O GARIMPEIRO NA AMAZÔNIA
O GARIMPEIRO NA AMAZÔNIA
Por: Emanuel Prado
OURO E ILUSÃO NA AMAZÔNIA

Hoje, peguei um recorte de jornal que trouxe de Rondônia, onde havia a descrição de uma tragédia ocorrida no rio Madeira.

Foi uma verdadeira batalha naval, entre grupos de garimpeiros fortemente armados, que se enfrentaram numa luta cruel, com saldo de mais de cinquenta vítimas fatais.

O mais importante de tudo, é que fui a principal pessoa envolvida na luta, impulsionada pelas circunstâncias a que me refiro neste livro.

Lutei contra um homem de mau caráter, um traficante, que não mediu esforços em matar e que me causou muitos prejuízos, tanto materiais como emocionais.

Transcrevo aqui a nota do jornal, que trouxe a notícia:

TRAGÉDIA NO GARIMPO

NA TARDE DE ONTEM, UMA VERDADEIRA TRAGÉDIA NA REGIÃO DO CALDEIRÃO DO INFERNO, ZONA DOMINADA PELOS GARIMPEIROS, DENTRO DO RIO MADEIRA.

SEGUNDO AS TESTEMUNHAS QUE APRESENTARAM A CENA, REUNIRAM-SE DUAS AULAS DE DRAGUEIROS, ENVOLVENDO-SE POR CERCA DE DOZE DRAGAS E COM MAIS DE QUARENTA VÔOS, TRIPULADOS POR PESADOS GARISPEIROS ARMADOS.

NESTE REUNIÃO FOI TROCA DE TIROS, FOGO DE MUITAS DROGAS, VOOS DESTRUÍDOS E NO FINAL, QUANDO ACABOU A MUNIÇÃO, UM VERDADEIRO CHOQUE DO HOMEM AO HOMEM, ARMADO COM FACÇÕES E PEDAÇOS DE MADEIRA, QUE SE PERDIDOS.

NO FRAGOR DA LUTA, OUTRAS DROGAS VIERAM E ENTRARAM NA PELE. O EQUILÍBRIO DA BATALHA TEM SIDO MAIS DE CINQUENTA MORTOS E DEZENAS FERIDAS, SENDO CONSIDERADA A MAIOR TRAGÉDIA DOS ÚLTIMOS ANOS NO GARIMPO DESDE QUE FOI CRIADO.

TUDO ACONTECEU EM FUNÇÃO DE UMA RUA ANTIGA, ENTRE UM GARIMPEIRO COLOMBIANO E UM GARIMPEIRO CONHECIDO COMO REI DO GARIMPO.

SUSPEITA-SE QUE O COLOMBIANO ESTÁ ENVOLVIDO NO TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS, MAS O PRINCIPAL MOTIVO DA LUTA FOI POR CAUSA DE UMA MULHER.

OS DOIS ESTÃO DESAPARECIDOS, NÃO EXISTE INFORMAÇÃO SE ESTÃO VIVOS OU MORTOS.

A MAIORIA DO AFUNDO MORTO NO RIO E APENAS DIAS APARECERÃO MAIS TARDE, ANTES QUE MUITOS NÃO APAREÇAM, OU SUA IDENTIFICAÇÃO NÃO SERÁ POSSÍVEL.

AS POLÍTICAS DA CIDADE ESTÃO REALIZANDO AS INVESTIGAÇÕES, MAS ATÉ ESTE MOMENTO NÃO TÊM INFORMAÇÕES A DAR.

OS SOBREVIVENTES DESAPARECERAM SÓ SÃO AS LESÕES MAIS GRAVES HOSPITALIZADAS EM ALGUNS HOSPITAIS DA CIDADE, MAS AINDA NÃO PODEM FALAR. AGUARDAMOS AS PRÓXIMAS HORAS, NOVAS NOTÍCIAS QUE PODEM ESCLARECER MELHOR OS FATOS.

BOA VISTA - RORAIMA

Estou em Boa Vista, capital do estado de Roraima, extremo norte do Brasil.

Cheguei aqui de outra mina em Porto Velho, Rondônia, da mesma forma que chego toda vez que troco a minha; às vezes sozinho, quase sem dinheiro, ferido pela vida e pela perda de entes queridos; angustiado e com uma enorme vontade de desaparecer.

