Capítulo 4

Tamí levantou antes de o sol nascer. Saiu de casa sem fazer barulho. Não demorou a chegar até o alto do morro onde ficava o cemitério da ilha. Olhou atenta para a imagem em preto e branco dos dois nas velhas cruzes de madeira. Pensou no quanto gostaria que eles estivessem ali com ela. Não conseguiu segurar as lágrimas. Achava tão injusto não poder tê-los conhecido. Pensou nas palavras da Velha do Mar e na insistência dela para que perdoasse Todi. Mas ela achava que jamais conseguiria se livrar daquele sentimento de raiva que tinha em seu coração. A cena daquele dia a atormentava todos os momentos de sua vida. Fechou os olhos e conseguia ver nitidamente ele vindo em sua direção, a luta dela contra o impossível, a dor, sangue e as ondas engolindo seu corpo. Isso já fazia sete anos e ela lembrava como se estivesse acontecendo naquele momento. Todi havia acabado com sua infância, com sua vida. Criou seu filho enquanto as meninas de sua idade se davam ao luxo de pequenas vaidades e amores adolescentes. Todi nunca fora um homem muito popular na ilha... Era um bêbado e disso todos sabiam. Ela só sabia de sua fama com a bebida e que não gostava muito de trabalhar, mas nunca pudera fazer um julgamento porque até aquele dia nunca haviam se conhecido além de passagens rápidas um pelo outro. Nunca conversaram um com o outro. Ela tinha um filho dele e não conhecia sequer sua voz. O sangue daquele homem monstruoso corria nas veias de seu filho. Odiava aquele homem com toda sua força, no entanto amava o filho que ele lhe dera mais que qualquer coisa. Olhava para Albert e não via nenhum traço de Todi. Achava ele muito parecido com ela. Era um menino pequeno e magro, claro, cabelos até os ombros loiros, mas não tanto quanto os dela. Olhos castanhos esverdeados. Ele tinha tantos sonhos, lhe dava tantas alegrias, era um menino extremamente amável e todos o estimavam. E ela temia quando chegasse o dia que tivesse que contar a verdade para ele. Nem imaginava explicando ao menino que era filho de um estupro e que o pai havia sido morto pela própria mãe. Seria ele capaz de superar esta dor na qual foi gerado? Seria ele capaz de perdoar sua mãe que matou seu pai? Ela achava que não... Que nunca seria perdoada pelo filho. Ainda assim ela nunca se arrependeu de ter tocado aquela pedra nele e o jogado do penhasco. Sabia que nunca mais ele faria isso com outras mulheres. Todi era um perigo na ilha, mas nunca ninguém soube disto. Poucos se questionavam sobre o que teria acontecido com ele. Sumiu misteriosamente. Há quem cogitasse que havia morrido afogado ou mesmo caído de um dos penhascos bêbado. Mas também nunca ninguém se interessou em ir em busca de respostas. Boatos se espalhavam de que havia ido embora e até sido capturado pela Velha do Mar. Mas a verdade só ela sabia: ele estava morto por suas mãos e seu corpo jamais seria encontrado. A vida foi cruel com ela, obrigando-a a se tornar mulher muito antes do que queria. No entanto havia lhe dado a dádiva de ter seu pequeno Albert junto de si. Por isso suas dúvidas com relação à Deus e as crenças de seus avós. Poderia este Deus que eles tanto adoravam por ser bom permitir tanta injustiça com ela? Ela tinha certeza de que não merecia tudo que a vida lhe fazia passar. Passou os dedos nas fotos dos pais... Mortos tão jovens, deixando uma filha recém-nascida. Também havia um culpado: o dono da Companhia dos Conquistadores. O mesmo que lhes dava o chão no qual estavam enterrados, havia tirado suas vidas. Os dois trabalhavam em uma mina quando esta foi implodida. Acidente de trabalho. E nunca ninguém se responsabilizou por isso. Nem se falava a respeito das mortes por trabalho. Ninguém questionava, nem os próprios garimpeiros. Quando ela começou esta conversa, logo que começou a entender o que se passava, tiveram medo de falarem o que realmente pensavam. Só houve silêncio. Todo aquele cemitério era de garimpeiros que morreram trabalhando ou devido às péssimas condições de vida que levavam naquele lugar. E um dia aquele homem pagaria por todo mal que havia causado na ilha e na vida de toda aquela gente. A ilha era grande, linda... Ela acreditava que apesar da aridez do solo e as poucas ou quase nulas chuvas não eram suficientes para quebrar o encanto daquele lugar e tudo que ele podia oferecer. Ela acreditava que todos poderiam sim tirar seu próprio sustento daquelas terras e viverem felizes sem intervir no meio ambiente, como sua mãe acreditava quando largou tudo e foi para aquele lugar iniciar sua comunidade. Mas isso não acontecia. Todos trabalhavam muito para receberem pouco. Todo ouro encontrado ia para as mãos da Companhia e com o que recebiam precisavam pagar suas terras onde construíram suas casas, comprar comida, roupas e tudo que precisassem para sobreviver. E todo comércio pertencia à Companhia dos Conquistadores. Ninguém podia comercializar nada. O plantio também não era permitido, a não ser que fosse pago um valor adicional ao terreno. Tudo que foi tocado pela Companhia dava para ver a olho nu. Terras escuras, feias, com pó por todos os lados, onde o único objetivo era encontrar minérios para enriquecer seu dono. Não haviam explorado toda a ilha ainda, mas ela sabia que em breve isso aconteceria. Havia algumas florestas intactas, que logo seriam o alvo de novas preciosidades a serem encontradas, destruindo tudo que havia por ali. Enquanto isso, poucos conheciam todas as belezas daquela terra, pois não tinham tempo para passeios pelo lugar onde moravam ou qualquer tipo de lazer. O trabalho era árduo demais para caminhar por aí quando acabasse o expediente. E o final de semana poderia ser de descanso... Mas todos preferiam trabalhar e garantir o sustento. Tudo ali pertencia ao dono da Companhia dos Conquistadores, inclusive os garimpeiros. E ninguém o conhecia, pois ele jamais apareceu naquele lugar. Ainda assim Tamí odiava a forma como ele tratava a ilha e as pessoas daquele lugar.

