Capítulo I - Jeremias 29.11

A luz acinzentada do Sheol invadiu o quarto de Yekun, tocando os olhos fechados do casal que dormiam entrelaçados. Naiara tremeu levemente e, como por instinto, ele puxou sobre eles o cobertor grosso, a envolvendo com sua asa esquerda, fazendo seu corpo se encolher ainda mais em busca de aconchego, encostando o nariz gelado em seu peito nu e despertando o sorriso preguiçoso do caído. Se enroscaram um no outro, fundindo-se em braços e pernas. Não haviam dividido nenhum outro tipo de intimidade, estavam esperando o tempo se encarregar de dizer o momento certo, mas ainda assim o pouco que conseguiram conquistar fazia tudo valer a pena. Viviam em uma montanha russa de sentimentos, saciados pela presença e o toque um do outro. Ele, faminto por muito mais. Ela, incerta de seu querer e desejo.

Sabia que todos esperavam que enfim ela se encontrasse, saciasse os desejos da menina de dezoito anos e parasse de lutar contra o que o destino escolheu, mas Naiara seguia repleta de dúvidas e incertezas. Todo o seu corpo sentia que estar ao lado de Yekun era o certo, mas havia uma pequena parte de seu coração que ainda buscava morada em Agares, e essa parte doía demais.

— Bom dia, vida — disse baixo apertando-a um pouco mais contra o seu corpo, permitindo sentir sua amada moldando-se a ele.

Ela estava em seus braços, sobre sua cama, protegida em suas asas. Yekun vivia o cenário perfeito e, ainda que seu coração sentisse o conflito batalhando dentro dela, acreditava que seria capaz de tirar todas as lembranças de Agares da mente e do coração de Naiara. Para ele, era somente uma questão de tempo.

— Bom dia, vida — ela respondeu e pela primeira vez tentou usar o mesmo apelido, mas ficou estranho em seus lábios.

Ele, no entanto, não percebeu e as palavras despertaram em Yekun um sorriso que parecia ser capaz de machucar suas bochechas.

— Poderia morrer nesse exato momento e ainda assim seria o dia mais feliz de toda a minha existência — declarou o caído, inebriado de amor.

— Não brinca com isso! — Naiara levantou-se e o olhou séria. — Não fale nunca mais em morrer, está me ouvindo?

Sabia que não o amava, não com a mesma intensidade que era amada, mas pensar em perder mais alguém a enlouquecia. Não poderia lidar com a morte, nunca mais queria sentir o gosto da despedida. Perder seu amigo, logo em seguida a mãe, levou muito da menina que um dia foi. Ver Gabriel e Agares irem embora e escolherem estar ao lado de outros seres a feriu muito mais do que conseguiria dizer.

Brincar com a morte jamais seria algo válido para ela.

— Não sei se fico feliz com essa manifestação de amor ou se enfurecido comigo, por causar esse V entre seus olhos — repreendeu-se de imediato, deliciando-se com o que, para ele, era uma demonstração de amor.

— Fique feliz — ela começou a dizer, segurando o rosto dele em suas mãos, enquanto seu corpo se moldava sobre o dele novamente, deixando beijos estalados sobre sua face. — Isso quer dizer que não posso imaginar um mundo sem você. Não posso mais perder ninguém, Yekun, nem mesmo de brincadeira.

— Que bom, porque não vou a lugar algum sem você. — As mãos de Yekun deslizavam lentamente sobre a pele macia e exposta da garota, como se pedissem permissão para o toque. Permissão que Naiara não via sentido algum em negar, já que seu corpo reagia de forma estranha ao toque dele, parecendo implorar pela carícia.

Por mais que tentasse entender o que acontecia quando Yekun a tocava, não encontrava respostas. Seu corpo reagia de imediato ao toque, despertando desejos que somente compartilhou com Agares, avivando um misto de sensações. Sentia-se traidora e fraca por não conseguir se conter e, ao mesmo tempo, viva a cada intimidade compartilhada com ele.