Desta vez com muito mais razão, porque vivi intensamente todos os sentimentos mais populares na sua forma mais intensa e completa, como podem ver através desta história.

Sentimentos como amor, paixão, ódio, fama, poder, riqueza e também vaidade, loucura, vingança, decepção e dor, tudo embrulhado em um ambiente de aventura e mistério, trazido à tona pela magia do ouro.

Nesses dois anos que passei na selva, dentro de uma draga do rio Madeira, muita coisa aconteceu comigo; coisas boas e coisas tristes, mas melhor do que quando estive em Serra Pelada, no estado do Pará, onde passei quase três anos.

Como você pode ver, sou um garimpeiro errante; vou aonde dizem que é mineração, seja nos rios, na selva ou nas terras dos índios.

Meu objetivo é ir para a selva até a Venezuela, ou quem sabe desistir dessa vida errante e buscar a paz nas coisas simples e normais, que só o tempo pode apresentar.

Por enquanto, estou me recuperando de uma malária mal curada e aproveitando a oportunidade para contar um pedaço da minha história, morando em um quarto mau conservado de uma pensão barata.

Trago comigo alguns gramas de ouro, que serão meu sustento até que reencontre o caminho para o meu, ou outro que a vida ofereça.

Assim passo os meus dias, relembrando com tristeza e amargura o que me aconteceu naquela mineração, mas também com as memórias dos bons tempos vividos ao lado de um grande amor.

É só o que me resta, além da experiência das outras minas e a sorte de ainda estar vivo.

Pretendo ficar aqui neste quarto de pensão, até terminar de contar a minha história, depois comprar insumos e equipamentos para uma nova aventura, se houver outra oportunidade e licença de saúde.

O garimpeiro vive perambulando pelo país, meio gente civilizada, meio bichos selvagens, mas só vê a cor do ouro e nada mais. Depois de conhecer sua magia, você não faz mais nada na vida, perdendo o controle do valor das coisas. Quando o ouro acaba, ele emigra para outro lugar onde estaria minerando e assim por diante, passando os anos e a vida.

O meu nome é Carlos Amarildo Fioravante, mas também sou conhecido como Carlão, pela minha constituição atlética e pelo rosto de artista televisivo.

Na mineração, ninguém gosta de ser chamado pelo primeiro nome, pois muitas vezes temem ser reconhecidos por terem cometido um crime em sua terra natal. Pelo contrário, tenho orgulho do meu nome e da minha terra.

Ainda sou jovem, não completei trinta anos, mas ao contrário dos meus irmãos garimpeiros, tive a sorte de vir de uma boa família e terminar o ensino médio, o que me deu muita ancestralidade e liderança na mineração.

Por um período, fui professor de academia na minha cidade, tendo feito alguns cursos.

Devido à grande responsabilidade e ao baixo salário, desisti de continuar naquela vida reta. Sei que é uma profissão digna e importante, mas meu espírito de aventura me impulsionou para o mundo exterior.

Só fui chamado pelo meu próprio nome quando ginguei no rio Madeira, ou seja, quando a sorte grande me fez encontrar muito ouro, tendo sido conhecido como Rei do Garimpo.

Eu tinha tanto ouro nas mãos que, se quisesse, não teria mais que trabalhar; até parecendo inconsistente, reclamando da miséria e dizendo que eu tinha tanto ouro.

Como diz o ditado na mineração - “ouro vem fácil, ouro vai fácil” - assim aconteceu comigo, eu facilmente ganhei muito ouro, mas perdi tão rápido quanto ganhei.

Se estou com fome hoje, posso ter tanto dinheiro amanhã que posso comprar um mercado inteiro. Nas minas de ouro, as lacunas financeiras flutuam muito rapidamente, tanto para cima quanto para baixo.

Não me arrependo do que fiz ou deixei de fazer, porque para mim o que conta é o que se vive e não o sonho ou a fantasia.

Nestes dois anos vivi no garimpo do rio Madeira, convivi com gente de todos os tipos; pobres e ricos, analfabetos e educados; onde o ouro nivelou a todos, destacando apenas aqueles que o possuíam.

Pude ter alguns amigos de verdade; poucos têm certeza, mas sempre me acompanharam e não me decepcionaram.

Eu também tive mulheres, porque eu tinha uma boa aparência, sempre fui desejado, mas como era tímido e solitário, não me entregava facilmente.

Uma mulher foi o maior amor da minha vida.

