III

Fabíola entrou na sala de aula, sentou à carteira e estava felicíssima, finalmente retornou aos estudos. Pegou seu caderno e abriu na matéria favorita, Políticas Públicas da Educação, ela adorava estudar as leis acerca de sua área de atuação e debatê-las com a amiga Carla, elas eram boas naquela matéria e passavam quase todo o tempo livre debruçadas em casos nos quais as leis não foram colocadas em prática, debruçadas nas falhas do Estado, no sucateamento da escola pública. Vale dizer, as duas foram as primeiras a se revoltar com o congelamento da entrada de grande parte de dinheiro público na educação, após a aprovação da PEC do Teto de Gastos, ao ponto de tentar organizar um protesto. O Movimento Estudantil se mobilizou, as duas foram à luta com seu grupo comunista, inspiradas pelos seus ideais e sonhos.

Infelizmente, não houve luta comunista ou ataque anarquista que impedisse a aprovação de tal medida num país previamente tomado pelo neoliberalismo. Não se abalaram, por outro lado. Continuaram estudando, escrevendo textos em seus blogues e debatendo assiduamente com outros alunos.

O professor entrou em sala de aula e largou seu material na mesa, o som pesado como uma martelada chamou a atenção de Fabíola. A garota olhou para o professor que a encarava furiosamente. Constrangida, Fabíola buscou suplicar aos colegas, mas olhando ao redor percebeu que a turma toda a encarava.

— O que você pensa que está fazendo aqui? — indagou o professor com um sorriso coagido.

Ela ficou acuada. Mas respondeu:

— Vim estudar, normal, como sempre.

— Não, você não pode. Você não pagou as mensalidades.

— Como não?! — Ela se levantou — eu paguei tudo ontem.

— Pagou tudo? Aquilo foram só os juros, ainda tem muito o que pagar.

— Ela acha que a gente tem que sentir pena só porque vive na favela — disse uma colega.

— Nem pensar! — Fabíola protestou. — Eu paguei todos os boletos, eu…

O professor chamou os seguranças veementemente. Dois homens de ombros largos vieram, cada um pegou-a por um braço e a ergueram. Coerciva ela balançava os pés:

— Eu tenho o direito de estar aqui! — Ela gritou, mas seu grito parecia mudo perante as vaias dos colegas de classe, todos pedindo para a escorraçar de lá com urros de “fora comunista! Manda essa vergonha andar com os dela.” Os seguranças a impeliram porta afora, ela agarrou a ombreira da porta, com toda a força. Para ajudar os seguranças, um colega a acertou com um chute nas costas. Ela sentiu o impacto na costela, mas não soltou. Dois rapazes a agarraram pelas canelas e puxaram, suas mãos cederam, as unhas fincadas na madeira do umbral quebraram. Mas as vozes viraram ecos, a visão ficou embaçada e ela percebeu que estava assistindo a si mesmo, como num filme, era um sonho, um pesadelo, aliás, e ela sabia que estava sonhando.

Fabíola tentou abrir os olhos e se levantar, mas não conseguiu, estava paralisada. O que lhe acontecia era irreal, entretanto, extremamente vivido, ela podia sentir os ossos da costela quebrados; podia sentir a dor fina das unhas lascadas e o fio de sangue escorrer pelas mãos; ela experimentava a humilhação e o medo, a insegurança de jamais conseguir realizar seus sonhos, era real e ao mesmo tempo uma ilusão. Estava chorando e sentia as lágrimas escorrendo pelos olhos e o mandacaru acertando a janela com tanta força, fazendo parecer finalmente determinado a quebrar o vidro. Os seguranças passaram pelos corredores da faculdade, todos os alunos pareciam ter ganhado passe livre para assisti-la ser arrastada daquele jeito. A ansiedade veio, o ar lhe faltou, ela estava sufocando, queria levar as mãos até o pescoço e fincar as unhas na pele, mas ainda estava paralisada. Fabíola sentiu que ia morrer ali, oprimida e sem ar, ao menos que conseguisse se mover. Ouviu, então, o trinco da janela, não sabia se estavam abrindo ou fechando, mas podia ouvir o som metálico e sutil.

A ocasião era de esperanças escassas, entrementes; um anjo salvador, seu irmão mais novo, André, chutou a porta de seu quarto e acordou a casa inteira, inclusive a própria Fabíola. Ela saltou na cama, sentada, agarrou o pescoço com fragilidade, puxou o ar. Não pode segurar — que pesadelo cruel — começou a chorar ali mesmo, na frente de André.

— Minha barriga, minha barriga — André berrava.

Ainda em desespero, Fabíola levantou da cama e pegou André pelo ombro.

— Minha barriga tá ardendo muito, muito.

