Cpítulo 1

 A festa

        A canção parabéns a você ecoava em uníssono por todos os arredores do vilarejo. Um coral formado de última hora por dezenas de crianças homenageava uma centenária senhora de cabelos brancos, eterno sorriso nos lábios, portadora de tamanha lucidez que em muitos causava certa inveja benigna e uma imensa aura toda colorida que transmitia bondade e compreensão. Era este o dia e a vez de Imaculada da Silva.

        Sentada diante do enorme bolo de chocolate, cuidado e caprichosamente preparado pelas mulheres da aldeia, com ume exagerada vela branca no seu centro a representar os longos cem anos de vida, imaginava que este parecia pedir para logo ser devorado e assim o seria, não fosse a sua paciência e calma em aguardar pelo término da canção. Seus olhos vivos e espertos observavam a expressão de cada um dos participantes, principalmente das crianças que aos poucos vinham se acotovelar junto dela.

        Sorria feliz enquanto acariciava os cabelinhos dourados da pequena Rosinha, a mais nova habitante do lugar, curtindo o seu segundo dia de vida. No colo da anciã, a galeguinha arregalava os olhos e esboçava um sorriso tenro, como a anunciar as quarenta e oito horas de vida que tinha e a agradecer o afago recebido. Nasceu quase na mesma data natalícia da nona e esta começava a mostrar todo o seu afeto pela sua mais nova neta ou bisneta, ou tataraneta, ou seja, lá o que for, pois na verdade, Imaculada considerava a todos como seus próprios filhos.

        Não que as outras lhe fossem menos queridas. Ela amava, cuidava, orientava, contava histórias, instruía e ajudava em tudo que lhe era possível, visando sempre uma melhor formação para aquela população miúda da aldeia, sem discriminação ou preferência. Mas mesmo sem entender o porquê, aquela galeguinha parecia-lhe representar algo mais. Algo que ela, em vida, sabia ser impossível testemunhar e acompanhar, mas que certamente aconteceria.

A canção seguiu-se o pic-pic, o urra-urra, os abraços e carinhos de cada um dos moradores demonstrando o profundo respeito e admiração que sentiam por ela. O forte e grande coração da centenária  vovó ficava ainda maior e sem dúvidas, naquele momento seria capaz de abrigar a todas as pessoas do mundo, tantos seres que ela conheceu e que já se foram e tantos ainda que lhe permanecesse nas lembranças, nos sonhos, no dia-a-dia e na alma. Esta, maior que todo o universo, era incapaz de não conter seus amigos e os supostos inimigos que sabia não ter, mas que, como os primeiros, também tombaram ao longo da sua existência nos campos de batalha, nas lutas políticas, nas desavenças cotidianas e nas enfermidades.

        A criançada, por sua vez, ditava em alto e bom som seu grito de guerra; - corta o bolo, corta o bolo, tudo acompanhado das peraltices e correrias inerentes à idade. Também eram ouvidas as repreensões dos pais e as reclamações dos mais idosos, fatos que divertiam os adolescentes e a própria aniversariante. Esta resolveu atender aos aclamados anseios e chamou a criançada a se posicionar em seu redor. Colocou o cesto de vime que servia de cama para a galeguinha bem na sua frente e colocou ordem na casa dizendo.

Primeiro vou atender as crianças.

Os marmanjos ficam para depois.

 Isso se sobrar algum pedaço.

A calma Imaculada olhou de um lado para outro como a exercer uma visão panorâmica e fazendo inveja a multa gente bem mais jovem, encheu os pulmões e exagerou no assopro para apagar a chama da vela.

Em seguida passou a cortar e distribuir o tão cobiçado bolo em fatias bem finas para que todos pudessem comer ao menos um pedaço. Mas marota, disfarçadamente engrossava a fatia dos pequenos colocando duas delas em cada guardanapo que servia de prato improvisado.

Enfim, o disputado bolo de chocolate era algo que tinham de diferente para aquela importantíssima data e querer logo devorá-lo era uma atitude bem compreensível, principalmente ao se imaginar que tal vontade não era um atributo essencialmente das crianças. Desde cedo a vila já vinha se alimentando de peixes com aipim, a sempre e mesma ração costumeira e diária do almoço e do jantar nos dias de pouca fartura e, em dias melhores, certas acompanhadas de uma sobremesa à base de frutos nativos. Mas naquele dia tinham um bolo de chocolate e isto enchia os olhos e o paladar de todos, deixando-os com aquela enorme ansiedade e a boca cheia d'água. Alguém apareceu com um balde de sorvete de creme que adicionado ao bolo transformou-o numa e delícia ainda melhor. Que assim digam as crianças com as bocas todas lambuzadas

        Os aldeões capricharam na decoraç60 da festa. Com imaginação e improviso, nada deixaram faltar dos quesitos usados em qualquer festa de classe média ou alta. Lá estavam as bandeirolas feitas com folhas coloridas de revistas catadas pela cidade e agora distribuídas entre árvores, cercas e casas. Numa área gramada no centro do vilarejo que servia ao lazer das crianças durante o dia e dos jovens que nela namoravam durante a noite, armaram uma enorme mesa com pranchas de madeira sobre cavaletes e coberta com uma toalha alvíssima, feita de sacos de farinha pelas mulheres da comunidade. Sobre ela colocaram enfeites e decorações de flores silvestres colhidas pelas crianças menores, enquanto as maiores, artesanalmente as transformavam em belos arranjos que emprestavam um toque alegre e de Muitas cores ao ambiente, harmonizando-o com a natureza e a beleza eterna do lugar.