Na mineração de ouro todos sabem que ouro e mulher não combinam, uma acaba com o outro, como rivais cruéis que não se suportam.

Neste mundo mágico e fantástico, tive a felicidade eterna de conhecer uma pessoa maravilhosa, tremendamente bela e de uma ternura que nunca imaginei que pudesse existir. Foi a minha paixão e o grande golpe que o destino reservou para mim.

Não pretendo falar muito de Serra Pelada, talvez em outra oportunidade, porque os anos que lá passei trouxeram muito mais sacrifícios e dores do que qualquer outra coisa.

Aquela multidão de homens enlameados, sem identidade ou características pessoais, escondidos atrás do barro, vivendo como formigas organizadas em um andar constante, carregando fardos nas costas o tempo todo, parecendo o inferno de Dante, da Divina Comédia.

Ainda hoje, agradeço a Deus por ter acabado com aquele purgatório, embora ainda haja tantos outros, nas cidades e nos campos.

Refiro-me aos pobres deste país rico, que vivem em favelas, não têm trabalho para trabalhar e, quando têm, são mal pagos e explorados, não tendo oportunidades de crescer com saúde e dignidade, presos em um mundo injusto e insensível .

É como a mineração, com milhares de pobres caminhando em cima do ouro, carregando nas costas a riqueza misturada com lama, para enriquecer alguns com o sacrifício de suas próprias vidas.

Peço desculpas pela explosão, mas com o sofrimento aprendi a ver um pouco mais do que a cor do ouro, embora ainda esteja enfeitiçado por ela.

A história que vou contar é cheia de emoções, curiosidades e romance. É a síntese da história de muitos garimpeiros, que vieram ao norte do Brasil em busca de riquezas fáceis e iludidos pela própria miséria em que viveram.

Por meio dela poderei transmitir, um pouco do sentimento de quem abandonou a família, a terra e os ideais, porque não tem mais esperança na sociedade, nos governos e no trabalho.

Procurarei enriquecê-la com detalhes históricos, geográficos e outros mais técnicos, a fim de preservar um pouco da memória daqueles dias, para que no futuro possamos tirar lições positivas e homenagear as pessoas que, de uma forma ou outra, sempre buscando suas próprias soluções, quando perde a esperança.

Há dois anos cheguei a Porto Velho, assim como cheguei aqui em Boa Vista, com a alma endurecida para o sacrifício, mas com a ilusão de encontrar felicidade, riqueza e amor.

Vim junto com um companheiro mineiro da Serra Pelada, o Raimundo, que mais que amigo, o considerava irmão.

Procuramos um lugar para nos instalar e, indicaram uma pensão barata perto do mercado municipal, onde tantos outros mineiros se hospedavam.

A dona era uma senhora idosa chamada Dona Maria, que logo se compadeceu de mim e nos cedeu o melhor dos quartos, que reservava apenas para os filhos, quando viessem visitá-la.

Depois de instalado, resolvi caminhar pelas ruas da cidade, para conhecer um pouco de sua intimidade.

Algumas ruas eram estreitas, outras mais largas, havia um pequeno centro sem prédios e uma enorme periferia.

Na verdade, a cidade parecia ser a própria periferia, com gente pobre e bronzeada, andando como formigas por toda parte.

Havia garimpeiros aos milhares, apressados ​​e atrapalhando os negócios, inflando os preços e comprando tudo em massa. Era um verdadeiro mercado persa, como você lê nos livros de história, com pessoas de todos os lugares disputando espaço, comprando e vendendo ouro e tudo girando em torno dele.

As ruas da cidade estavam sujas, a vegetação rasteira crescia em terrenos baldios, os edifícios eram mal conservados, as pinturas descascadas pelo tempo e pela lama por todos os lados.

Em um desses cantos mal conservados, encontrei um índio sentado no meio-fio, tentando vender alguns arcos, flechas e lanças, feitos de uma palmeira tigrada muito resistente, enfeitados com penas de araras.

Eu ia falecer com ele, mas ele deu um assobio estranho, dando a impressão de que estava me chamando.

Virei meu rosto para ele e ele acenou, mostrando-me uma de suas flechas.

- Quer uma flecha? - perguntou o índio.

Decidi dar uma olhada na flecha, pensando em uma maneira de dizer não e ir embora.

- Ela vai te proteger, foi feito pra você! - Ele disse.