Ela foi tirada de seus pensamentos ao ouvir sons. Era Rotsey, caminhando apoiado em sua bengala. Ela tentou sair sem ser vista dali e conseguiu. Ele a atormentava quando a via. Fazia questão de lembrar o que ela havia feito, sempre criança confusão envolvendo todos à volta. Ele a odiava, assim como ela odiava Todi. E ela sabia que havia desgraçado a vida dele... Mas não podia voltar atrás. Ficou falada entre o povo pelo que havia feito, porém nunca se preocuparam com o fato de ele ter tentado agarrá-la. Só viam a forma violenta com que ela se defendeu. E ainda ouvia comentários de como ela podia ser filha de Albert e Alberina, pessoas tão boas. Como se ela fosse um pessoa horrível? E ela era realmente uma pessoa horrível? Ela tinha certeza que sim.

Quando ela chegou em casa o sol já estava no céu, forte e quente, mostrando que seria um dia como todos os outros. Albert estava sentado inquieto, esperando por ela. 

Quando a viu, correu até ela e lhe deu um forte abraço e um beijo estralado. 

João e Esperança levantaram também, sorrindo confusos:

- Ele está muito ansioso. Quer que vamos todos juntos que ele tem uma surpresa para você.

- Hum, uma surpresa? Para mim?

Albert pegou a mão da mãe e foi andando rapidamente em torno da casa, com os avós seguindo até os fundos da casa. Lá estava um belo cavalo branco comendo pasto. Era absolutamente lindo.

- Meu filho... Não acredito. – disse ela.

- É para você. – disse ele.

- Eu nunca vi um cavalo tão lindo. – falou ela.

Tamí pegou o filho no colo e foram até o animal. Ela colocou sua mão no pelo suave. 

- Onde conseguiu, Albert?

- Comprei... Com o dinheiro que ganhei aquele dia na mina...

- Não precisava ter feito isso... Deve ter custado todas as suas economias. 

- É para você, mas todos nós podemos usar. – observou ele olhando para João e Esperança e piscando o olho.

Tamí sorriu e o abraçou:

- Obrigada, meu amor. Obrigada por tudo, especialmente por existir.

Tamí o encheu de beijos e depois rolou com ele fazendo cócegas pelo mato ralo crescido na areia. 

Naquele dia ele não insistiu para ir com a mãe para as minas. Preferiu ficar com seu cavalo. Ela preferia assim.