— Calma, Andy, calma! — Ela secou o próprio rosto com o pijama, depois levantou a camiseta do irmão. Com a alaranjada e fraca luz dos postes da rua entrando pela janela, Fabíola conseguiu ver; a barriga dele estava forrada por espinhas, grandes como tampinhas de garrafa, de pontas recheadas de pus amarelado esperando o toque de um dedo para explodir grotescamente.

— Que bagunça é essa?! — A mãe deles havia chegado ao quarto, com camisola.

— Mãe, olha isso — virou André para a mãe, mostrando os caroços na barriga dele. — Onde você põe os documentos dele? Vou levar ele no pronto socorro.

— Vai levar como? Ele nem tem o cartãozinho do governo.

— É lógico que tem… Eu mesma mandei fazer no mês passado.

— E nem me disse nada? — A mãe parecia estremecida.

— Dona Maria, sinceramente, ficar esperando por você? Cadê o RG dele?

Antes de sair, Fabíola e Maria deram uma olhada em Caíque. As espinhas dele estavam ainda maiores e mais inflamadas que as de André, a mãe dele não devia prestar atenção à saúde. Fabíola decidiu que também o levaria.

Por sorte, Caíque podia ser atendido portando apenas o RG.

— Eu disse que você não precisava vir, mãe — falou sentada em uma das salas de espera.

— Quem não precisava era você, eu disse que vinha pra você trabalhar hoje.

— Eu folgo todos os sábados, mãe. Tô em casa hoje.

Maria olhou para ela:

— Então hoje você poderia ajudar a gente a terminar de preparar a igreja pra festividade.

— Mãe, pára de tentar me fazer ir.

— Não tô te forçando a ir pra igreja, só pedindo sua ajuda.

— Mais ajuda? Você não acha que eu já te ajudo muito? Você nem trabalha.

— Você sabe que eu não posso… — as duas pararam quando viram que estavam chamando atenção.

A senha dos meninos foi chamada. A médica atentou para os detalhes; não eram espinhas, mas furúnculos, inflamações causadas pela entrada de bactérias nos poros, causam inchaço, pus e dor. Ela também atentou para a dor que Caíque devia estar sentindo, pois o quadro dele já era de furunculose, tinha se espalhado muito.

Dessa forma, eles passaram por toda a triagem, os médicos fizeram a drenagem dos maiores caroços, depois os meninos tomaram medicação na veia; antibiótico com antiinflamatório. Em casa, teriam de tomar os medicamentos receitados e fazer compressas de água morna. Ainda assim, algo incomodava, a médica nunca tinha visto um caso tão grave como o de Caíque, mesmo atendendo outras crianças que, assim como ele, viviam à beira de esgotos a céu aberto ou que viviam em aterros sanitários como catadores. Por tanto, de Caíque, pediu um exame de sangue, de André pediu o mesmo, pois a forma como as responsáveis pelos meninos falavam, dava a entender que Caíque havia transmitido os furúnculos para André, o que era impossível.

À beleza do sistema de saúde público, agradeceram pela noite perdida. Ficaram lá a madrugada inteira e parte da manhã. Pelo menos voltaram para casa com os remédios receitados em mãos, conseguiram de graça na farmácia do pronto socorro. Como a densidade populacional do bairro dos Mineiros Sabidos de Terras não era tão alta como nos bairros vizinhos, devido a localização, sempre conseguiam os medicamentos que precisavam, contanto que fossem genéricos, conseguir os de referência era mais raro.

— Tô morrendo de sono — falou Maria —, vamos cortar caminho pelo córrego.

— É onde fica a casa do Caíque — lembrou André, animado.

Mas Fabíola protestou:

— Mãe, ontem choveu bastante, o esgotão deve ter transbordado e inundando toda a rua do 21 de Janeiro.

— Mas se der pra atravessar a ponte, já é lucro. Sem falar que a água já deve ter escoado.

Fabíola estava cansada demais para insistir com a mãe, decidiu fazer da forma como ela queria. O máximo que podia acontecer era terem que voltar e fazer o caminho entrando no próximo bairro, era o que Fabíola acreditava que fosse acontecer, na verdade.

A estrada não pavimentada da rua 21 de Janeiro virara um grande lamaçal com a tempestade, isso, por si só, era pior do que fazer um retorno. Já o esgoto, córrego, como Dona Maria gostava de chamar, estava em nível alto.

— Nossa que córrego fedido — observou Dona Maria.

Fabíola não gostava desse substantivo empregado àquela coisa; córrego para Fabíola era uma corrente de água límpida, transparente, a qual podia enxergar o lodo nas pedras e a vida à crescer. Aquela coisa era o oposto. Era uma fossa, as fezes da comunidade inteira expunham-se ali, os ratos e as outras pestes transitavam livremente do esgoto para as casas. Não, aquilo não merecia o título de córrego, mas de esgoto, sarjeta.