Continuei recusando, mas algo me impedia de fazê-lo e, cada vez que olhava para aquela figura dos livros de história, me sentia mais comprometido com ele.

- Pega, você não tem que pagar ... eu tenho que dar pra você! - ele insistiu.

Tive pena do índio, tirei alguns trocados do bolso do short e peguei a lança menor.

Ao sair, ele me disse: - Ofereça aos xamãs que eles o protegerão! ...  Escolha um lugar sagrado! ...

Eu nem tinha pensado no perigo, mas continuava me lembrando das palavras ditas, e cada vez que olhava para a lança, me lembrava do índio.

- Escolha um lugar sagrado ...

Quando cheguei na pensão, meu companheiro ficou curioso com a minha demora, perguntando onde eu tinha estado e como consegui aquela arma indígena.

Respondi que havia conhecido um índio, que disse que deveria oferecer a lança aos xamãs em um lugar sagrado, para ser protegido do perigo daquela mineração.

- Para mim um lugar sagrado é uma igreja ou cemitério - respondeu meu companheiro, entrando no mesmo clima, o que me causou certo medo.

- Fazendo o que ele disse, você não vai se sentir mal nem se arrepender depois ...

- ele falou como se quisesse se livrar de uma ameaça invisível.

Essas palavras me convenceram a procurar um lugar apropriado.

O problema é que ir a uma igreja para oferecer uma lança não seria bom; então decidi ir a algum cemitério.

Tentei descobrir onde tinha e foi a dona da pensão que me disse:

- Tem um no centro e o cemitério de Santo Antônio, que não fica longe daqui; se quiser ir é só pegar um desses ônibus que saem de hora em hora.

Eu perguntei se era muito longe e ela respondeu:

- A pé são cerca de sete quilômetros, seguindo os trilhos da antiga ferrovia.

E ainda recomendou:

- Se decidir fazer o sacrifício, não vá muito cedo nem muito tarde, pois as trilhas ficam dentro da selva e existe o perigo de ser picado por um mosquito e pegar malária.

Essa ideia de sacrifício, oferta e perigo me deu uma sensação de aventura e liberdade.

Eu planejava partir na manhã seguinte, assim que o sol nascesse.

Decidi que iria caminhar, o que levaria quase três horas, e voltar de ônibus circular.

Tínhamos tempo de sobra, pois esperaríamos cinco dias para seguirmos para Abunã, onde meu amigo tinha providenciado lugar para os dois.

O Raimundo, meu companheiro, era um idoso, já com quase cinquenta anos, todo enrugado pelas marcas da dura vida que levara, vindo comigo do Nordeste.

Naquela época, eu tinha vinte e três anos.

Passamos quase cinco anos juntos na mineração de Serra Pelada, no estado do Pará.

Em todos esses anos, carregamos muitos sacos de argila nas costas, até que compramos juntos uma área, onde possuímos e exploramos o ouro para nós mesmos.

Às vezes, conseguíamos ganhar muito ouro, mas assim como era fácil, era fácil.

Gostava de ser chamado de Pernambuco, em memória de nossa pátria.

Ele era mais maduro e experiente do que eu e, apesar de não ter estudado, tinha a sabedoria que a vida ensina.

Eu, que havia cursado todo o ensino médio, mesmo lecionando História e Geografia, sabia falar muito bem, muitas vezes pedia seus conselhos e me sentia forte e segura ao seu lado.

Em Serra Pelada não entravam em mulheres. A lei era muito rígida, evitando assim muitas brigas. Por isso, dedicamos nosso tempo quase todo ao trabalho, deixando os prazeres do mundo para os poucos dias de folga que tínhamos, sempre em rodízio, para não perder o emprego.

Pernambuco não ligou para isso, pois havia abandonado a mulher e sete filhos no sertão e nem queria saber deles.

A miséria e a falta de alternativa de sobrevivência, faziam com que tivessem filhos todos os anos e, quem conseguia sobreviver, enfraquecia ou adoecia.

Um dia, só pensei em ganhar o mundo, sair daquele lugar e mudar minha vida.

Apesar de tudo, eu era um menino tímido que, junto com meus anos de isolamento em Serra Pelada, me fez um sonhador.

Queria ganhar muito ouro, encher meu pescoço de correntes de medalhões, escolher a mulher mais linda e inteligente que viesse e ficar com ela.

Eu sonhava com dias e noites.

