A mão flamejante 006° - 007°

006°

Lucia Mircalla Karnstein era a pessoa que Alexandra menos suportava na face da terra; ambas eram melhores amigas desde o jardim de infância.

Tinha uma pele bem branca, cabelos platinados, claros olhos azuis e feições belas e delicadas. Como ninguém é perfeito tinha orelhas grandes e pontudas, dentes um pouco desalinhados e por falta de outra palavra seus caninos eram enormes e afiados.

Ela era muito sensível sobre isso então sempre usava um penteado que cobria suas orelhas e tapava a boca com a mão quando falava.

Quando pequena, os meninos a chamavam de vampira, gritavam e saiam correndo. Algumas vezes ela os perseguia de raiva, e fingia que lavava na brincadeira, mas sempre teve certa magoa.

Ela morava na maior casa da alameda das laranjeiras no alto de um morro com vista para o mar, na outra ponta do quarteirão com o cruzamento ao lado da casa de Allix. Era uma grande casa de plantação com três andares da época em que a região era repleta de fazendas de cana de açúcar, antes de a economia local ser substituída por turismo e jogatina.

O lugar costumava ser tranquilo e nos últimos meses estava assustadoramente silencioso. Lucinha ficou apavorada quando acordou ouvindo o que parecia ser dúzias de pessoas pela casa.

Alarmada saiu para o corredor ainda de pijamas e viu soldados andando ocupados carregando coisas por toda a parte. Empurravam moveis e puxavam tapetes.

“Lucinha minha querida.” Ela escutou a voz do seu e amoroso pai de cabelos acinzentados e um sorriso bondoso se virou. Os últimos tempos foram duros para ele e estava tão abatido que até parecia ser seu avô. ”Lembra que eu disse que o exército Arcano podia querer montar uma base provisória aqui em casa?”

“Estou vendo que vieram.” Lucinha olhou a volta assustada, após passar alguns meses em silencio e solidão àquilo era um pouco perturbador. “Por onde vieram?”

“Pelo mar.” Ele passou a mão na cabeça dela. “Daqui a pouco e sua mãe e eu vamos até o porto falar com o tenente comandante.”

“Posso ir junto?” Ela franziu a testa enquanto nervosamente mexia nos dedos.

“Não, minha querida. Alguém precisa ficar em casa.” Ele apertou a bochecha dela.

“Eu? Em uma casa cheia de soldados?” Aflita Lucinha observou como desmontavam aquele lugar em que ela cresceu e tanto foi instruída para não mexer em nada, pois eram coisas históricas da família.

Ver quadros, mesas, poltronas, tapetes e objetos de decoração que por toda sua vida permaneceram no mesmo lugar lhe deu uma aflição e um aperto no estomago.

A Mansão Karnstein estava se transformando em um quartel provisório para o exercito Arcano do governo mundial, os temidos caçadores de bruxa.

Lucinha fora avisada daquilo algumas semanas atrás e acompanhou as negociações através de seu pai que sempre compartilhava o progresso. Sabia que era uma coisa boa para todos, tanto ela, sua família, toda a cidade e até mesmo o país inteiro. Mesmo assim, no fundo não queria que fosse verdade. Sentia no coração que aquele era o fim da sua casa.

O sr. Alberto Karnstein voltou acompanhado de uma oficial. Lucinha nem tinha percebido que ele tinha saido da sala. “Minha querida Lucinha, como eu disse: Carmilla e eu estamos saindo. Gostaria de lhe apresentar a capitã Mabel Volonaki. Ela é uma das pessoas que mais confio. Gostaria que ficasse com ela e mostrasse toda a casa.”

Lucinha não conseguiu evitar a estranheza em seu rosto ao ver a tal Capitã. Ela era o pior estereotipo de garota nerd possível; usava aparelho, oculos com aros grossos e arrumava seu cabelo negro em uma franja com tranças longas. ‘Que tipo de soldado usa trancinhas?’ Lucia pensou: ‘Não! Que raio de mulher adulta usa trancinhas assim?’

“Seja bem vinda a mansão Karnstein.” Lucinha fez uma reverencia enquanto seu pai se retirava.

“Algum problema no seu rosto?” A capitã apontou para o fato que Lucia cobria o rosto quando falava.

“Desculpe.” Lucinha ficou encabulada. “Eu peguei o habito de cobrir minha boca. É mais confortável ficar de boca aberta e se o pessoal na escola vê encarna em cima e ficam me chamando de vampira.”

“E escondendo os dentes não te perturbam?”

“Perturbam.” Ela riu. “Somando o fato que evito o sol e em dias muito claros uso óculos escuros até na sala de aula.”

“Deve ser duro.” A capitã Mabel Volonaki deu um sorriso com uma expressão que mostrava sua compreensão do problema.

“Não tanto quanto quem me perturba.” Ela suspirou. “Minha amiga Allix fica violenta com todo mundo que me ebche. E ela tem uma tremenda força pra uma garota.”

Obedecendo ao pedido do pai ela mostrou todos os cômodos da casa. Com a mansão Karnstein, transformada em uma base Arcana, Lucinha andava agoniada em meio aos cadetes e soldados instalando equipamentos e descarregando suprimentos. Sentindo tristeza enfiou a mão no bolso e tirou uma carta. “A torre do destino.”

“Não fique triste.” A capitã a consolou. “Tudo o que estamos fazendo pode ser desfeito. Vamos concertar a casa.”

“Nada não.” Lucinha disfarçou tentando não olhar para aquele cabelo. “É que eu tirei uma carta torre.”

“Você sabe ler cartas?” A capitã perguntou com um sorriso.

“Não muito. Mas eu tinha uma amiga que sempre brincava de cartomante na escola e nunca disse coisas boas de uma carta torre. Pergunto-me se é um mal pressagio.”

“Como conseguiu isso?” A capitã perguntou olhando a carta.

“Ah. Isto é uma carta de Atizaya.”

“Sim, eu sei.” A capitã fez uma expressão intrigada. “Só que essa não é uma das cartas de Atizaya que se compra em lojas.”

“É um protótipo por isso é maior e não tem o texto explicando o que a carta faz no jogo.” Lucinha explicou.

“Protótipo?” A capitã colocou a mão no queixo intrigada. “E você gosta muito desse jogo?”

Lucinha deu de ombros olhando as cartas. “Acho que sim.”

“Acredito que você tem tudo pra se dar bem com os cadetes.” A capitã piscou e de um compartimento de couro no cinto ela puxou um maço de cartas como o dela.

“Você também tem um deck de cartas?” Lucinha ficou surpresa. “E um protótipo?”

“Cada soldado Arcano tem um.” A capitã apontou pros cadetes passando. “Vê esta parte no nosso cinto? Cada um deles tem seu próprio deck igual ao seu protótipo.”

“Todo mundo?” Allix cobriu a boca. “Está brincando.”

“Não estou não.” Ela mostrou as cartas. “O meu é o baralho do zodíaco.”

“O meu é o baralho do Olho das Bruxas.” Lucinha mostrou.

“O olho das bruxas?” A capitã agarrou o baralho surpresa. “Pensei que tinha conseguido o baralho com o seu pai. Onde você conseguiu isso?”

“Minha amiga muito querida me deu.” Lucinha sorriu com saudades. “Ela não gostava, mas eu sempre achei a arte muito linda.”

“E como sua amiga conseguiu isso?” A capitã perguntou com um olhar apertado.

“O pai dela trabalhava na fabrica que faz as cartas.” Lucinha olhava as cartas da capitã com atenção.

“Ele trabalhava em Sefirot?” A capitã perguntou e Lucinha afirmou que sim, com a cabeça. “Por acaso esse baralho não teria o livro do olho das bruxas. Teria?”

“Claro, ele precisa das regras.” Lucinha riu. “Eu tenho que mantê-lo escondido porque minha mãe tem um faniquito com qualquer coisa relacionada à bruxaria. Mesmo um brinquedo.”

A capitã coçou o queixo. “Depois pode me mostrar esse livro?”

“Claro.” Lucinha concordou com a cabeça.

“Gostaria de conhecer sua amiga que tinha o baralho do olho e um pai que trabalha em Sefirot.”

Lucinha olhou para o seu baralho. “Minha querida Allix. Gostaria de saber onde ela está agora.”

007°

Passeando tranquilamente a senhora Gleba levou seu belo basset August para passear, enquanto o céu ainda estava um pouco escuro, como fazia todas as manhãs.

As pessoas andavam lhe dizendo que depois da guerra aquele bairro já não era tão seguro para se andar sozinha pelas ruas. Mesmo depois dos vizinhos irem embora, mesmo depois do bombardeio, a senhora Gleba não fugiu.

“Podemos não ser um país muito rico, mas temos um povo muito forte. Logo a guerra terminará.” Gleba era muito patriota e sempre conversava com seu cachorrinho enquanto passeava.

“Muitos fugiram com medo e as ruas andam cheias de pedintes.”

Só para confirmar suas expectativas, encontrou uma menina chafurdando em seu lixo.

“Olhe para isso August.” O cachorrinho fungou concordando.

“Aqueles marginais jamais me expulsarão de minha própria casa. Além disso, já estou velha demais para sentir medo, não é mesmo?”

August concordou. Gleba se aproximou e começou a reconhecer a triste figura.

“August! Aquela menina não é a filha daquela jovem viúva? Ivana! Ela teve uma filha ainda muito jovem e inexperiente, não era de se espantar que tenha esse final. Sempre fora uma criança largada, que corria pelas ruas, sem nenhuma supervisão.”

A senhora Gleba não pode evitar um mal-estar e uma vontade de vomitar ao ver o que ela pensou ser uma aquela garota raquítica lambendo as embalagens de comida.

Enojada, ela esperou discretamente que a garota fosse embora para evitar um encontro com tão patética figura.

Ela era uma mulher educada, sua família apesar de um começo humilde se tornou muito importante na alta sociedade e uma coisa que aprendera todos esses anos era a ter descrição e evitar qualquer tipo de escândalo ou mesmo inconveniência.

“Também não é de se espantar que ela escolhesse nosso lixo.” Comentou para o cachorro.

“Mesmo com todos os problemas do país eu me recuso a sacrificar qualquer conforto que meu dinheiro possa proporcionar nesse fim de vida.”

Por uma mórbida curiosidade espiava com o canto dos olhos, como se estivesse fazendo outra coisa.

“A menina evita usar a mão direita e não possui muita habilidade com a esquerda. Talvez esteja machucada.” August concordou.

“Se estavam com tantos problemas, eu ajudaria de bom grado. Até mesmo acolheria a menina se fosse o caso. Qual é o nome dela? Ali alguma coisa... Alice... Eu sou uma velha sozinha e aquela menina precisa de educação, desde como se portar a como se vestir.”

A senhora Gleba não era uma pessoa ruim e nunca negaria um prato de comida nem mesmo ao pior dos criminosos se ele lhe pedisse. Ela ficou por alguns instantes imaginando o bem que faria para aquela garota e teve uma terrível vontade de abordá-la.

“E ela poderia ser uma boa companhia para você. Gostaria de ter uma amiguinha, August?”

A menina não percebera que uma enorme e ameaçadora ratazana se aproximava do seu rosto. Não apenas uma ratazana grande, mas uma mutação hedionda. Parecia ter uma segunda boca nas costas de onde saiam o que pareciam ser lombrigas gordas se mexendo, uma das patas traz eiras se assemelhava a uma mão e um dos olhos parecia humano. Definitivamente aqueles dentes afiados não eram comuns em roedores.

Aterrorizada a velhinha ficou sem palavras. A única coisa que a menina podia fazer era tentar aparar o terrível animal com sua mão direita.

Naquele instante, milhares de coisas passaram pela cabeça da pobre senhora, a imagem da menina agonizando em um hospital por causa de um daqueles ratos monstruosos apertou seu coração.

Antes que seu medo passasse ou pudesse gritar ou fazer algum barulho de alerta a criatura atacou e ela esperou o pior.

A senhora Gleba sentiu um aperto no coração e fechou os olhos para não ver a pobre menina sendo atacada por aquele monstro horrível.

Um estrondo enorme seguido de uma forte lufada de ar quente a jogou para trás e a fez cair no chão, no momento seguinte viu uma terrível fogueira aonde antes era a esquina do quarteirão. Tanto a calçada e a mureta em volta de onde ficava o cesto de lixo estavam despedaçadas com partes espalhadas pela rua, as arvores em volta estilhaçadas e em chamas.

A pobre senhora nem ao menos entendeu o que aconteceu.

Por alguns instantes ela procurou os aviões que estavam bombardeando, mas não havia nada.

A menina levantou e saiu correndo desesperada.

A velha tentou compreender o que estava acontecendo, tinha se  machucado na queda e teve dificuldade em se levantar.

Quando se aproximou seu coração disparou e compreendeu o que estava acontecendo, no asfalto derretido onde estava a menina, a marca da mão dela impressa nos paralelepípedos derretidos estava bem visível.

Só uma coisa ecoou em sua mente e pela primeira vez em 30 anos ela sentiu medo.

Bruxaria.

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