Capítulo 4

Foi como se um furacão de proporções catastróficas o tivesse atingido. Enzo sabia que ainda não estava pronto para se encontrar com Cristine, mas não fazia a menor ideia que talvez não estivesse pronto nunca. Não para aquela mulher que surgiu na sua frente, completamente diferente da que um dia conhecera.

            A aparência não tinha mudado muito, embora, é claro, não contasse em encontrá-la toda suja de graxa, trabalhando duro na oficina mecânica de seu pai. Era como se o mundo tivesse girado de ponta cabeça.

            O convite para levá-la para sair surgiu de forma totalmente repentina, como um pequeno momento de fraqueza. O que era extremamente compreensível, afinal, a mulher era uma beldade, porém, depois que ela se afastou para ir tomar banho e se trocar, Enzo começou a refletir e chegou à conclusão de que seria uma boa ideia. Seria a oportunidade perfeita para começar a colocar seu plano em prática. Teria a oportunidade de conversar, conhecer suas fraquezas, estudá-la e iniciar seu jogo de sedução. Sim, porque essa era a estratégia, bem simples, bem eficaz. Iria seduzi-la, fazê-la se apaixonar e depois abandoná-la sem qualquer remorso, voltando para o Rio de Janeiro sem explicações e sem despedidas.

            Na verdade, não era nada muito diferente do que ela fazia quando mais jovem. Usava sua beleza e charme, fazia com que caíssem a seus pés só pelo prazer de se sentir desejada e os humilhava na frente de várias pessoas. Enzo não fora sua única vítima. Alguns de seus amigos mais queridos da época também caíram no mesmo golpe e saíram igualmente magoados. Talvez fosse exatamente em nome deles que estivesse tão disposto a dar o troco, embora, com ele, a situação tenha sido a mais vergonhosa.

            No entanto, não podia negar que, além de tudo isso, estava bastante intrigado para saber mais sobre aqueles anos em que estivera afastado. O que diabos poderia ter acontecido para levá-la àquela situação tão atípica?

            Assim como tinha prometido, Cristine não demorou para aparecer. E, pelo amor de Deus, se já a tinha achado maravilhosa com aquelas roupas surradas e suja de graxa, agora podia jurar que seu queixo tinha chegado ao chão de tão boquiaberto que estava.

            Ela não tinha feito uma produção muito elaborada. Contudo, mulheres como ela conseguiam ficar ainda mais bonitas quando apelavam para a simplicidade.

            Seus cabelos loiros estavam molhados e penteados de forma displicente. A maquiagem, — até onde ele conseguia perceber, já que não entendia muito do assunto —, se resumia a um gloss rosado, rímel e um delineador discreto. Vestia um short jeans, que deixava suas belas pernas à mostra, uma camiseta customizada preta, com as mangas, a gola e a base cortadas de forma estilosa, e nos pés uma bota de couro preta, de cano médio, com um salto não muito alto.

            Deus, ela estava sexy. Infernalmente sexy.

            — Estou pronta, podemos ir — falou com um sorriso no rosto, embora não parecesse exatamente animada em sair com ele. O que era uma surpresa, afinal, Cristine Moura dificilmente ficava indiferente a um bom partido, com uma conta bancária bem gorda.

            Enzo permaneceu parado, apenas olhando para ela. Um inevitável sorriso apareceu em seu rosto, sabendo que precisava falar alguma coisa. Cristine gostava de ser elogiada, então, tinha que começar a tentar conquistá-la de alguma forma.

            — Você está linda. — Até mesmo Enzo ficou surpreso pela sinceridade em suas palavras. Claro que ela era linda, mas não merecia ser bajulada, a não ser que fosse por um bom motivo.

            Mas a reação dela novamente a surpreendeu. Cristine ficou surpresa e chegou a corar com o comentário. Se era uma encenação, era a mais perfeita que já tinha testemunhado, mas, ainda assim, era algo difícil de acreditar, já que ela costumava ouvir aquele tipo de coisa o tempo todo.

            — Obrigada. — Seu agradecimento soou um tanto quanto desconfiado, mas ele decidiu deixar para lá. — Podemos ir? — ela insistiu.

            — Claro.

            Os dois, então, tomaram o caminho até a porta dos fundos, enquanto Cristine apagava as luzes. De sua pequena bolsa, ela tirou as chaves e trancou a oficina, e eles puderam seguir caminho.

            — Tem um barzinho novo aqui perto, podemos ir a pé — ela sugeriu.