A mineração me seduziu pela possibilidade de um dia vagar, ou seja, ter sorte e ficar muito rico.

Meu amigo, por outro lado, só pensava em sobreviver; talvez um dia voltasse para o sertão e procure Maria novamente.

Pensando nessas coisas, na manhã seguinte peguei a lança que o índio havia me dado e convidei Pernambuco para ir comigo, mas ele não quis.

Segui então os trilhos, partindo da velha oficina, da estrada-de-ferro Madeira-Mamoré, rumo ao desconhecido.

Disseram que para cada dormente lançado naquela ferrovia, uma vida havia sido tirada pela malária.

Houve mais de vinte mil mortos ... e a estrada foi desativada ...

Eu estava andando por aí pensando nisso, quando de repente vi, abandonadas no meio do mato, com arvores crescendo por toda parte, as velhas locomotivas, que pareciam fantasmas, enferrujando e tentando me assustar.

Na verdade, comecei a me surpreender com tantas máquinas de ferro, clamando pelas vidas engolidas pela ferrovia.

Os trilhos cortam a mata, que já ocupou os espaços e que foram retirados há quase cem anos. Eles estavam meio enterrados e indo para algum lugar, que uma vez foi o destino.

A paisagem que margeava o grande rio Madeira era impressionante. Suas águas lamacentas ostentavam a glória da riqueza e o poder da morte para os menos preparados.

Fiquei pensando nos índios, que viveram nessas terras e como são hoje. Anteriormente soberano e livre; hoje em dia, implorando para não morrer de fome.

Perdidos, prisioneiros da civilização em sua própria terra e fora de sua cultura primitiva.

As horas passavam devagar e o cansaço me obrigava a parar de vez em quando, levantar as pernas para que o sangue circulasse melhor.

Ao lado da linha férrea, havia uma enorme parede. Por curiosidade, subi em uma árvore para ver o que havia do outro lado.

Havia um prédio antigo e vistoso, parecendo um velho cassino abandonado, ou um hotel chique, para a época em que foi construído.

Era desabitado, mas mantinha a sua grandeza, que nem o tempo conseguiu apagar.

Atrás do prédio, o rio tinha suas corredeiras usuais e uma grande ilha que o dividia em duas vias. Mais tarde soube que se tratava da ilha-prisão onde antes havia uma prisão, palco de famosas rebeliões e fugas espetaculares.

Caminhando mais adiante, chegava a Santo Antônio, onde encontraria a capela e o cemitério.

Dias depois, fui procurar em uma biblioteca pública mais informações sobre aquele lugar.

Eu não sabia que aquele índio, a lança e a capela estariam definitivamente ligados a mim, enquanto eu estivesse naquela região.

A velha igreja reinou soberana nas margens do rio. Na beira dos trilhos, o mato fazia questão de esconder as placas que indicavam a fundação da cidade.

A capela funcionava de vez em quando.

Às vezes, um padre vinha abrir as portas e algumas mulheres e crianças se aproximavam.

De vez em quando era rezada uma missa simples, mas que traziam consolo àquelas pobres criaturas que viviam na maior miséria.

Algumas crianças se juntaram a mim enquanto eu caminhava.

Eles perguntaram: - Você está indo para a capela?

- Por que você quer saber? ... - respondi meio sem pensar.

Por que está assombrado! ... - Existem demônios lá! ...- disse o menino maior.

- Como assim? ...

Eu perguntei um pouco assustado, mas interessado.

- apareceu um homem deitado lá fora, já faz uns três dias. Há gemidos e sons terríveis por toda parte na capela!  - outro garoto respondeu.

- Mas ninguém descobriu do que se trata ... - perguntei e ele respondeu:

- A polícia veio, mas não encontraram nada e foram chamar o padre! ...

- E ele veio? ... - Eu queria saber.

- Ele também veio e os gritos aumentaram, então ele saiu dizendo que ia chamar o bispo! ...

- E o que aconteceu? ... - perguntei, porque queria saber sobre o padre.

- Ele nunca mais voltou! ... - Eles disseram.

- E o que o homem comia? ...

- O padre deixou água e um pouco de comida; pão e biscoitos, mas ele só bebeu a água.

Parece que ele vai morrer! ...

"- Mas por que eles não o tiraram de lá? Insisti com eles, como se fossem os culpados.

- Foi por causa dos gemidos! ... - Eles responderam novamente.

