7 - Nick

A placa indicando os limites de Miraculous Clearing já havia ficado para trás a alguns quilômetros, mas agora que ela estava tão perto, já não sabia se seguia em frente ou desistia. Atrás da montanha que ela agora subia em sua moto através da rodovia estadual, estava a cidade que um dia foi sua casa, e tinha sido obrigada a abandonar.

Há oito anos, quando ainda era apenas uma criança de dez anos, ela foi levada da cidade por sua mãe, que decidiu separar-se de seu pai, para aceitar a proposta de ser curadora de um famoso museu em Londres. Não podia culpar seus pais pela separação, pois ambos eram apaixonados pelas respectivas profissões, mas nunca os perdoou por fazê-la escolher com quem ficaria.

Ela amava muito os dois, desde que a adotaram, e ela optou por ficar com a mãe, por julgar que o pai seria mais forte e capaz de superar.

Parando no topo da montanha, pôde contemplar a cidade, iluminada pelas lâmpadas elétricas e por alguns focos de incêndio. Ainda era uma bela cidade, mesmo em meio ao caos que se instalou desde que o sol decidiu não aparecer essa manhã.

Há três anos, quando os sonhos começaram, ela não fazia ideia de que se tornariam reais. Tudo era um grande déjà vu, desde que passou da placa informando que entrou nos limites da cidade, até aquele quadro bizarro e lindo da cidade a crepitar em chamas e imersa nas trevas de um dia sem sol.

A princípio, pensou estar louca e chegou até a fazer algumas consultas com psicólogos, mas as visões aumentaram e passaram a acontecer mesmo quando acordada, então quando previu o acidente que vitimou a mãe horas antes de acontecer, teve a confirmação de que era real.

No início, ela chegou a culpar-se pela morte da mãe. Achava que se tivesse se concentrado e acreditado em seus dons, poderia ter evitado o acidente, mas com o passar do tempo evoluiu em conhecimento e a cada manhã, acordava sabendo mais e mais coisas sobre tudo e todos, e aprendeu que nem tudo pode ser mudado. Existem forças maiores que controlam os acontecimentos, mas essas forças deixariam a terra em breve, e as suas visões a estavam preparando para esse momento.

As visões geralmente apareciam pouco tempo antes de acontecerem de fato, mas os sonhos recorrentes sobre Miraculous Clearing tinham dia e hora para se cumprirem e o momento da chegada dela também. Porém não tinham instrução nenhuma do que ela devia fazer ali, só que devia estar lá naquele dia e hora exata.

— Vamos lá Nick — disse para si mesma, querendo encorajar-se a seguir em frente. —, nem sempre dá pra saber o que nos espera, mesmo sendo algum tipo de vidente.

Colocando o capacete e subindo em sua moto, ela seguiu rumo à cidade, tendo em mente os lugares que deveria ir, e as pessoas que precisava encontrar.

Eram sete horas da manhã e algumas famílias começavam a deixar a cidade em seus carros, rumo a qualquer lugar longe dessa loucura. O que eles não sabiam, é que não tinham para onde fugir. Ao mínimo sinal de crise, o ser humano enlouquece, buscando a autopreservação e não precisava de poderes psíquicos para saber que a situação só ia piorar.

Ela seguiu na contramão do fluxo de carros, sob o olhar curioso de quem estava dentro deles, mas aquele êxodo não era problema dela. Ela precisava encontrar algumas pessoas e estar em alguns lugares, mesmo sem saber o que tinha que fazer exatamente.

Nick continuou seu caminho. Em sua cabeça a rota parecia estar traçada como em um G.P.S., então ela apenas seguiu a intuição, rua por rua até passar em frente a um grande prédio com uma portaria abandonada pelos seguranças, mas com câmeras de vigilância ativas e com sensor de movimento, que mesmo sem motivos para evitar, preferiu fazê-lo, então seguiu pela rua e parou a sua motocicleta a uma quadra dali.

Voltando a pé, ela se esgueirou até os fundos do prédio e com facilidade pulou o muro e seguiu nos pontos cegos das câmeras, com a destreza de quem parecia conhecer bem o local. Por uma porta lateral ela acessou uma espécie de almoxarifado, que não tinha funcionário algum e passando por mais uma porta, entrou no laboratório.

O lugar era grande e bem iluminado, mas também estava vazio. Ela atravessou os corredores cheios de uniformes e crachás espalhados pelo chão, ainda evitando as câmeras, até chegar a uma sala específica, e entrar.

Na sala, viu mais alguns uniformes pelo chão, e vasculhando o bolso de um deles, pegou um smartphone, que desbloqueou facilmente, e selecionando um contato escreveu uma mensagem, a enviou e colocou o aparelho novamente onde o pegou, mas enquanto fazia isso, olhou diretamente para uma câmera que estava virada exatamente para onde estava e não pôde ser evitada, ou ela não quis evitar. Depois de completar a tarefa, Nick fez todo o caminho de volta até sua moto.

Atravessando a cidade, mais um déjà vu a fez parar. Estava em frente a uma casa grande e em sua mente se materializou sua próxima ação. Encostando a motocicleta, caminhou até o fundo da construção e subiu em uma árvore que crescia até a altura de uma janela sem cortinas. Olhando para dentro, ela pode ver um quarto típico de adolescente, com livros, discos, uma cama onde dormia um jovem, e uma mesa de cabeceira, com um óculos e um celular, tudo como ela já havia visto antes.

— Gabriel, acorde!— ela sussurrou, e mesmo àquela distância, o jovem pareceu escutar, pois acordou de sobressalto, mas sem dizer mais nada, ela desceu da árvore e seguiu novamente seu caminho.

Agora ela deixou a motocicleta no jardim central da cidade, e atravessando a rua abriu a porta da garagem de uma casa que parecia ter sido abandonada. Em um painel na parede ela pegou as chaves que pela logomarca que tinha no chaveiro, eram do Chevrolet que estava lá, mas antes de entrar no veículo, abriu uma gaveta e pegou uma folha de papel e uma caneta pincel vermelha, para só então entrar no veículo, o ligar e sair novamente para as ruas.

Seguiu agora de carro por algumas quadras e estacionou. À sua frente, sem perceber sua presença, homens mascarados invadiram o quintal de uma casa, e começaram a pichar as paredes com ofensas em tinta vermelha. Após terminarem as pichações, os vândalos começaram a retirar pedras de um saco que um deles carregava, e a arremessá-las contra os vidros da casa.

Rapidamente, ela abriu o porta-luvas e pegando o papel escreveu algo com o pincel vermelho, e saiu do carro seguindo para os fundos da casa, onde viu que os vândalos apedrejavam também uma janela do segundo andar e que, quando cessaram o ataque, saíram apressados, então ela pegou uma pedra das que eles deixaram para trás, e embrulhando-a no papel que havia escrito a frase minutos antes, a arremessou também contra a vidraça do mesmo quarto.

— Só mais uma parada agora, e poderei descansar um pouco. — disse, olhando seu rosto no espelho, visivelmente cansado — Estou mesmo precisando!

Seguindo para o centro da cidade, passou pela Igreja da Consolação Divina, e pensou na ironia que aquele nome representava.

— O mundo ruindo, e Deus está sabe-se lá onde e fazendo sabe-se lá o que.

Contornando a praça, seguiu para a rua de trás, onde estacionou o carro e retirando a chave da ignição, a guardou no porta-luvas e abandonou o veículo, seguindo a pé de volta para o Jardim Central, onde deixou a sua moto.

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