            — Tudo bem. Contanto que me deixe te levar em casa depois. — Daquela vez não fazia parte de sua manobra de sedução. Apesar de querer se vingar e de ter suas mágoas em relação a ela, não queria que sofresse qualquer tipo de violência. Era uma mulher, afinal, e ele não teria coragem de deixar seu cavalheirismo completamente de lado.

            Porém, ela deu uma risadinha desanimada.

            — Não estou acostumada a ter ninguém tomando conta de mim, Enzo. Não preciso de proteção.

            — E seus pais? — Tudo bem que ela era uma mulher feita e não precisava depender dos cuidados dos pais, mas pela forma como ela falou deu a impressão de que ficava muito sozinha.

            — Ah, então você não sabe? Minha mãe faleceu  pouco tempo depois que você foi embora. Meu pai se casou de novo, mas se separou também.

            — Lamento. Ela faleceu de quê?

            — Sofreu um acidente. — Ela fez uma pausa quase teatral. — Com um de seus amantes.

            Não era uma história lá muito bonita, e Cristine a contava com muito rancor. Na verdade, ela parecia ter lhe oferecido a versão resumida dos fatos. Havia mais, que ela não parecia disposta a revelar.

            E Enzo achou prudente não perguntar. Apesar de tudo, não era um enxerido.

            — Essa cidade não mudou em nada. Parece estar tudo no mesmo lugar com raras exceções. — Ele fez o comentário, tentando quebrar o silêncio.

            — Os lugares nunca mudam, na verdade. Quem mudam são as pessoas. — Cristine deu de ombros, como se aquilo não importasse muito. Observando-a com cuidado, Enzo teve a nítida impressão de que ela estava um pouco deprimida, vivendo sem muita vontade.

            — A maioria das pessoas nunca muda realmente. Talvez elas se adaptem ao que as cerca, mas, no fundo, são sempre as mesmas.

            Cristine deu uma risadinha e balançou a cabeça em negativa, como se Enzo simplesmente não soubesse de nada. Aquilo novamente o deixou intrigado.

            — Por que está rindo? — perguntou finalmente.

            — Porque você acha que sabe muito da vida, mas na verdade não sabe nada. As circunstâncias mudam as pessoas. Ninguém é babaca para sempre. — Ao terminar esta frase, ela se virou para ele, com o mesmo sorrisinho sarcástico no rosto e disse: — Com raras exceções.

            Será que ela estava se referindo a ele? O que ela sabia sobre sua vida para afirmar que ele era um babaca, ainda mais depois de tantos anos sem se ver. Claro que ele também estava deduzindo a mesma coisa a respeito dela, mas tinha boas referências, já que a cidade inteira costumava pensar a mesma coisa.

            Contudo, Enzo até desconfiava do motivo pelo qual Cristine pensava tão mal dele. Com certeza tinha a ver com seus pais, com a forma como ele foi embora e nunca mais voltou. Bem, se era esse o motivo, até que ela tinha alguma razão.

            — Chegamos.

            Enzo estava tão concentrado em seus pensamentos que mal percebeu que estavam em frente a um bar. Não havia nada de muito especial no local, parecia um daqueles barzinhos simples da Lapa, que ele costumava frequentar quando ainda era duro, com seus amigos duros. Sem dúvidas fora a parte de sua vida em que fora mais feliz. Estava fazendo faculdade, tinha acabado de começar a criar seu software e tinha investido boa parte da herança de seu avô nessas duas coisas e, é claro, estava vivendo no Rio de Janeiro o que sempre foi seu sonho. Sendo assim, a escolha de Cristine foi bastante bem-vinda.

            — É um barzinho simples, mas a cerveja está sempre gelada e tem uns petiscos bem gostosos — ela explicou.

            — Então está bom para mim.

            Enzo e Cristine entraram, então, no barzinho e pegaram uma mesa do lado de dentro, onde havia alguns ventiladores refrescando as mesas. Mesmo assim, o calor ainda era bastante incômodo.

            Um garçom se aproximou com o cardápio e esperou que os dois fizessem seus pedidos, que foram apenas duas cervejas e uma porção de batatas  fritas como tira-gosto.

            — Cristine Moura se acabando no carboidrato e na fritura? — brincou ele.

            — Eu já disse que você não sabe mais nada sobre mim — falou com uma risadinha.

            Antes mesmo que pudessem falar mais qualquer coisa, as cervejas chegaram. Estavam bem geladas, e Enzo quase salivou. Fazia um bom tempo que não tomava uma.

            Mas antes de dar o primeiro gole, ergueu seu copo, preparado para fazer um brinde.