- Mas o que são esses gemidos?  - Eles são semelhantes ao choro de uma velha, ...

- Há também o choro de uma criança! ... - É horrível! ... - Disse o maior deles.

Essa conversa me causou certo pânico. Ao me aproximar da capela, as crianças ficaram para trás.

Eles pararam muito longe para não ouvir aqueles gemidos.

Quando vi o homem, percebi que ele devia ter a minha idade; ele estava deitado no chão com as mãos nos ouvidos. Percebi que ouvi algo terrível de que não gostei.

Também vi que ele tinha uma mão atrofiada e torcida para trás.

Eu não queria acreditar que existia tal coisa no mundo, mas os gemidos estavam lá e fizeram meu pescoço e minha espinha arrepiarem.

Também comecei a ouvir.

Eram lamentações horríveis, ...

Choro de quem não podia aceitar a morte de um ente querido, ...

Dor em saber que em pouco tempo a vida lhe seria tirada, ... coisas assim.

Eu podia ouvir crianças chorando, chorando de angústia e isso atingiu meu coração.

Parei um pouco, tinha dúvidas em prosseguir, segurei a lança em um gesto de defesa e quando estava com a ponta voltada para o céu os gemidos pararam imediatamente, como se comandados por um condutor invisível.

O homem com a mão murcha notou minha presença e a cessação dos gemidos trouxe um novo fôlego para ele.

Lentamente, ele se sentou, tirou as mãos do rosto e olhou para mim.

Seu rosto estava cadavérico; enormes círculos roxos sob seus olhos verdes e opacos; sua barba rala, mostrando os lábios esbranquiçados com a secura característica da malária.

Aproximei-me do homem, peguei meu cantil e ofereci minha água.

Como estava fraco e sem vontade de fazer nada, tirei a tampa e coloquei uma grande quantidade de água em sua boca, que escorreu por seu corpo.

Senti que aquele gesto o animou e ele agarrou meu braço com força, usando sua mão boa.

Então ele me disse em uma mistura de sussurro e gemido:

- Enfim você veio! ...

Não entendi o que ele quis dizer, porque nem mesmo eu sabia que estaria lá. Então eu perguntei a ele:

- Você estava me esperando? ...

- Sim ... Já se passaram três dias! ... ele respondeu em um sussurro que mal se ouviu.

- Você não está me confundindo com outra pessoa? ... -Perguntei novamente.

- Não, eu sabia que você viria, ... foi o trato que fiz com o xamã! ...

A palavra pajé despertou minha curiosidade, pois me lembrei do índio, da lança e do lugar sagrado.

Então ele falou novamente:

- Venha comigo para a grande pedra sagrada, atrás da capela! ...

Eu o acompanhei e no caminho ele me pediu a lança.

Chegando na pedra ele me disse: - Fique aqui e eu farei a oferenda aos xamãs... libertando-me para sempre da maldição... e deixando-os livres para descansar em paz! ...

Não entendi nada, mas parecia que tudo estava seguindo um roteiro pré-estabelecido.

Perguntei o nome dele e antes de ele me deixar ele disse que se chamava Jonas, apelidado de Mãozinha.

Em seguida, subiu no topo da grande pedra e, num lento gesto de rendição, ofereceu ao xamã imaginário a lança que eu trouxera, ficando um tempo com os braços estendidos.

Uma rajada de vento soprou, seguida pelos mesmos gemidos, que gradualmente diminuíram e tudo voltou a ficar em silêncio.

Naquele momento a lança se partiu ao meio sem ser forçada pelo homem e ele jogou as duas peças para o alto, fazendo-as desaparecer no mato.

- Ok, a oferta foi aceita e eu posso ir... disse ele sem muita convicção.

Eu perguntei para onde ele estava indo e ele respondeu: - Vou morrer longe deste lugar! ...

Saímos da capela em direção ao ponto de ônibus do cemitério, a cem metros de distância.

Ao sairmos dali, passamos pelo marco da cidade e ele pegou sua boroca, uma pequena bolsa a tiracolo na qual são carregados os objetos pessoais que ali estavam escondidos.

Jonas estava sujo, fedorento e doente, mas resistiu por algum motivo.

Levei-o comigo para a pensão porque não tinha parentes ou conhecidos para ajudá-lo.

Ele estava desnutrido e precisando ser internado em um pronto-socorro.

