Marcela e percebeu que ela estava olhando fixamente para ele. E sua expressão não estava nem um pouco amigável.

            — Vou te dar um aviso e espero que o guarde muito bem na cabeça — ela começou em um tom ameaçador. — Se magoar Cristine, pode ter certeza que a cidade inteira vai cair em cima de você.

            — Pena que a cidade não fez o mesmo por mim doze anos atrás — lamentou-se.

            — Ah, deixe de ser babaquinha! Éramos todos crianças. Sei que Cris pegou pesado com você, assim como também pegou comigo e com várias outras pessoas, mas eu superei e vi o quanto ela amadureceu e o quanto tem sofrido. Não merece sofrer mais!

            — O que está acontecendo com ela? Por que está toda machucada?

            Marcela deu uma risadinha sarcástica.

            — Sou leal a ela. Se ela não quis te contar, não é da minha boca que você vai ouvir.

            E Marcela também saiu da oficina, deixando-o ali sozinho.

            Qual era o problema daquelas mulheres que saíam dando as costas sem nem olhar para trás?

***

            Chorar não lhe era permitido. E de quê adiantaria, afinal? Lágrimas não resolviam os problemas, então, Cristine não estava chorando.

            Mas fora covarde do mesmo jeito, fugindo do problema daquela forma. Sim, porque Enzo ERA um problema. E dos grandes. Principalmente porque a confundia. Ela sabia que ele queria lhe fazer mal. Isso já estava claro em sua mente... mas por que, então, parecera tão consternado quando a viu machucada, como se quisesse... protegê-la?

            Tinha que parar de ser uma idiota. Não havia dúvidas — ele tinha um plano. Tratá-la bem, seduzi-la, agir como o cavaleiro andante e, quando ela menos esperasse, lhe tiraria tudo, partindo seu coração.

            E era exatamente por isso que precisava se afastar. O mais rápido possível. Sabia se cuidar, mas estava mais vulnerável do que nunca. Sentia as portas de seu coração abertas, deixando-o fácil de ser invadido.

            Não esperava, porém, que o objeto de seus pensamentos fosse surgir tão subitamente, invadindo sua privacidade daquela forma.

            — Será que podemos conversar? — ele pediu, cheio de humildade, colocando a cabeça por entre a fresta da porta.

            Cristine bufou e revirou os olhos discretamente, pensando que cairia no dilema de sempre: aquela porcaria de oficina pertencia a ele. Não podia simplesmente expulsá-lo como gostaria.

            Sua resposta, então, foi um dar de ombros desinteressado. Ainda de costas, apenas ouviu enquanto ele entrava, fechava a porta atrás de si e se aproximava.

            — O que quer aqui, Enzo? Não posso deixar a oficina sozinha por muito tempo.

            — Eu tranquei a porta.

            Maldição! O filho da mãe pensava em tudo. Não tinha muitas desculpas para se livrar daquela situação.

            Cristine permaneceu em silêncio, esperando que Enzo se manifestasse.

            — Você está bem?

            Depois de tanto tempo de costas, Cristine finalmente se virou para ele. Seus olhos profundos pareciam avaliá-la.

            — O que você acha? — Foi uma resposta grosseira, mas ela não estava nem um pouco preocupada.

            — Quero saber se foi ao médico, se quer que eu a leve ao hospital.

            — Você? — perguntou surpresa, com o cenho franzido, não entendendo onde ele queria chegar. Estava claro que não fazia a menor ideia do porquê de ele estar ali falando aquelas coisas. — Por que faria isso?

            — Porque não me custa. Porque não gosto de saber que uma mulher sofreu violência física... vários motivos.

            Deus, ele era bonito! Estava com o rosto muito próximo ao dela, os olhos fixos exatamente em sua boca, como se quisesse beijá-la. Contudo, ela sabia que aquele beijo viria coberto de veneno; algo que lhe faria definhar em sentimentos perigosos, que a encheriam de uma dor profunda.

            E foi exatamente por isso que ela se afastou.

            — Eu estou bem. E definitivamente não sou responsabilidade sua. — Novamente Cristine soou mais grosseira do que eu gostaria.

            Enzo pareceu receber a patada com resignação. Ele chegou a balançar a cabeça em afirmativa, como se já esperasse aquele comportamento; como se aquela fosse a Cristine que ele esperava encontrar quando voltara para São Valentim.

            — Não. Você não é responsabilidade minha. Mas, então, é responsabilidade de quem?

            Cristine não esperava aquela pergunta. Muito menos a forma como ele continuou a olhar para ela, com a profundidade de um mar bravio.

            Mas ela tinha a resposta. Uma resposta sincera, do fundo de seu coração.

            — Eu sou responsabilidade minha. Apenas minha. De mais ninguém.

            Mais um momento de silêncio se formou entre eles, e Cristine estava decidida a não dizer mais nada. Talvez, assim, ele fosse embora.

            Contudo, antes de qualquer coisa. Enzo levantou-se de onde estava sentado, andou de um lado para o outro, passou a mão no cabelo  e parou, parecendo ainda muito agitado e sem intenção de sair dali.

            — Enzo, eu preciso voltar para a oficina. Tenho muito trabalho a fazer. Você tem mais alguma coisa a dizer?

            — Eu... — ele hesitou por alguns momentos, mas viu-se sem alternativa. — Não, não tenho mais nada a falar.

            — Então eu vou voltar ao trabalho.

            E foi o que ela fez. Já estava abalada demais e não estava lá muito disposta a demonstrar sua fragilidade, não quando esta estava tão a flor da pele, quase palpável.

            Quando ele saiu da oficina, alguns minutos depois, Cristine já estava debaixo de um carro, trabalhando no motor, então, tudo que viu foram seus pés, caminhando e saindo porta afora sem dizer nenhuma palavra.

            Melhor assim.

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