Tamí trabalhou bastante naquele dia, mas encontrou pouco ouro. Aquela mina realmente estava muito escassa. Cátia havia sido transferida para as minas do sul, juntamente com Júnior, então ela passou o dia sozinha. Sentia falta dos dois amigos por perto. Sabia que muitas vezes ficavam fazendo comentários sobre ela, pelo modo como alguns a olhavam. Mas ela não se importava muito. Só queria trabalhar, ganhar seu dinheiro e ir embora. Quando ela retornou para casa, ao anoitecer, Albert ainda estava na mesmo lugar com o cavalo.

 - Mamãe, precisamos dar um nome a ele. 

- Tem razão. E que nome você sugere? Perguntou ela.

- Que tal Júnior?

Tamí pensou um pouco:

- Bem, não sei se Júnior ficaria muito feliz sabendo que tem um cavalo com o mesmo nome que ele.

- Mas eu gosto muito do Júnior e gosto muito do cavalo, por isso eu queria que eles tivessem o mesmo nome.

- Que tal sermos criativos e escolhermos outro nome?

- Qual você quer? – falou ele não muito empolgado.

- Vejamos... – ela pensou olhando para o animal. O por do sol atrás das montanhas verdes deixava ele dourado e logo ela pensou: - Que tal Ouro?

- Ouro? É muito bonito este nome... Mas ninguém tem um cavalo chamado Ouro.

- Também ninguém tem um cavalo chamado Júnior, não é mesmo? E ainda assim você queria. – ela riu: - E agora temos o primeiro cavalo chamado Ouro na ilha.

- Ele se chamará Ouro. – falou o menino sorrindo feliz. 

Albert alisou o animal e começou a conversar com ele, contando como seria seu nome, como se ele entendesse. 

O jantar já estava pronto e ela nem teve tempo de banhar-se antes de comer. Estava cansada. O lampião estava fraco e Esperança havia dito que havia pouco querosene em casa e já deviam muito na mercearia. 

- Perceberam por que não posso parar de trabalhar? – falou João por causa do lampião.

- Se não parar vai morrer dentro de uma mina. – observou Esperança contrariada.

Ela olhou imediatamente para Tamí, arrependida do que havia falado. Não queria trazer lembranças ruins para a filha durante o jantar. Tamí deu de ombros:

- Mãe esperança tem razão. Não quero ficar órfã de novo, Pai João.

João olhou ternamente para Tamí:

- Filha, você é maravilhosa. Não sei o que seria de nós sem você.

- Então deixe de ser cabeça dura e comece a pensar em deixar as minas. Já prometi que nada faltará para nós. Eu sou uma boa garimpeira, você sabe disso.

- Eu gostaria muito de plantar... – observou ele. – Imagina cultivar nosso próprio alimento?

- Nem pense nisso, João. – falou Esperança. 

- Eu não consigo me conformar com isso... Pagamos por nossa terra e não podemos cultivar nela. Tudo é tão caro nos armazéns... Por que trazerem de fora o que podemos plantar aqui? Tenho certeza que estas terras são férteis para o plantio, mesmo com a escassez da chuva. – falou Tamí.

- E o pior de tudo é que nossa maneira de viver, tão modesta e difícil, chama a atenção de pessoas fora daqui. – falou João.

- Quem daria importância para a forma como vivemos? – perguntou Tamí.

- Ouvi boatos de que um grupo de cantores está vindo para a ilha em alguns dias.

- Cantores? O que querem aqui?

- Parece que querem ver nossa forma de vida e fazer uma música ou algo assim... Não entendi direito.

- Fazer uma música sobre a mineração? – Tamí perguntou mais para si mesma, desconfiada. – Quem faria uma música sobre a mineração?

- Não sei muito não... Mas acho que realmente virão ou o boato não existiria.

- E alguém os conhece?

- Daqui da ilha ninguém conhece não... Mas já pediram permissão para o dono da Companhia dos Conquistadores e foi autorizado.

- E onde ficariam? Não há nem lugar para se acomodarem?

- Também pensei nisso. Devem ser pessoas acostumadas com todo conforto que existe fora da ilha... Chegar aqui e viver sem luz elétrica, água encanada... Duvido que suportem muito tempo. Mas acredito que sejam jovens, destes que não tem noção do que fazem... Só querem aparecer.

- Mas se fosse assim não quereriam saber sobre os garimpeiros. – observou ela.