— Então está tudo resolvido — ela disse voltando a sorrir, entregando-se ainda mais ao momento. O deslizar despertava seu desejo, mas não somente de uma forma carnal que a enlouquecia, mas como se todos os seus sentidos, tudo o que existia dentro dela, precisasse ser tocada por ele para se manter inteira, viva, real. Ainda que sua razão estivesse conectada ao que viveu com Agares, não conseguia deter o querer de sua alma.

— Meu coração clama por você — declarou no momento em que os lábios dela deixaram os seus e percorriam o caminho do pescoço gelado, querendo conhecer o corpo daquele que foi destinado à ela.

— Acreditei que isso jamais seria possível... — Os dedos finos da menina se perderam entre as penas pretas de suas asas, fazendo-o gemer. — Mas meu coração também clama por você.

Estavam deitados, em meio a trocas de carinho, beijos demorados, juras de amor eterno e planos para um futuro infinito, quando ouviram um grito de dor que ecoou em todos os cantos da casa. Antes mesmo de se dar conta do que fazia, Naiara surgiu ao lado da cama de sua mãe, levando as mãos em seus ombros e a envolvendo em um abraço apertado, exatamente como a mãe fazia quando ela era pequena e acordava chorando por causa de algum sonho ruim.

Amarantha estava quebrada, não conseguia juntar seus pedaços e, desde que Heylel foi levado, sobrevivia à base de chá de ervas, passeando entre pesadelos e momentos de extrema solidão.

— Mãe — dizia baixinho em seu ouvido —, foi só um sonho ruim, mãe, vai passar, calma... vai passar.

Amarantha devolvia o aperto com a mesma intensidade, agarrava-se à filha, como se ela fosse sua tábua de salvação ou o único elo para lhe manter sã, deixando Naiara ainda mais desesperada para que suas conversas com Deus fossem ouvidas e que, de alguma maneira, Ele achasse que o castigo já poderia chegar ao fim e devolver Heylel.

— Desculpa. — Conseguiu dizer à filha em um sussurro, acreditando que deveria ser forte, mas sabendo que não existia resquício de força dentro dela.

Naiara afastou-se o suficiente para olhar para a mãe, notando o quão abatida estava, as olheiras distorciam sua beleza, fazendo com que a face envelhecesse cem anos. O sorriso lhe tomou os lábios, encarando a mãe com carinho.

— Não se desculpe. Vai ficar tudo bem, mãe, sinto aqui... — Levou a mão da mãe ao seu coração e sorriu. — Que ele está bem, sei que meu pai está bem.

Aquela era a única certeza que a menina tinha em meio à toda loucura que a cercava, as indecisões de seu coração, a luta entre os mundos, saber que seu nascimento era considerado um ultraje e que sua vida gerava discórdia e a rebelião de muitos. Sabia que seu pai estava bem e que, no momento certo, estaria de volta. Não entendia os caminhos que Deus escolhia, mas aceitava.

— Eu só quero Heylel aqui, minha filha, quero seu pai ao meu lado... Não consigo sem ele, Naiara, não consigo. — Agarrou-se à filha novamente, permitindo-se inverter o papel.

O soluço rompeu em seu peito e Amarantha deixou o corpo cair sobre a cama. Parados na porta, estavam todos os outros moradores da casa. Azazyel trincou o maxilar e saiu do quarto sob o olhar de Mohini, estava furioso com Miguel por não se conter e trazer o castigo de Deus sobre Heylel, sentia-se impotente diante da cena que se apresentava aos seus olhos. Ouvir os gritos de Amarantha e não poder fazer nada para ajudar, ia contra sua natureza. Para muitos, ele era somente um sanguinário que colocava seu querer acima de todas as coisas, mas para os seus, Azazyel era fiel.

Yekun tinha os olhos em Naiara, esperando qualquer pedido dela, mas ela só o olhava sem saber o que fazer ou falar para acalmar o coração de sua mãe, entendia que suas certezas não eram compartilhadas.