        Um "FELIZ ANIVERSÁRIO" escrito com ramos secos de árvores e pintadas com cal branca e purpurina fincava-se bem defronte a mesa, enquanto um fotógrafo amador, com uma câmera multo simples emprestada por um seu conhecido da cidade, com relativa competência registrava todas as cenas que a sua sensibilidade pedia. Cenas estas de que sabia lhe valerem um esforço extra na pesca e na venda desse pescado para poder revelá-las e reproduzi-las em papel.

        Vez por outra, pessoas de lugares e vilarejos próximos também vinham cumprimentá-la. Afinal, sua fama de benfeitora extravasava e multo os limites do mundo, quanto mais naquela vila. Gente de todas as idades para lá se dirigiam a abraçá-la, rir com ela e ouvir seus preciosos conselhos. Traziam-lhe pequenas lembranças como panos de prato, roupas em bom estado e as vezes até novas, frutas, alguns doces, geralmente caseiros e objetos diversos feitos por eles mesmos ou comprados à custa de uma economia extra, especialmente dirigida para esse fim. A tudo e a todos a velha senhora agradecia levando os objetos junto ao peito e aumentando ainda mais o seu vasto sorriso

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        Até o prefeito da cidade em dado momento por lá apareceu. Acompanhado de alguns vereadores e sem trazer a família, após abraçá-la e cumprimentá-la presenteou-a com uma imitação de anel em esmeralda, fazendo com isso inchar a veia vaidosa da alegre Imaculada. Em seguida subiu num caixote e passou a discursar para o povo como se estivesse em campanha. Enfatizava e enaltecia as qualidades da velha obreira, assim como a sua generosidade com tanta ênfase e eloquência que não raro faziam os olhos da anciã despejar cascatas de lágrimas, formando rios pelas rugas do rosto a despejarem-se no mar da alva blusa que lhe cobria o colo. Todos ouviam atentos e calados as palavras do prefeito, exceto as crianças que aproveitavam o descuido dos adultos e devoravam mais fatias do bolo com sorvete.

        No final o prefeito foi quase que “ovacionado”. Quase, porque ninguém queria mesmo estragar os ovos, um alimento muito importante para eles. Na aldeia o desgosto para com os políticos que dela só se lembravam no período das eleições beirava a totalidade. Mas simplórios e educados, não deixaram de aplaudi-lo calorosamente. Não que ele merecesse ou mesmo despertasse alguma esperança de dias melhores para aquele povo, mas pelo efeito que causava no coração de Imaculada, este sim, merecedor de todo o respeito e aplausos do mundo. Quanto ao prefeito, o pensamento geral era quase um só; que terminasse logo e fosse embora para que todos pudessem curtir em paz a festa da nona.

        Durante a oratória, um grupo de rebeldes que em qualquer regime totalitário seria taxado de subversivo, formado pela ala mais jovem da aldeia, não se conformava com a indiferença e o total esquecimento que a administração pública destinava àquele e também a outros povoados iguais e com os mesmos problemas. Um deles, o Marcelo, revoltava-se ao lembrar-se da negativa do prefeito quando lhe solicitou uma ambulância para transportar Imaculada até o pronto-socorro local em uma das suas raras enfermidades. Falava mal e esbravejava quando na mente lhe voltava as cenas do referido transporte, feito pelo rio em uma maca improvisada sobre o barco do seu pai, um dos pescadores, até a cidade. Lembrava-se também das inúmeras vezes que os representantes comunitários de diversos povoados solicitavam melhores condições na estradinha que levava até a cidade a fim de melhor transportarem seus produtos, com mais segurança e economia. Nos pedidos de saneamento básico que lhes carecia e faziam adoecer as crianças. No posto de puericultura. Na água encanada, na iluminação pública, etc.etc. Mas tudo o que conseguiam era a cobrança, cada vez mais absurda, dos tributos municipais e taxas de serviços que nunca tiveram. A frase do Marcelo para o Renato, assim com o a resposta deste, resumia todo o pensamento do grupo.

        - A gente devia é jogar ele para as piranhas,

        - Não faz isso não. As piranhas merecem coisa melhor e uma delas é a de não se poluírem com as porcarias que possam ser jogadas na água.

        Sem que nenhum dos vereadores abrisse a boca, a não ser para bocejar externando o sono e a chatice que sentiam do discurso, após o mesmo despediram-se genericamente de todos e partiram num elegante automóvel do executivo. No trajeto de volta para a cidade o prefeito vomitava palavrões e excomungava as condições precárias da estrada a cada sacudidela e derrapagem que o luxuoso veículo fazia. Mas em nenhum momento pensou em melhorá-la, fato que atenderia a uma das antigas esperanças dos munícipes locais.

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