Capítulo 02 - O Cemitério

Uma semana após a chegada de Alice havia se passado, as crianças já tinham se acostumado com a presença dela, mas tia Rosário estava perturbada com o fato dela ainda não ter falado nada.

Todas as suas tentativas de conversa ou de fazer Alice sair de casa falhavam. Amélia tinha perdido um pouco do medo que sentia pela menina, mas achava desconfortável o fato de ter que dividir o quarto com alguém que mal respirava. 

— Vamos levar a Alice para conhecer a cidade hoje. Só nos duas.

— Ela não vai querer ir.

— Falei com um médico sobre ela e ele disse que ela pode estar passando por estresse pós traumático ou alguma coisa assim...

— O que é isso?

— Apenas temos que tentar distrair ela um pouco, eu não tenho dinheiro para pagar um psicólogo.

O pequeno salário que tia Rosário recebia como professora do primário mal era suficiente para comprar o que comer e o que vestir. Ela treinou várias vezes o que ia dizer para convencer Alice a sair. Alice nunca tinha dito não as suas tentativas fracassadas, mas também nunca tinha feito o favor de ao menos levantar da cama. O sentimento ruim que tia Rosário sentia por ter perdido o irmão se multiplicava quando via o sofrimento refletido na menina, e se sentia impotente por não ser capaz de fazer nada para ajudar. 

Determinada a fazer pelo menos ela sair de casa para sentir o vento no rosto, tia Rosário deixou Maurício com a vizinha e ajudou Alice a vestir seu melhor vestido. 

— Rosa não combina com ela — Amélia falou, enquanto se esticava o máximo na cadeira de rodas para se olhar na penteadeira que agora praticamente era sua.

— Nós estamos nos arrumando assim porque vamos dar uma volta. Você vai conhecer os lugares legais da cidade.

Sem obter resposta, tia Rosário colocou a mão da menina sobre seu braço e saiu acompanhada por Amélia.

Alice não teve nenhuma reação e nem tentou se soltar, apenas deixou que tia Rosário a guia-se para fora, os raios de sol bateram no seu rosto pela primeira vez em dias e ela apertou os olhos, incomodada com a luz. O resto do passeio se mostrou sem mais reações da parte de Alice. Amélia a tia Rosário conversavam sobre a escola, o parque ou qualquer outro assunto que pudesse chamar sua atenção. De vez em quando algum conhecido as viam e perguntavam sobre a menina, mas tia Rosário sempre dava um jeito de não citar os pais. Elas ainda não tinha conversado sobre nada, e isso incluía a morte de Fabián e Rossana.

Parque, padaria, praça, igreja, as opções foram se esgotando. Tia Rosário resolveu voltar.

— Me deixe mostrar a rua pra ela — Amélia sugeriu. — Posso falar um pouco sobre os nossos vizinhos.

Cansada e sem muitas opções, tia Rosário parou a porta de casa e observou a duas "passearem" pela rua.

Amélia fazia um grande esforço para girar a roda da cadeira com apenas uma das mãos e segurar o braço de Alice com a outra. Na esperança de ajudar a mãe e conquistar a amizade de Alice, ela falava sobre cada vizinho com entusiasmo quando passavam pelas casas. Alice permanecia de cabeça baixa encarando o chão. Ela tinha ficado quase o tempo todo assim.

— Quem mora naquela casa é a dona Ana, ela é brasileira. Faz uns docinhos ótimos em época de festa. Agora vamos voltar, tá?

Amélia sentiu um calafrio e logo sugeriu a volta. As crianças haviam chegado no finalzinho da rua após a casa de dona Ana. Porém, Alice ficara de repente difícil de conduzir, se tornou impossível para Amélia virar a cadeira e segurar seu braço ao mesmo tempo, visto que Alice não a acompanhava. 

— O que foi?

Alice encarava os portões pretos e enferrujados do cemitério do hospital de Esperanza para pacientes com doenças mentais. A presença da morte a tão poucos metros de distância chamou sua atenção. Pensou nos pais e foi incapaz de dar mais um passo. 

— É o cemitério de loucos, vamos embora. 

Mas ela não se movia. Seus olhos examinavam os túmulos atrás do portão e do muro baixo. Imaginou que seus pais podiam estar ali, ou em um lugar como aquele. Eles não podiam ter simplesmente sumido ou virado pó, pessoas não sumiam daquele jeito. Eles podiam estar bem ali, ou pelo menos seus corpos. Mas se Alice visse o rosto da sua mãe por um última vez ela se sentiria feliz, mesmo que para isso tivesse que cavar naquela lugar com as próprias mãos. 

— ALICE PARE! — Amélia gritou, já assustada.

— Meus pais estão lá. 

Amélia arregalou os olhos e sentiu todo o ar dos seus pulmões sumirem. Alice tinha falado, tinha falado com ela. Seus lábios haviam se movido e formado palavras. Estava tão impactada por ter ouvido a voz fina e infantil da prima pela primeira vez que nem prestou atenção na besteira que ela havia dito.

— O quê?

— Meus pais estão lá.

— Não, não estão. Seus pais... Seus pais não estão em lugar algum. — Se arrependeu por ter dito isso, pensou que faria Alice chorar. 

Tia Rosário, vendo de longe que as meninas pareciam conversar, se alegrou. Lugares como aquele despertavam a curiosidade das crianças. Alice provavelmente estaria fazendo perguntas sobre o cemitério a Amélia. Andou até elas devagar, dando um tempo para que conversassem mais. Amélia estava tão estupefata que nem percebeu a mãe se aproximando, mas antes que Alice pudesse dar o primeiro passo em direção ao cemitério tia Rosário segurou seu ombro.

— Do que estão falando?

— Ela falou, mãe. Ela acha que os pais dela estão lá.

Alice encarou tia rosário pela primeira vez.

— Eu me lembro. Lembro do enterro do seu marido, você estava grávida do pequeno e tinha menos rugas. 

Para Alice aquela era a primeira vez em cinco anos que realmente via sua tia. Na última semana tudo que passava diante dos seus olhos era a escuridão. 

— Isso já faz muito tempo, mas que bom que falou comigo. Vamos pra casa?

— Que lugar é aquele?

— É um cemitério.

— O seu marido não foi enterrado nesse cemitério, o lugar que ele estar tinha rosas, velas e era bonito. Esse lugar não tem rosas e é feio. Se eu soubesse onde os meus pais estão enterrados eu iria todos os dias deixar rosas e velas para eles. 

Tia Rosário prestou atenção em cada palavra de Alice, estudando tudo que ela dizia e pensando em uma boa resposta, assustada por ela ter citado os pais. Amélia apenas estranhava o som de sua voz e tentava se acostumar a ela.

Sem saber o que responder e não ousando explicar a Alice que os pais não estavam enterrados em nenhum lugar, tia Rosário se limitou a explicar o motivo do cemitério ser feio.

— Esse cemitério é para os pacientes do manicômio, por isso não é tão organizado e bonito quanto os outros.

— E o que isso tem a ver?

— A maioria dos loucos são indigentes abandonados e não tem famílias que se importem com eles — Amélia se precipitou em responder, querendo um pouco da atenção de Alice.

— Amélia! — tia Rosário a repreendeu.

Alice olhou o cemitério mais uma vez, com pena daqueles túmulos abandonados e pessoas esquecidas. Almas solitárias abandonadas durante a vida e agora após a morte. Para Alice um cemitério de loucos merecia tanta atenção quando um cemitério de pessoas normais. 

— Que pena — Disse unicamente e voltou a se calar. Não falou mais nada durante aquele dia.

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