— Com licença. — O som gracioso ecoou pelo quarto.

A voz melodiosa da pequena Élida invadiu o ambiente. Ela passou pelas pessoas que estavam agrupadas na porta, batendo o pequeno corpo neles e equilibrando um copo com um líquido de cor violeta dentro.

Subiu na cama e engatinhou até Amarantha que, por alguns segundos levantou a cabeça, encontrando o olhar de compaixão de Élida, para depois jogar-se contra os travesseiros novamente.

— Amarantha, sente-se e tome isso. — O doce tom atingiu a todos.

Era estranho ver como uma menina tão pequena conseguia ter tanta autoridade em sua voz, e ver pessoas poderosas como Amarantha se render às ordens dadas.

— O que é isso? — Amarantha perguntou entre um soluço e outro, cansada de ser uma morta viva sobre a cama.

— Passiflora e lavanda — disse a menina sem rodeios, mas sua voz estava carregada de extrema doçura, era nítido o quanto elas se amavam.

Mohini permanecia no mesmo lugar, ainda parada na porta, somente observando a cena, como se esperasse ser convocada para algo.

As duas irmãs se olhavam, presas em uma conversa pessoal, mesmo sem nenhuma palavra ser dita por ambas.

— Não quero mais dormir, Élida — implorou em um resmungo baixo.

— Não irá, está fraco. Mas não pode continuar assim, irmã. Tome. — Com cuidado aproximou o copo dos lábios de Amarantha.

E assim ela fez.

A princípio bebericando em pequenos goles, para então, virar todo o líquido de uma só vez. As pálpebras começaram a se fechar e Amarantha deitou na cama, sentindo-se ser levada pelos braços de Morpheus.

— O que houve? — Naiara olhava para a mãe preocupada.

Sabia do poder que existia nas ervas de Élida, mas ver a mãe apagando completamente em questão de segundos, a desestabilizou.

— Nada, tolinha. — Élida respondeu, pulando da cama — Ela só dormiu.

Falou enquanto saía do quarto sem ligar para os questionamentos que Naiara ainda pretendia fazer.

— Mas disse a ela que era fraquinho e que não dormiria. — Encarava a menina incrédula.

— Bem, digo a você que nasceu para ser de Agares. — Deu de ombros como se a frase dita fosse auto explicativa. Rolou os olhos quando viu a reação de Naiara. — Mas você não nasceu para ser dele menina, então eu minto. Entendeu?

Não, ela não tinha entendido. Estava nítido em sua face que não tinha ideia do que se tratava. Lembrou-se do dia em que a pequena, que aos seus olhos naquela ocasião, parecia uma fadinha meiga e delicada, afirmou não poder mentir. Naiara balançou a cabeça em negativa, não acreditando em como foi fácil enganá-la.

— Ah, pela deusa, às vezes fico preocupada em saber que o destino do mundo está em suas mãos, Naiara — respondeu a pequena enraivecida.

Há tempos a paciência de Élida com Naiara estava limitada. Em sua cabeça, a Herdeira não deveria ter resquícios de imaturidade humana, muito menos ficar priorizando seus relacionamentos conturbados. Naiara não se posicionou como a filha do primeiro caído e muito menos levava a sério ser a filha da poderosa Amarantha, e isso frustrava a pequena. Mas era notório que piorava nos últimos dias, algo a incomodava muito mais, somente não sabiam o quê.

— Élida, nunca tentaram matar você? — Naiara perguntou enquanto ajeitava a mãe, já adormecida, e a cobria, deixando claro o quanto as atitudes de Élida a irritavam.

— Já sim.... — começou a dizer, passando pela porta, tendo a irmã em seu encalço. — Mas sem sucesso algum, como pode ver.

Em segundos o quarto estava vazio, somente Naiara e Yekun permaneceram. O desgosto latente e sem disfarce no rosto da Herdeira e a preocupação exagerada do seu destinado.