Fabíola passou observando a outra margem, via os barracos construídos de destroços de mobília velha, pedaços de armários, mesas, balcões, hacks. Eles estavam se mudando, para onde? Fabíola perguntava-se. Eram moradores de rua, alguns vinham do nordeste, não tiveram oportunidades de emprego, a baixa escolaridade contribuía. Outros eram alcoólatras e ex alcoólatras, outros tinham problemas como transtorno bipolar e esquizofrenia e foram expulsos de suas casas ou fugiram. Fabíola percebia um detalhe cruel; eles levavam os pedaços de madeira em carroças, provavelmente reconstruíriam suas casas em outros terrenos abandonados ou outros córregos, tudo dependia do fim das chuvas.

— Olha! — gritou André — igual o lá de casa.

Ele apontava para um mandacaru, ao lado de um barraco destruído.

— Era a minha casa — Caíque respondeu.

André, em sua curiosidade infantil, aproveitou o fato da ponte estar ao lado da casa de Caíque e correu para lá.

— Espera, menino, não entra aí — Dona Maria ia correr atrás de André, mas acabou pisando num rato que andava por ali. O rato grunhiu, Maria berrou.

Fabíola foi em frente e puxou André, o repreendeu, falando que não deveria correr daquele jeito e não deveria entrar nos barracos de madeira.

Maria, enojada, apertou o passo, queria lavar o pé que acertou o rato. André a acompanhou.

Fabíola olhou para Caíque e seus olhos abatidos. O rapazinho colava-se a ela e ela, apesar de estranhar, gostava. Fazia ela se lembrar do irmão, até algum tempo atrás. Dona Maria não tinha tempo de ser mãe, devido ao alcoolismo, e o pai não tinha tempo de ser pai, pois vivia seu novo romance e embora a nova esposa gostasse de crianças, Fabíola não gostava da ideia de morar com eles e abandonar a mãe. Sua escolha fez de seu irmão um garoto sem mãe e sem pai, por isso, o pequeno vivia abraçado a ela, perseguindo-a como um cachorrinho pidão. Assim que Fabíola entrou para a faculdade de pedagogia, inspirada pelo amor de ensinar que descobriu graças ao pequeno André, o irmão se desapegou aos poucos. Dona Maria converteu-se evangélica e largou o vício, conseguindo, dessa forma, aproximar-se do filho, embora ainda tivesse muito a aprender sobre ser mãe.

— Qual foi, muleque? — ela brincou. Caíque deu um passo ao lado, pensou que ela ia brigar com ele. — Fica tranquilo, eu tô brincando.

Fabíola olhou para o mandacaru:

— Aquele é o jamacaru que comeu seu caroço?

— Não — Caíque respondeu —, foi uma mulherzinha.

Fabíola não fazia ideia do porquê dera-lhe a vontade repentina de saber mais sobre a relação de Caíque com o mandacaru. Era certo que a atitude de Caíque na noite anterior foi estranha, não era normal uma criança reagir com tanto medo, a não ser que tivesse um trauma profundo. Ela sabia; tinha estudado técnicas de reconhecer crianças vítimas de abuso. Tudo em Caíque apontava para o pior.

Fabíola ficou na altura de Caíque:

— Que mulherzinha?

— É uma mulherzinha, bem pequena que mora lá dentro — ele apontou para a planta.

— Ela mora no jamacaru, mesmo com tantos espinhos? — Ele confirmou que sim. Ela prosseguiu — quando ela vinha comer o seu furúnculo?

— De noite — a voz de Caíque começou a se tornar um murmúrio.

— E você não conseguia se mexer… a mulherzinha mordia o seu furúnculo?

— Não, ela sugava o líquido branco dentro.

Fabíola balançou a cabeça calmamente, pensou em suas palavras e nas palavras dele. Deu continuidade:

— Você via o rosto da mulherzinha? — Ele disse que era muito escuro para ver. — Tem alguma chance dessa mulherzinha ser a sua mãe?

Caíque balançou a cabeça veementemente:

— Não, não é, ela vinha de dentro do jamacaru.

Fabíola decidiu parar por ali e prosseguir para casa. Segurou a mão dele:

— Você sempre teve esses furúnculos, Caíque?

— Sim, ela sempre põe eles em mim pra comer.

— Você diz a mulherzinha, ela põe os furúnculos aí? E você viu essa mulherzinha lá na minha casa? — Ele a encarou, depois desviou os olhos. Ela preferiu não insistir mais, por hora.

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