            — Ao quê podemos brindar? Aos velhos tempos? — ele usou de sarcasmo novamente.

            — Não acho uma boa ideia. Nosso passado não foi lá muito bom de se lembrar.

            — Então vamos brindar ao futuro. Que finalmente possamos ser amigos.

            Cristine novamente olhou para ele com desconfiança. Ela não era boba e parecia estar descobrindo todas as suas intenções naquela oferta de amizade tão suspeita. Mas aquilo não seria um empecilho para ele, tinha suas artimanhas todas calculadas.

            Depois de avaliá-lo por breves segundos, finalmente tocou seu copo no dele.

            — Que assim seja.

            Ambos beberam suas goladas, e Enzo ficou satisfeito ao sentir o líquido gelado descendo por sua garganta.

            Em seguida, Cristine voltou seus olhos para a televisão, onde começava a novela das nove. Por sua expressão perdida, ele tinha plena noção de que ela não acompanhava aquele programa, mas também não estava disposta a dar prosseguimento à conversa.

            E isso deixou  Enzo um pouco irritado. Não com ela, na verdade, mas com a situação. Costumava ser muito bom em falar e conquistar mulheres, embora não fosse exatamente um galinha, mas sentia-se um bobo perto de Cristine. Ela mexia demais com ele de um jeito nada positivo.

            — Você nunca sentiu vontade de sair de São Valentim?

            A pergunta foi feita de forma súbita, e Cristine tirou os olhos da televisão, voltando-os para ele quase surpresa. Depois que absorveu suas palavras, ela pensou por um tempo e ponderou antes de responder. Estava em alerta e agindo com cautela o tempo todo com ele.

            — Acho que todos que moram aqui já pensaram nisso alguma vez. Aqui não há muitas oportunidades.

            — Fora que o Rio de Janeiro combina com você. Praia, sol, uma cidade cosmopolita...

            Novamente Cristine riu. O que será que ela via de tão engraçado nos comentários que ele fazia?

            — Talvez combinasse com a garota que você conheceu. Hoje em dia eu nem sei mais aonde pertenço. Muito daquela Cristine do passado se perdeu. Partes dela eu agradeço por não ter encontrado mais, porque hoje sei que muito do que fiz foi errado. Mas há outras partes que perdi que hoje me fazem falta.

            Havia melancolia demais em sua fala, e Enzo se surpreendeu pela milésima vez naquele dia. Então ela se arrependia do que tinha feito? Interessante...

            — O que falta, então? — ele ousou perguntar, percebendo que finalmente ela estava falando de coração, sem reservas.

            Cristine esperou um pouco para responder, pois o garçom surgiu para lhes servir a batata.

            — Sinto falta dos meus sonhos — ela respondeu depois que ficaram novamente só os dois.

            — Você não tem mais sonhos?

            — Não tem graça sonhar quando você sabe que nada do que quer vai se realizar.

            Por mais que a odiasse, a dor em seus olhos foi comovente demais para ser ignorada. O sofrimento, a resignação e o cansaço eram latentes, quase tangíveis, e Enzo queria saber o motivo de todos aqueles sentimentos, mas não sabia se tinha coragem suficiente para tal invasão de intimidade.

            E Cristine também não parecia estar muito disposta a falar, por isso, novamente voltou seus olhos para a televisão, e ele podia jurar que estava se controlando para não chorar.

            Mas não era esse o seu plano? Fazê-la sofrer e chorar? Então, por que estava se sentindo tão mal com aquilo?

            Quando estava prestes a se sentir sufocado pelo silêncio, um homem se aproximou da mesa, tocando no ombro de Cristine. Ao se virar para ele e reconhecê-lo, ela imediatamente se levantou e o abraçou com vontade, com uma simpatia que não era nem de perto parecida com a cordialidade com que o estava tratando.

            Observando-o direito, Enzo decidiu que o conhecia de algum lugar. O que não era nem um pouco surpreendente, pois em uma cidade como São Valentim todo mundo conhecia todo mundo. Com certeza era alguém da época da escola.         

            Tratava-se de um cara mais ou menos da idade deles, com uma aparência simples, cabelos curtos e castanhos, usando óculos de grau, magro e alto. Os dois conversavam como velhos amigos até que Cristine se virou para Enzo.

            — Enzo, lembra-se do Paulinho? Paulo Alencar?

            Meu Deus! Claro que ele se lembrava. E como não lembraria, já que costumavam ser grandes amigos? Eram da turma dos fracassados do colégio, passaram por poucas e boas juntos.

            — Enzo Azevedo? Não é possível! Cara, quanto tempo! — E Paulo partiu para cima de Enzo com muito entusiasmo, abraçando-o.

            — Muito tempo mesmo. Como você está? — Enzo retribuiu o abraço com carinho, porque Paulo era um dos caras mais legais que ele conhecia.

            — Estou bem, graças a Deus. Mas pelo que sei, você está bem demais, não é? Fiquei muito orgulhoso quando soube que seu negócio prosperou. — Enzo sorriu porque sabia que era sincero. — Vou me casar em duas semanas, aliás. Com a Marcela. Lembra dela?

            — A Marcela, filha da D. Loreta?

            — Ela mesma.

            — Nossa, cara, parabéns! — Enzo deu dois tapinhas no ombro de Paulo, sentindo-se verdadeiramente satisfeito. Marcela era uma ótima garota, e eles fariam um casal incrível.

            — Bem, já que vocês estão conversando e não vou deixar Enzo sozinho, vou ao banheiro. — Ao dizer isso, Cristine se levantou da mesa e foi em direção ao banheiro, e Enzo sabia muito bem que ela iria passar uma água no rosto, que ainda estava vermelho do quase choro.

            Assim que ela se afastou, Paulo pegou seu lugar à mesa, sentando-se de frente para Enzo.

            — Gente, esse mundo dá voltas mesmo. Quem diria que eu te veria novamente em São Valentim, ainda mais em uma mesa de bar conversando animadamente com Cristine?

            Enzo tomou um gole de sua cerveja e balançou a cabeça, concordando. Era melhor ficar calado e não mencionar o motivo de estar ali com uma garota que costumava odiar, afinal, Paulo e Cristine pareciam muito próximos.

            — O tempo passa, e os ressentimentos também.

            — Claro. Até porque Cristine mudou muito. Ela não é mais aquela garota escrota que foi um dia. Passou por muita coisa.

            Ah, lá estava o assunto que interessava tanto a Enzo.

            — O que aconteceu com ela? — perguntou.

            — Olha, cara, a única coisa que posso te dizer é que ela passou e ainda tem passado por poucas e boas. Não cabe a mim contar, mas se ficar um tempo em São Valentim vai acabar descobrindo por si só.

            No momento em que Paulo parou de falar, Enzo enxergou Cristine saindo do banheiro. Contudo, antes que ela pudesse chegar à mesa para se sentar novamente com ele, um rapaz a segurou. Imediatamente, Enzo se colocou em alerta para o caso de ser um bêbado para importuná-la, mas ela o conhecia. O cara sussurrou algo em seu ouvido, que a deixou aflita, a ponto de ele ter que segurá-la pelo braço, de tão nervosa.

            Ao ver a cena, Enzo se levantou e foi até ela, sendo seguido por Paulo.

            — O que houve? — Enzo perguntou, também colocando a mão no braço dela, que estava gelado.

            — Foi ele de novo, Cris? — Paulo perguntou, e ela apenas assentiu com a cabeça. — Quer que eu te leve em casa? Estou de carro...

            — Por favor — ela pediu quase em súplica.

            — Eu posso te levar também podemos chamar um táxi e...

            — Pode deixar, cara, eu levo ela. — Paulo o interrompeu. Em seguida voltou à mesa para pegar a bolsa dela.

            Assim que recebeu a bolsa começou a tentar abri-la com as mãos trêmulas. Ao perceber a dificuldade, Enzo colocou suas mãos sobre as dela.

            — O que você quer da bolsa? — Posso pegar para você... — Enzo falou com delicadeza, esquecendo-se por um momento de toda mágoa que tinha em relação a ela.

            — Dinheiro. Para pegar minha parte na conta...

            Ela parecia tão desamparada, tão desnorteada... Naquele instante não havia diferenças entre eles; ela era apenas uma mulher precisando de ajuda, embora ele não soubesse o motivo. Contudo, não conseguiu negar para si mesmo que o que queria era colocá-la no colo, consolá-la e carregá-la para bem longe dali.

            — Eu não sou o tipo de cara que leva uma garota para sair e faz com que ela divida a conta. Mas você fica me devendo mais uma saída. — Era exatamente o tipo de coisa que tinha que dizer para que ela caísse na sua rede como um peixinho, principalmente pelo sorriso que ela abriu, agradecido. Porém, a resposta soou verdadeira.

            E enquanto ela se afastava, amparada por Paulo, Enzo se achou um babaca por sentir o coração amolecer por aquela garota.

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