— Ela me irrita muito. — Naiara dizia, parada ao lado da cama da mãe, como se conseguisse velar o seus sonhos.

Yekun riu baixinho e aproximou-se, a envolvendo em seus braços.

— Vida, acredito que ela saiba o quanto te irrita — disse ao ouvido da amada, envolvendo-a em uma de suas asas.

Tentou fazer com que ela se sentisse acolhida, protegida sob seus cuidados, mas Naiara desvencilhou-se, indo para mais perto da mãe. Gostava da presença de Yekun e não entendia como o corpo reagia a ele sem nem ao menos ela notar, mas não estava acostumada com a maneira que ele orbitava à sua volta o tempo todo, sufocando-a ao ponto de não conseguir colocar em ordem os seus pensamentos.

Agares sempre lhe deu espaço, deixou com que tomasse suas próprias decisões e, ainda que estivesse por perto para protegê-la, incentivava Naiara a tentar sozinha, ir além do que as pessoas acreditavam que ela conseguiria ir. Sentia falta não somente de tê-lo por perto, mas de pertencer a ele.

Respirou fundo tentando afastar o rumo que seus pensamentos a levavam. As coisas estavam como deveriam ser, ela com quem o destino lhe reservou e ele com quem escolheu estar.

— Será que se eu falar “eu não acredito em fadas” três vezes, funciona com ela também? — Soltou as palavras tentando fugir de si mesma, parecia realmente pensar na possibilidade de se desfazer da pequena bruxa somente com um bater de palmas e a ideia parecia lhe agradar e muito.

Yekun a olhava de forma interrogativa, sem ter a mínima ideia do que sua amada dizia. Sabia que Élida já havia passado por muitas coisas e jamais sequer sofreu um arranhão, mesmo entrando em combate contra bruxas e demônios, não via como um simples bater de palmas poderia matá-la.

— Como no Peter Pan. — Ela começou a explicar quando notou a confusão estampada em sua face.  — Quando falam três vezes que não acreditam em fadas, uma delas morre em algum lugar. Poderia funcionar com ela também.

Ele explodiu em risada, levando as mãos à boca, tentando conter o barulho, dando-se conta de que Amarantha dormia no mesmo quarto.

— Desculpa, mas não acredito que isso funcionará com ela. — Yekun ainda encontrava dificuldade em conter o riso, jamais ouviu dizer algo parecido.

— É uma pena. — Ela realmente sentia muito.

Agares e Gabriela estavam cada dia mais próximos, treinavam juntos, alimentavam-se juntos — mesmo não havendo a necessidade física, ela fazia questão de sentar à mesa e tomar o café da manhã ao lado dele. De uma maneira única, ela o servia, enquanto ele a olhava maravilhado. Jamais havia sido cuidado por alguém, e ela fazia questão de se lembrar de cada detalhe. Sabia dos gostos e do querer dele, antes mesmo que ele lhe dissesse, cada atitude dela, alegraria o coração do demônio.

Se ele tivesse um.

Seus pensamentos ganhavam vida, imaginando um cenário observado tantas vezes por ele na terra que o sol aquece, uma casa com gramado baixo, balanço de pneu em uma árvore, um menino loiro e cabeludo correndo e seu riso ecoando por todos os lugares, enchendo o ambiente de vida, ele abraçado à uma menina de cabelos pretos e lisos, com olhos intensos e escuro como a noite sem luar.

Balançou a cabeça querendo afastar a cena que tantas vezes projetou.

Levantou da mesa, dando por encerrado o café da manhã e puxou Gabriela pela mão, saindo do lugar. Precisava distrair seus pensamentos e foram ao encontro de Diego. Caminhavam de mãos dadas, indo direto para a convocação daquela manhã, mas foram surpreendidos por asas imensas e totalmente abertas, materializando-se bem na frente deles e impedindo a sua passagem, obrigando-os a parar de súbito.

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