Chegando à pensão, disse a Dona Maria que ele ficaria conosco e, ela não se surpreendeu, já que estava acostumada a receber todo tipo de gente.

Ele tomou banho e eu dei a ele uma muda de roupa para vestir, já que a dele era inútil.

Eu não sabia por que estava fazendo isso; talvez porque na mineração muitas vezes ajudamos os outros, pelo simples fato de um dia podermos estar nas mesmas situações.

Além disso, havia mistérios que nos ligavam um ao outro e eu queria saber mais sobre eles.

Enquanto eu estava na pensão com o Jonas, meu companheiro Raimundo não apareceu, pois estava na cidade se preparando para a viagem ao garimpo.

Depois de algum tempo, disse a Dona Maria que levaria Jonas ao pronto-socorro para ser medicado.

Ao chegar lá, o médico disse que ele tinha malária, do tipo falsíparum com duas cruzes.

Não tinha ideia do que se tratava, mas sabia que era sério.

Após os exames de rotina, o médico prescreveu sua internação imediata, para aplicação de soro e outros medicamentos.

Ele explicou que a situação era muito grave, pois havia a suspeita de que ele também tinha hepatite.

A hepatite ataca o fígado, da mesma forma que a malária.

- Ele está em uma situação muito crítica! ...

- O médico me disse.

- Você também tem que fazer testes, porque você não está com boa aparência! ... - disse examinando meus olhos.

Aproveitei o fato de os exames serem rápidos e fiz o teste de lâmina, para saber se eu tinha malária ou não.

Infelizmente, os exames mostraram que havia contraído malária, com uma cruz, que foi um pouco mais brando que o outro.

- Você vai ter que ficar internado também! ... - disse o médico.

Ao entardecer, Jonas começou a suar frio, mesmo naquele clima quente de quase quarenta graus centígrados e gemia de dor, com náuseas graves.

Lá estavam os sintomas da malária aparecendo.

Até as enfermeiras que o atendiam sentiam pena dele, porque nada podiam fazer, além de administrar os medicamentos que eram prescritos.

Minha malária ainda estava incubada e por isso não senti calafrios, mas inevitavelmente nos próximos três a quatro dias estaria na mesma situação.

Quando a febre cedeu, Jonas acordou e me chamou para conversar.

Estávamos em um pavilhão coletivo e nossas camas ficavam lado a lado, então pude atendê-lo também.

- Eu gostaria de agradecer o que você fez por mim! ...

- Ele me contou e continuou.

- Eu sei que vou morrer, mas antes que isso aconteça, gostaria de lhe pedir mais um favor, ... que é muito importante para mim.

Eu escutei e balancei a cabeça.

- Quero que procures um amigo que veio comigo ao garimpo ...

- Ele disse em voz baixa e continuou:

- Ele é paranaense e se chama Geraldo ...

- Eu perguntei como eu poderia encontrá-lo naquela multidão de pessoas, e ele respondeu:

- Ele é muito gordo e estava garimpando perto de Abunã ...

Eu disse que procuraria por ele, mas o que diria a ele? Eu perguntei.

"- Quero que você diga a ele, para que minha mãe saiba, depois que eu me for, que morri feliz. Ela vai entender, porque sabe que durante toda a minha vida carreguei as marcas do destino em minha mão murcha.

Sinalizei que entendi e ele continuou: - Era preciso me libertar das maldições do passado ...

Enquanto eu ouvia com atenção, ele perguntou:

- Quero que ele leve meus ossos para serem enterrados em minha terra, com minha família ...

Então ele me pediu para pegar seu boné que estava embaixo da cama e, quando o peguei, senti que era bem pesado.

Ele retirou dois pequenos sacos de pano, cada um contendo uma bola dourada.

- Aqui, um é seu e o outro é para o Geraldo! ... - disse ele, decidido.

Tive vontade de protestar, mas não teve como, foi uma decisão de quem já não esperava nada da vida.

Cada bola de ouro pesava mais de dois quilos e estava envolvida em uma toalha de banho, sua única peça de roupa.

Eu os guardei e prometi que procuraria seu amigo e faria sua última vontade.

Depois disso, ele disse: - Gostaria que me contasse tudo sobre sua ligação com os xamãs e, porque havia aqueles gemidos na capela!

- Antes de te contar minha história, ainda gostaria de te dar uma coisa ...

Ele disse em um suspiro melancólico.

Ele tirou do pescoço um medalhão, semelhante a uma meia-lua com dentes, preso a uma grossa corrente de ouro e, passando-o para minhas mãos, continuou:

- O medalhão vai te proteger por muito tempo, como uma recompensa pelo que você fez por mim e pelos espíritos dos índios, que agora poderão descansar em paz.

Achei que não tinha feito nada, além do que qualquer um faria, mas deixei que ele continuasse a falar:

- Quem está com a outra metade da medalha é meu amigo Geraldo. Ele vai te reconhecer quando te encontrar ...

Após cada frase, ele continuou a falar: - Ela representa a amizade e, eu queria passar para alguém que se mostrasse digno dela.

Coloquei a corrente em seu pescoço e lhe dei um tapinha de agradecimento.

Ele estava convencido de que sua situação era terminal, mas não se arrependia.

Então ele disse: - Você vê minha mão murcha?...  Porque eu nasci assim! ...

Em outras vidas eu fui um guerreiro violento e sanguinário ...

Assim começou sua história, cheia de mistérios e coisas sobrenaturais. Eu não sabia se acreditava ou não no que ele dizia, e às vezes achava que o homem estava ficando louco.

Mas sua história tinha fundamentos e os fatos que ele testemunhou me deram crédito a ele.

- Não vim aqui para a Amazônia por causa do ouro, ...

Era para cumprir a minha missão naquele lugar, onde tudo começou ...

- Em outra vida fui chefe de uma expedição militar que cruzou o rio Madeira em busca de índios para escravizá-los ...

- Ficaram muito claros na minha memória os atos de crueldade que cometi naquela época ... - - Prendi criancinhas índias, ... estuprava mulheres ... e matei índios adultos ...

- Esses gritos e gemidos, são os mesmos que nunca calaram e, seguiram-se através dos séculos até mim ...

- As maldições dos xamãs que matei, me arrancaram do ventre de minha mãe ... e torci minha mão ”...

Olhei para Jonas e vi que seus olhos estavam fechados, como se ele imaginasse o que estava acontecendo, o que ele estava narrando.

Logo depois, ele respirou um pouco mais e continuou: - Vivi com essa maldição toda a minha vida ...

- Tive milhares de visões de índios sendo decapitados pelo fio de espadas, ... crianças arrancadas dos braços de suas mães, que imploravam desesperadamente por seus filhos de volta...

- muitos chegando a suicidam-se de angústia e desespero ...

Eu o ouvi com atenção e entendi melhor suas ações.

Ele continuou: - O último dos xamãs a morrer, veio me buscar, ... para fazer um ritual de sacrifício, ... quebrar a lança para quebrar a maldição ... e, oferecer minha vida em troca do mal feito a ele pessoas, para descansar em paz ...

Foi uma declaração ousada, para alguém que não tinha certeza, de que ele poderia até morrer.

- Mas não foi só na minha vida, o preço do massacre dos índios

Mas antes ele disse: - Continue com sua vida com calma, porque você não tem nada a ver com isso ...

- Por isso você foi escolhido, para ser o portador da lança e da mensagem que você vai espalhar ... Não tenha medo porque você vai proteja-se do perigo, ... ficará rico e poderoso, ... até que chegue a hora de iniciar sua verdadeira missão, ... que é a defesa dos ideais e da cultura dos índios ... Você não terá paz até você terminar o que tem que fazer, só então você terá riqueza, fama e poder novamente ... Quanto a mim, quero ser enterrado em um simples caixão ... e depois ser levado de volta para minha família.

Essas foram as últimas palavras de Jonas, o Mãozinha.

Naquela noite Jonas não resistiu, seu coração parou de bater e seu sofrimento acabou.

Meu amigo Raimundo, que veio me visitar no hospital, se encarregou de providenciar o funeral, conforme havia pedido.

O padre que havia desaparecido voltou e fez o pedido do corpo a Deus.

Depois disso, a capela ficou sem gemidos e a paz voltou ao seu lugar.

Não pude sair do hospital, porque a malária estava começando a me castigar.

Cinco dias depois tive alta, mas tive que me recuperar antes de enfrentar o garimpo e procurar Geraldo, o gordo.

Raimundo resolveu ir sozinho para Abunã, dizendo que estaria me esperando em alguma draga.

Combinamos então que nos encontraríamos, quando fosse possível.

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