- Vai ver querem só se divertir e rir da gente. – falou João sem dar muita importância.

- Mamãe, eu posso cantar com eles? – falou Albert empolgado.

Todos riram.

- Acho melhor não, meu filho.

- Por quê? – perguntou ele um pouco decepcionado.

- Digamos que... Não são pessoas do bem... Podem ser do mal. – ela sabia que isso bastava para o menino não se aproximar destas pessoas.

Ele não continuou. Para ele o fato de serem do mal bastava.

Os dois conversavam muito e quando Tamí falava que alguma pessoa não era do bem o menino não se aproximava. Eles tinham uma relação de cumplicidade e afetuosa e o menino nunca contrariava a mãe... Sempre dava muita atenção a tudo que ela dizia. 

Tamí banhou-se antes de dormir e enquanto se preparava para deitar em sua cama, Albert perguntou:

- Mamãe, o cavalo come alguma coisa além de pasto?

- Ele precisa beber muita água, por isso é melhor deixá-lo sempre próximo ao córrego. Acho que pode comer alguma ração específica... Mas não sei se temos dinheiro para isso.

- Ouro... Eu gostei muito do nome. Meus amigos vão sentir inveja do meu cavalo. – disse ele sorrindo.

Tamí ajoelhou-se ao lado da cama dele e lhe deu um beijo:

- Não quero que seja um menino egoísta, Albert. Se seus amigos não tem um cavalo, você pode lhes emprestar o seu para darem uma volta por aí. Pode fazer isso?

- Posso. – disse ele.

- Me prometa que será um menino bom, Albert. E que sempre tentará ajudar os outros e assim o fará quando estiver ao seu alcance. Sei que somos pobres e temos pouco, mas se podemos dividir este pouco com alguém, assim o faremos. 

- Eu prometo mamãe. Mas por que está me pedindo isso?

- Eu quero que você tenha um lugar no coração das pessoas... Que se preocupem com você e se um dia você precisar de ajuda, o ajudem. Pessoas más e egoístas não são bem quistas e vivem sozinhas. As pessoas do bem nunca são esquecidas, como seus avós, Albert e Alberina. São sempre lembrados por tudo que faziam de bem pelos outros... A memória deles vive em quase todas as pessoas desta ilha. Pessoas más quando morrem simplesmente morrem... Ninguém nem lembra que elas existiram.

- Por que as pessoas boas precisam morrer, mamãe?

- Não são somente as pessoas boas que morrem... As más também morrem. Por quê? Acho que Deus inventou assim.

- Mamãe, hoje um dos meus amigos que falou uma coisa ruim... Me disse que Rotsey quer matar você.

- Lhe disseram isso? – perguntou ela levantando nervosa.

- Sim.

- Não dê importância ao que ele lhe disse. Ele não sabe o que fala.

- Mas e se Rotsey matar você?

- Não se preocupe, Albert. Rotsey não irá me matar... Ninguém irá me matar. Estarei viva enquanto você precisar de mim, meu bem.

- Promete que nunca vai me deixar?

- Eu prometo, meu filho.

- Se Rotsey fizesse algo contra você eu não sei o que eu faria com ele. – falou o menino.

- Não fale assim, Albert. Não quero que você sinta coisas ruins, principalmente raiva. Rotsey nunca me fará mal... – Não tanto quanto eu fiz a ele, pensou ela.

Ela deitou ao lado do menino, abraçando-o com força e segurança até ele adormecer. Ela sabia que certamente o menino que havia falado aquilo a Albert tinha ouvido aquele comentário em algum lugar. Um fundo de verdade havia. Certamente Rotsey estava espalhando pelo povoado que queria matá-la. Tamí era uma mulher forte, sabia disso... Mas aquele comentário que atingia seu filho lhe deu medo. A maior forma de ferí-la era através do menino. Qualquer coisa que ele tentasse contra ela sabia que poderia se defender... Mas e o menino? Albert era um menino de coração puro e ingênuo. Ela precisava redobrar sua atenção com Rotsey, principalmente em torno de Albert. Sabia também que a batalha entre ela e Rotsey era inevitável... Teriam que se enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Desde o ocorrido a vingança era o que ele mais queria. Ela admitia sua culpa com relação ao que havia feito... Mas gostaria que um dia ele admitisse também a sua. Mas sabia que este dia estava longe de chegar.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo