Capítulo 2

                                                              Capítulo 2

                        Chuva, poucos clientes, uma ovelha nua, um crustáceo assassino, o que mais eu poderia querer?

            Pelo resto da tarde, até a noite, a fauna chorou. Judy primeiro ouviu o que o amigo tinha para contar, e depois explicou sua situação com a família, mas era difícil pois não parava de chorar. Foi preciso chamar um táxi para buscar o resto das coisas dela na casa onde morava, onde não podia mais morar pois a garota estava num estado tal que era lastimável, de dar pena. Pelo que o lobisomem entendeu da história, brevemente entre soluços de choro, suas irmãs queriam trazer os namorados para morarem juntos, mas como a jovem Judy Sýnkýtous ainda não tinha um namorado, e ainda era virgem, as irmãs queriam que ela fosse morar sozinha. Como ainda estava buscando uma carreira, e não conhecia muita gente da época do Instituto que estivesse disponível, resolveu falar com Pedro.

            O lobisomem, também, tinha respostas para o que ela havia sonhado, coisas que a perturbaram. A primeira vista, aceitara mais ou menos bem a história que fora contada sobre Ana, sobre ter sido capturada, e encontrada morta num dos laboratórios. Mas por falta de imagens do ocorrido, sentia que algo errado existia na coisa toda e, depois das visões que teve, encontrou outro motivo para ir falar com ele. E o lobisomem contou tudo, cada palavra, descreveu a situação da forma mais crua que pôde, e ela viu que havia uma dor enorme contida ali, que ele fazia força para não interromper a narrativa por sentir a garganta pesada ou travada pela emoção. Judy tinha de admitir que Pedro Filho de Uther, líder da tribo dos Filhos de Fenrir, era um marco do autocontrole, por mais difícil que fosse. Pena que ela não se sentia controlada em nada.

            Notou, também, que o cabelo dele continuava raspado nas laterais e atrás, mas agora exibia sua cor natural: castanho escuro, com luzes douradas devido à exposição ao sol. Combinava com os olhos verdes dele que brilhavam mais escuros conforme a luz os atingia, mas preferiu guardar qualquer elogio para quando estivesse se sentindo melhor, parado de chorar e ficado mais tranqüila. E ele agia como se ela não estivesse ali, com uma naturalidade típica de um solteiro que vive sozinho, apenas contando com um bicho de estimação. Sua rotina noturna era preparar o jantar, comer sozinho enquanto jogava pedaços de carne ao corvo e via os noticiários da noite, e sentia os cheiros de temperos adocicados e alguma coisa salgada, parecia diferente, mas parecia muito bom.

– Pode ligar a TV, se quiser, enquanto faço algo pra você comer e esquecer um pouco as merdas que ouviu das suas irmãs e de mim – Pedro falou por cima dos ombros. Tinha um ar hospitaleiro que ela achou agradável.

            Judy pegou o controle remoto, ligando a grande TV preta, e passou pelos canais até encontrar algum programa que não fosse enfadonho. Achou um que passava sketches de humor e pegadinhas, as risadas de fundo acontecendo cada vez que um participante inocente e desavisado sofria um susto. Pouco a pouco, sentiu a mente mais tranqüila, um sorrisinho bobo em seu rosto se abrindo devagar em seu rosto enquanto assistia aos infortúnios alheios. Quando finalmente parou soluçar, um prato quente de ensopado esperava à sua frente, com uma colher de cabo negro próxima ao prato.

            Olhou para seu anfitrião, agradecida, e ele mastigava um sanduíche de carne seca temperada, pensativamente. Não parecia preocupado com o programa de TV, até que pediu que ela mudasse de canal, para um jornal, pois queria saber do clima do dia seguinte. A previsão: chuva, muita chuva.

– Bem, não posso reclamar – Pedro suspirou, sentado em sua poltrona – Minha conta bancária dificilmente vai ficar abaixo dos oito dígitos graças ao meu pai, os lucros que ganho aqui são apenas um investimento pequeno. Clientes de menos por causa de chuva não me incomodam em nada. Além disso, tá um calor desgraçado nesses últimos dias, talvez esfrie um pouco.

            Judy olhou ao redor, um pouco chocada. A conta bancária dele era de oito dígitos? E morava naquele apartamento médio? Sequer parecia-se com a “celebridade heróica” do ano passado. Ela sabia que ele tinha uma herança garantida pelo pai, o lendário Uther, da tribo Filhos de Fenrir, mas não imaginava que era algo tão grande quanto oito dígitos. Aos olhos dela, era quase indigno que ele vivesse num local apertado como um apartamento no centro.

– Você não preferiria morar num lugar maior? – Perguntou a fauna, um pouco receosa da resposta.

– Meh, nem ferrando – Pedro respondeu, indiferente – Francamente, eu quero um lugar pequeno e confortável que possa chamar de lar, não uma mansão onde eu me perca em corredores de mármore branco ou cinza, impossíveis de limpar sem ser forçado a encerar a coisa toda por horas.

– Ah, acho que tem razão... – Olhando em volta, resolveu perguntar o que mais lhe causava incerteza – Então, onde eu vou dormir?

– Na minha cama.

            Judy corou até a raiz do cabelo, a naturalidade daquela resposta foi tão espontânea que sequer pensava se poderia recusar. É fato que ela fora apaixonada por ele quando estudavam juntos, mas ele teve de recusar os sentimentos dela. Ele foi cortês, gentil, nunca a tratou com desprezo, e mesmo que o sentimento estivesse fraco, ainda havia o fogo de uma pequena vela ali. E, do nada, precisando morar de favor com o antigo amor escolar, ela ouve que poderá dormir na cama dele. “Ai meu Pã, o que eu faço agora?”, Judy suspirava devagar, enquanto Pedro ia até uma porta grande que percebeu ser um depósito. De lá ele removeu um mastro, que prendeu numa extremidade da parede, e puxou uma cortina pela barra de metal.

– Agora você terá um pouco de privacidade. O banheiro, infelizmente, fica através da sala, e já que eu vou dormir no sofá, terá de me avisar se for preciso usar. Não sei como é sua rotina noturna, então não quero lhe causar nenhuma situação constrangedora.

            O queixo dela caiu, sua pele ficou tão pálida quanto seu cabelo branco. Sentiu os joelhos baterem um pouco, mas conseguiu rir de nervoso para ao menos tentar disfarçar o embaraço.

– Ah, ah... Certo, tudo bem... Eu vou separar minhas coisinhas atrás da cortina.

– Você não achou que eu estivesse te convidando pra dormir comigo, não é? – Pedro indagou a fauna, uma expressão séria no rosto, uma sobrancelha erguida.

– Bem, não... – Ela era uma péssima mentirosa.

– Sei... Porque se fosse, eu teria aceito na mesma hora – Ele retrucou, indo até o banheiro e trancando a porta, ao que se ouviu o som do chuveiro ligando.

            A fauna respirava fundo, suando frio. Seus olhos tornaram-se fendas, como os de bodes, tamanha surpresa sentiu diante daquela afirmação (mais parecia uma provocação sarcástica). E tivera a audácia de ir tomar um banho frio, deixando a garota ali, tremendo de ansiedade e com um meio sorriso torto de surpresa no rosto.

            “Ah mas isso não vai ficar assim”, ela pensou, imaginando como poderia se vingar dele. Resolveu, então, se jogar na cama vestindo apenas uma blusinha de pijama, fingindo dormir, esperando que ele viesse checar se ela já dormia. Pretendia virar-se e exibir-se um pouco, mas logo deixou a idéia de lado. “Que droga, ele me acolheu aqui quando eu fui expulsa de casa, e eu quero deixar ele irritado? Droga!”. Ainda assim, jogou-se na cama, como planejara, mas esqueceu da parte da vingança. Preferia dormir, relaxar os músculos do dia que tivera e acordar descansada e relaxada no dia seguinte.

            Em seu sono, Judy não podia ouvir nada além de sua respiração leve e tremida com balidos baixinhos. Passou assim por horas durante a noite, até sentir que precisava ir ao banheiro. Espreguiçou um pouco as pernas longas, de cascos fendidos e cobertas de lã branca e macia. Dentre os sátiros e faunas, Judy era uma raridade, uma das poucas com traços de ovelha. Por isso ganhara seu sobrenome, a junção de palavras em grego, “sýnnefo kýtous”, Casco de Nuvem. Ela achava um sobrenome realmente fofo, e fazia jus a isso desde que era pequena, mantendo o cabelo macio e as pernas muito bem cuidadas. Mas, como em todos dos sátiros, a longa camada de pêlos de suas pernas cobria até um pouco acima da virilha, e por isso ela tinha um hábito de evitar roupas intimas, especialmente de tecido trançado ou renda. Reclamava que, além de dar coceira, poderia embaraçar e era doloroso remover a peça de roupa. Se não fosse de lã, não usava nada. Isso apenas evidenciava o pequeno tufo que era sua cauda, em cima do traseiro peludo e redondo, do qual ela tinha orgulho de manter em forma com exercícios e um pouco de dança que fazia regularmente.

            Era uma das mais atléticas na família, e se esforçava para não ganhar peso. Gostava da forma que seu corpo tinha, e fazia questão de exaltar sempre as pernas, já que os seios não eram fartos como os das irmãs, que lhe faziam brincadeiras um pouco maldosas.

            Depois de bocejar e sentar-se devagar na cama, Judy moveu a cortina do mastro para o lado, sonolenta, e não percebeu Pedro sentado a uma cadeira da mesa de cozinha, mexendo num laptop velho e fazendo anotações frenéticas num de seus cadernos. Quando saiu do banheiro, algum tempo depois, sentiu uma queimação na nuca, e quando se virou, deu de cara com o lobisomem, a meio caminho de sair cadeira, estático, com um olhar de pura surpresa enquanto fitava Judy. Levou alguns segundos para ela se lembrar de que estava nua abaixo da barriga chapada, já que a blusinha de pijama era pequena, e a calça que vinha junto ficou enfiada na mala.

            Ela inspirou o ar profundamente, sem saber muito bem o que fazer. Mudou o peso de uma perna para outra, sem perceber que isso exibia ainda mais seu corpo abaixo da cintura. E ficou corada como uma pimenta vermelha ao perceber que o lobisomem olhava para ela de cima a baixo, com uma curiosidade quase selvagem.

            Pedro, por sua vez, não sabia se devia ficar irritado com a imprudência da amiga, zangado por ter de lidar com uma situação tão constrangedora, se desculpar por ficar secando o corpo seminu dela ou se deveria ficar excitado com aquilo. Parecia uma cena de comédia romântica barata e chinfrim, de baixo orçamento. E ele odiava comédias românticas. Apertou os lábios, virou-se devagar, pôs os fones de ouvido e voltou ao laptop de seu pai, suando de nervosismo. Ao que a fauna correu para trás da cortina, sentando-se na cama e buscando em suas malas a calça moletom daquele pijama. Depois de vestida, resolveu pedir desculpas ao anfitrião.

            Ele continuava ali, lendo, revisando anotações, e preferiu andar devagar até poder tocar em seu ombro. Ele respondeu olhando-a de lado, ainda com um nervosismo estranho nos olhos.

– Me desculpa... Eu devia ter avisado, não sabia que estava acordado – Sua voz tremia um pouco, e sentia uma queimação na pele. Ele não respondeu de imediato, mas deu de ombros.

– Só não faça de novo, okay? Somos amigos, e tudo mais, mas você vai morar aqui agora. Isso foi bem estranho, mas é bom evitar esse tipo de situação desconfortável. Imagina se fosse eu a sair pelado do banheiro e você tivesse de lidar com isso?

            A garota engasgou, facilmente influenciável pela visão que surgiu em sua mente (ela sempre fora assim em relação a rapazes). Se aquilo era uma provocação, funcionou muito bem pois ela sentia a queimação na pele ainda mais forte, vinda do estômago. Mas tinha de controlar qualquer desejo por hora. Se fosse flertar com ele, teria de fazê-lo com calma e naturalmente, depois que já estivesse estabelecida ali. Apesar disso, não podia evitar o que viria a seguir.

– Bom... Eu devo dizer que adoraria – Seu rosto corado como sempre, exibia uma expressão estranha de triunfo, de coragem.

            Agora foi a vez do lobisomem ficar surpreso. Primeiro tivera de lidar com uma perseguidora apaixonada, agora tinha de lidar com uma amiga apaixonada que as circunstâncias trouxeram para debaixo de seu teto. Uma era uma fauna, uma ovelha. A outra um ratel. Uma pacífica, tímida, ansiosa. A outra era avoada, atirada, volúvel e supostamente violenta. E, por mais que ambas fossem ótimas, pelo pouco que sabia de Jessica e pelo tempo que já conhecia Judy, lhe doía um pouco ter de explicar às duas que não queria nada com ninguém depois do que aconteceram no Dia da Fúria.

            Conciliar a situação com sua vida parecia um pesadelo, como tentar desembaraçar o cabo dos fones de ouvido. Apesar de que sentia um pouco de satisfação em ter não uma, mas duas garotas atrás dele, com sentimentos honestos, ou assim parecia ser. Jessica parecia movida mais por uma curiosidade juvenil, enquanto Judy tinha um desejo mais sexual do que emocional, pelo menos na superfície. E ele não sabia se estava disposto a arriscar entrar nesses labirintos emocionais para descobrir o que era o quê no jogo do amor. Afinal, nunca vencera o jogo, sempre trapacearam para fazê-lo perder, e chega um momento onde o cérebro cansa de lidar com um coração partido.

            Entretanto, algo dentro de sua mente lhe dizia que podia confiar em uma das duas “jotas”, mas Jessica ou Judy? Isso parecia realmente incerto, e deixava-o aflito, até mesmo irritado. Odiava a incerteza com cada fibra de seu ser, não ser capaz de tomar uma decisão lhe dava o sentimento de descontrole que carros desgovernados tinham em acidentes de trânsito. Para ao menos saber o que fazer nos próximos dias, teria de arriscar algo que não fazia há alguns dias.

– Judy, eu quero fazer uma coisa contigo.

– SIM! – Ela concordou de imediato.

– Jogar as runas – Ele levantou uma sobrancelha, agora um pouco irritado.

– Ah, ah... Runas, sim. Tudo bem, mas por quê?

            Levantou-se da cadeira, indo até a prateleira onde estava o saco com as peças rúnicas. Chamou Judy com uma mão, e pediu que se sentasse ao seu lado.

– Eu vou decidir algumas coisas aqui, baseado no que você me ajudar a puxar nas runas. Você tem sua forma de previsão das possibilidades futuras, eu tenho as minhas. Então, quando eu puxar quatro runas, você vai puxar mais duas. Só duas, apenas duas. Entendeu?

– Ah, sim, acho que sim. Como se faz isso?

            Ele explicou brevemente o método que usava, dispondo as peças negras viradas para baixo, de olhos fechados, instruindo a fauna a fazer o mesmo. Quando estava tudo pronto, ele dizia em voz baixa como puxava cada uma, sentindo qual delas atraía mais sua mão. Puxando as quatro, segurou levemente a mão direita dela (ao que sentiu um leve arrepio, em si mesmo e nela), guiou a mão suave da garota buscando as duas últimas. E as encontrou.

– Vejamos... – Pedro ia dizendo quando abriu os olhos e observou atentamente – A primeira é Gebo, runa do presente, o objeto, não o momento. Representa generosidade, e está virada para cima. Ótimo. A segunda é Raidho, a estrada, movimento, crescimento, o que é um bom sinal pra você. A terceira é... – Aqui ele parou – Thurisaz, novamente, já é a segunda vez em semanas que vejo essa, é o poder de Thor.

– O deus do trovão nórdico? – Judy perguntou, curiosa.

– Ele mesmo, essa runa é tanto uma forma de canalizar o poder destrutivo do trovão como também a representação da força destruidora dos gigantes. Virada para cima, como agora, representa desafio, complicações a serem resolvidas. A quarta que puxei é... Wunjo. Isso é... Estranho.

– Por quê?

– Nunca antes eu puxei essa runa envolvendo a mim, quase sempre era com outras pessoas exclusivamente. Isso tem algo a ver com a situação atual, pois a runa representa êxtase, alegria.

            Ao ouvir isso a fauna suspirou de forma bem audível, ao que Pedro respondeu balançando a cabeça um pouco.

– As duas runas que você puxou são... Naudhiz – Pedro resmungou, incomodado – Isso é muito inconveniente, pra mim pelo menos. Pra você, talvez seja bom.

– Por quê? O que tem ela?

– É a runa da necessidade, dos desejos não satisfeitos, daquilo que você mais quer.

– Oh... – Judy corou novamente, pensando no significado daquilo, dificilmente montando o quebra cabeça daquelas situações todas.

– A última é... Ingwaz – Agora ele parecia um pouco pálido.

– O que? O que foi? O que tem essa? É ruim?

– Ela está virada pra cima... Ingwaz é a runa de Frey, deus do verão, da cura, da fertilidade, e especialmente da virilidade masculina – Judy ouviu aquilo com uma gota de suor lhe atravessando o rosto – A runa tem vários significados, dentre eles o início de alguma coisa, a realização do potencial, e a fertilização... – Ele se jogou de costas no sofá, sem saber o que pensar. Aquelas runas estavam lhe pregando uma peça, pois se não o ajudavam a resolver a situação, lhe davam então pistas das decisões a serem tomadas. E, se acaso alguma delas envolvia algo mais “intenso” com uma das garotas, não podia errar, pois poderia causar algum mal a alguma delas. Talvez algo que não tivesse cura dependendo do que fosse acontecer.

            Mas surpreendeu-se ao ouvir a amiga suspirando ao seu lado, parecendo mais tranqüila, até mesmo feliz.

– Eu aceito o que vier agora, até porque já cheguei até aqui mesmo... – Seu tom de voz, um pouco melancólico, lhe causou uma pontada de raiva por causa da resignação contida – Obrigada por me acalmar depois de... Você sabe, o deslize que cometi.

– Não acho que seja adequado me lembrar do que você fez – Ele retrucou, sério.

­– Ué, o que tem de errado? – Quando Judy virou o rosto para olhar, notou o comportamento do rapaz: estava com as pernas cruzadas. Já vira vários rapazes fazerem isso, e sabia o motivo – Ah... Entendi... – Seu tom de voz malicioso causou um gemido de frustração no lobisomem, e ela respondeu rindo.

– Isso não tem graça, garota – Ele virou o rosto, para evitar que Judy visse que agora ele é quem corava.

– Calma, não é como se eu não soubesse o que tem aí.

– Garota, somos amigos. Além disso, somos ambos adultos, não crianças. Apesar de sermos um homem e uma mulher eu não trato dessas coisas – Apontou para si mesmo abaixo da cintura – como se fossem banais ou brincadeira.

– Ei, relaxa... – Judy se aproximou um pouco, pegando em seu braço esquerdo e abraçando-o, deitando a cabeça em seu ombro – Eu não tenho problema nenhum com você se sentir excitado por minha causa. Na verdade é um alívio, achei que ninguém me queria por ter alguma coisa que não fosse bonita.

– A mesma coisa que eu disse ano passado continua valendo, Judy. Você é muito bonita sim, sua ovelha louca – Pedro resmungou, contrariado, sentindo um arrepio esquisito pela pele.

– Obrigada, de verdade – Ela deu um beijinho no ombro do amigo, que foi respondido com um gemido esquisito. Judy só pôde rir daquilo – Você é tão tímido assim? Estamos na sua casa, não é? Quem é que vai reclamar? Não tem professores aqui.

– Bom, recentemente teve uma garota correndo atrás de mim – Decidiu ser honesto com a fauna, para evitar quaisquer brigas futuras – Diz ela que ficou encantada comigo, apaixonada, desde que me viu no Dia da Fúria.

            Judy não respondeu de imediato, ainda agarrada ao braço dele. Mas logo ficou mais grudada nele, sem se importar com os protestos do rapaz.

– Era de se esperar que alguma admiradora surgisse, mas se você acha que vou ficar com ciúmes, se enganou. Eu sei pelo que você passou, Pedro. Eu vi, e você me contou o resto que eu não sabia. Se tiver de escolher uma de nós duas, tudo bem. Vou ficar feliz por você se ficar feliz, é fato. Mas... – A garota suspirou, relaxando o corpo de encontro ao corpo do lobisomem – Eu ia ficar bem feliz se fosse eu. Não entendo de runas, mas os significados talvez resultem em algo bom, pra nós dois, talvez.

– Sei, sei... Veremos com o tempo, Judy. Veremos como as coisas se desenrolam pra nós dois, ou pra mim e a tal ratel.

– Ah, uma ratel? Então ela é do tipo violenta – Judy fez um sorrisinho malicioso, louca para provocar o rapaz – Não sabia que curtia essas coisas.

– O que? Não, caramba. É uma coincidência e você sabe disso – Pedro parecia contrariado.

– Ah, tá tudo bem. Não posso te julgar nem nada. Acho que vou tentar voltar a dormir... – Judy deu um beijinho no rosto de Pedro, levantou-se esfregando os olhos. De repente decidiu algo de que não iria se arrepender: começou a tirar a calça de moletom e a blusa ali mesmo em frente ao lobisomem.

– Ah, Judy. O que você pensa que está fazendo? – Pedro questionou a garota sem se atrever a olhar diretamente para ela, pois soube o que ela faria ao observar os movimentos do corpo dela.

– Ah, eu só havia usado a blusinha porque não queria causar problemas. Eu costumo dormir nua – Espichava o corpo, um braço pra cima, uma perna para trás – Quem sabe assim você, senhor, não se acostuma com como um corpo feminino se parece. Além disso, eu sei que você gosta – Sua expressão era de pura malicia, agora que se sentia decidida a arriscar tudo. Pensara bem a respeito, concluiu que o que pudesse conseguir seria lucro, já que o “não” do amigo ela já tinha. Se pudesse conquistar o rapaz por quem se apaixonara no Instituto Acadêmico Mãe Lua, melhor ainda.

– Isso é um pouco baixo, uma tática bem suja da sua parte, ovelha louca – Pedro retrucou, mas não pôde esconder bem o bastante o sorrisinho contido em seu rosto. Levantou-se e voltou para o laptop, deixando Judy satisfeita com o resultado conquistado, enquanto se preparava para dormir.

                                                           ****

            Longe do centro, na Zona Baixa, uma garota de traços orientais esperava num quarto de hotel não muito bom, mas confortável o bastante para uma pessoa apenas. Hannah era seu nome, jovem com pouco mais de vinte anos, baixa altura e corpo pequeno, graciosa e costumeiramente agitada. Deitada na cama de casal, ela lia um livro enquanto esperava por seu comprador aparecer.

            Pensar naquilo lhe dava calafrios de medo, mas ela não se arrependia. Sua decisão foi feita para ajudar seus pais, que não eram muito ricos, mas tinham uma vida relativamente mais modesta do que os outros fazendeiros do Vale Esmeralda, na Província do Tigre. O dinheiro que lhe foi oferecido a ser entregue para o velho casal em troca de sua vida parecia bom demais para ser verdade, mas como eles achavam que ela fora contratada, não havia com o quê se preocupar, afinal. E, em teoria, ela faria sim um trabalho importante, e seus pais receberam o dinheiro, então todo mundo saiu ganhando, certo?

            Era complicado, pensar naquilo a deixava zonza, então resolveu pensar na viagem que teve até ali. Era mais agradável pensar naquilo do que nas nuances do que ela fizera pelo bem de seus pais.

            O Vale Esmeralda era um assentamento oriental que ficava nas áreas seguras do que antes era conhecido como China, o país mudou de nome para algo que se adequasse aos “novos” do mundo. Hoje, aquelas terras se chamavam Império dos Céus, relembrando a glória dos imperadores e reis antigos. As terras daquele país lutavam contra a expansão das infecções do que acontecera no Dia das Explosões que criou as Terras Desoladas, mas ainda tinham muito terreno que lhes pertencia e que era fértil e saudável para suportar a vida da fauna, da flora, e das pessoas. As coisas eram minimamente seguras, e prósperas,  e a economia do país e dos territórios era boa o bastante, mas algumas regiões estavam sozinhas e sem ajuda de forças maiores como governos ou líderes de clãs ou tribos.

            E para Hannah Yu-Yanjing, a vida poderia ser muito melhor, apesar de ser boa o bastante. A jovem queria mais, sempre fora uma sonhadora e uma amante do novo e do maior, mesmo que a vida no campo fosse para ela algo tão bom e pacífico que lhe trazia sorrisos sinceros ao acordar. Mesmo que sua vida fosse muito modesta, que seus pais não se importassem com a situação, Hannah não podia evitar de pensar naquilo e em como ela podia ajudar aos pais a terem uma vida mais adequada, mais confortável.

            E, se com isso ela podia aproveitar a chance de viajar pelo mundo e ver lugares novos, tanto melhor. Assim sendo, a garota passava boas horas de seu dia depois de adiantar o trabalho na fazenda pela madrugada estudando e lendo, aprendendo mais e tentando sentir para onde ela queria ir. Com outras quatro línguas aprendidas num espaço de meses de dedicação e prática (seus pais não podiam evitar de apoiar e ajudar a menina), ela sentia que estava pronta para ir... À lugar nenhum. A realidade a acertou em cheio quando lembrou que não tinham muito dinheiro para viajar para outro país, e ela não tinha como conseguir um emprego estrangeiro que lhe desse a chance de enviar dinheiro aos pais. Parecia injusto, mas culpar o governo que lidava com problemas militares de larga escala pela saúde da população que viva tão próxima de terras amaldiçoadas pela doença, pelas mutações horrendas que eram mantidas atrás de enormes muralhas de aço e ferro, parecia ainda mais injusto.

            Então, o jeito era trabalhar na fazenda, juntar o dinheiro necessário e a documentação necessária para finalmente viajar e ver um mundo novo.

            Foi numa quarta-feira que um estranho visitante no pequeno vilarejo onde ela morava, vestido de terno e gravata, sapatos caros, e acompanhado por duas pessoas estranhas. Também vestidas de forma muito chique e cara, mas o que os deixava estranhos não eram suas roupas, mas sim seus rostos: usavam máscaras bizarras delineadas pelos olhos, maçãs dos rostos, lábios, e nada de seus rostos reais podia ser visto. A máscara do homem era negra com linhas douradas, e a máscara de sua parceira era vermelha com linhas violetas. E eles ofereciam algo muito bom, algo pelo qual Hannah esperou por tanto tempo: uma oportunidade, um emprego, uma compensação monetária aos seus pais por privarem o velho casal de sua filha e ajuda na pequena fazenda que tinham.

            Não foi uma decisão difícil de tomar: seus pais a apoiaram, queriam que a filha tivesse um grande futuro, aceitaram sua partida com um sorriso no rosto e lhe dando bons votos e bênçãos, pois tinham fé no potencial da garota, já que viram o trabalho duro dela, a dedicação em seus estudos, e sua tristeza ao perceber que batia em becos sem saída, até que, enfim, a saída surgiu. Apesar da triste despedida, os pais dela estavam felizes, e assim, tudo se resolveu normalmente.

            A viagem até o estado capital, o aeroporto, o avião, as paisagens pelas janelas quando voando, a aterrizagem, a nova cidade... Tudo deixou Hannah deslumbrada pela novidade, e quando chegou à Howlingtown, o sentimento não sumiu. Ou, mais precisamente, durou apenas até que ela foi confinada àquele quarto de hotel na Zona Baixa, um apartamento meia-boca com pouca mobília e pouca limpeza, e ali devia ficar sem poder sair. Recebia pouca comida, nenhuma visita, e não tinha contato algum com o mundo exterior. Frustrante, assustador, estranho e bizarro, Hannah começou a perceber que alguma coisa realmente ruim estava acontecendo. E quando leu o contrato com mais calma e mais atenção, viu do que se tratava a segunda clausula de “contratação”: dizia claramente, de forma legal, que ela permitia ser propriedade do contratador, autorizando que ele fizesse com ela o que lhe interessasse, e caso o contrato fosse quebrado, não só seus pais seriam presos, como também ela seria morta...

            Hannah temeu que as leis de outros lugares fossem tão severas, mas aquilo era ridículo, exagerado. E infelizmente, ela nada podia fazer contra. Se seus pais pudessem ter vidas melhores com o dinheiro que receberam, tudo bem para ela. Se seu sacrifício significava que fizera algo de bom por alguém que amava, ótimo. Era até melhor daquela forma.

            Fechando o livro, Hannah suspirou e foi esquentar uma refeição em seu pequeno micro-ondas, quando ouviu uma batida na porta que gelou sua pele e lhe enviou arrepios pelo corpo.

            Ela não sabia dizer o motivo, mas aquilo a assustou. Talvez, enfim, fosse seu destino chegando.

            Era de manhã, ou assim parecia. A nebulosidade do dia era intensa, difícil dizer que horas eram pois havia pouca luz. Chovia torrencialmente, como acontecia naquela época do ano, com ou sem aviso prévio. Judy acordou, espreguiçando o corpo magro e em forma, até sentir que havia uma camada larga de tecido sobre ela que não era o cobertor: uma camiseta, enorme para o tamanho diminuto dela de um metro e cinqüenta centímetros de altura. Se perguntando como aquilo aconteceu, ouviu o trinco da porta da frente se abrindo, e lá estava seu anfitrião favorito: Pedro trazia consigo várias sacolas, caixas, algumas delas pareciam realmente quentes apesar da chuva do lado de fora, pois exalavam uma névoa esquisita.

            E havia um cheirinho de fritura no ar. O que quer que fosse, parecia saboroso.

– Bom dia, lobo mau – Judy provocou, sentando-se na cama em cima de seus joelhos enquanto bocejava de novo – Dormiu bem?

– Não dormi.

– É sério? E não está sentindo sono?

– Nem um pouco – Pedro respondeu, pondo algumas sacolas em cima da mesa da cozinha, onde trabalhava, e as caixas fumegantes em cima da mesinha da sala.

– O que trouxe aí? Tem um cheiro bom.

– Que bom que você finalmente perguntou – Ao remover os embrulhos, Pedro revelou pacotes de material hermético, para impedir que a chuva pudesse estragar pedaços de carne assadas, à moda grega, garrafas de bebidas quentes e pacotes menores de acompanhamento – Como eu não me sentia inclinado a cozinhar num dia tão molhado desses, resolvi sair pra buscar algo quentinho. Levou um tempo, já são quase onze horas, mas valeu a pena.

– Não podia ter chamado o serviço de entrega?

– E deixar o entregador ensopado feito um homem se afogando? Jamais.

            Aquele era o Pedro que ela conhecia. Sempre gentil, disposto a fazer sacrifícios pelo que queria. Gestos assim a deixaram cativa de seu charme desde que fora estudar no Instituto, e gostou dele cada vez mais que sabia algo a seu respeito. Olhando para si mesma, notou que a enorme camiseta só podia ser dele, e pensou que havia duas possibilidades: ou preocupou-se de ela ficar com frio durante a noite, ou estava tentando cobrir o corpo dela para não se sentir com vergonha.

            Qualquer que fosse o significado daquela atitude, ela achou fofo.

– Acho que hoje vai ser um dia bem tranqüilo – Dizia a fauna, levantando-se e espreguiçando mais o corpo. Notou que por mais que elevasse o corpo, a camiseta ainda deixava suas partes baixas ocultas, o que ela respondeu com um resmungo de raiva. Pedro respondeu rindo de satisfação.

– Ainda bem que a camiseta serviu.

– Isso é maldoso comigo, sabia?

– Não acho, hoje está excepcionalmente frio, e você, se exibindo toda na sua malevolência de tentar me seduzir, não seria boa idéia fazer isso se estivesse gripada.

– É fofo da sua parte, mas – Judy sentou-se ao lado de Pedro no grande sofá – minha grossa camada de pêlos de carneiro pelo corpo me impede de sentir tanto frio, é quentinho. Então, nesse caso, eu poderia ficar nua sem problemas.

– Discordo.

– Por quê?

– Se ficar nua, te ponho no forno e faço ensopado de carneiro – Respondeu o lobisomem, indo à cozinha para buscar garfos, facas, pratos e copos para ambos.

            Judy pensou se aquilo era uma provocação uma ameaça de morte. Ficou com uma expressão sonhadora boba no rosto, pensando no quão erótico aquilo poderia ser, até que Pedro lhe deu um leve beliscão no braço.

– Sonhar acordada não resolve muita coisa, especialmente se seus planos envolvem me seduzir.

– Ah, quem sabe? O que eu sei é que causo uma reação bem interessante em você.

– Você não se atreva a me provocar agora, sua doida. Eu quero almoçar tranqüilo essa carne assada, os peixes grelhados, o pão quentinho com temperos e cobertura de queijo, o ensopado de cebola com alho, além da bebida. Minha concentração está totalmente aqui – Apontou para a comida – E não aqui – Apontou para as coxas de Judy, fazendo-a corar – Pelo menos por enquanto.

            Aquilo a fez empalidecer (de novo). Era tão fácil deixar aquela fauna sem resposta, sem reação, de tão atrevida que ela era, mas tão desajeitada, que Pedro se divertia o bastante para se sentir bem tendo ela por perto. Era agradável, a garota tinha um ar delicado e simples, e a conhecia bem o bastante para saber que ela só agia assim por pura rebeldia e por confiar nele. Em verdade, era uma garota carinhosa, calma, até mesmo comportada. “Apesar de ser tão pervertida”, o lobisomem refletiu. Vai entender o que se passa na cabeça de um sátiro. Sabia muito sobre eles, que tinham um apetite sexual quase insaciável, e que antigamente eram bestas, até que Filóctédes, um dos mentores do lendário Hércules, trouxe cultura, sabedoria, ensinamentos e modos respeitáveis ao seu povo, e junto de Sileno, e de Dioniso, o deus do vinho e da alegria, tornaram-se um povo alegre, pacífico, que vivia nas florestas e protegia a vida selvagem, a serviço de Pã, deus dos animais, da fertilidade, das florestas.

            Nos dias atuais, os sátiros eram proeminentes no mundo das artes: teatro, cinema, música, e tinham vários acordos comerciais com elfos e fadas, na produção de roupas finas.

            Judy, por sua vez, tinha talento para dança. Pelo menos era o que o lobisomem soubera, vira ela dançando duas vezes no tempo em que passou no Instituto, e meio que se arrependia de não tê-la visto dançando mais vezes. Esse pensamento lhe trouxe algo à memória que pretendia perguntar a ela.

– Ei, ovelha tarada – Pedro chamou-a mordidas de carne assada e pão – Você saiu do Instituto pra seguir carreira de dança, não é? O que aconteceu com as outras duas? Elise e Vivi tinham boas notas, e até onde sei, o lugar todo foi reconstruído. Poderiam ter ficado lá.

– Bem, eu saí por três bons motivos – Judy respondeu, limpando a boca com um lenço de papel – Um, queria sim seguir carreira de dança, mas é difícil achar uma companhia de dança em Howlingtown, especialmente feita para sátiros. Dois, eu pensei em arriscar, também, ser professora de dança, em algum curso ou puramente para crianças. Gosto de crianças. E, três, estava procurando um curso de dança onde eu pudesse ser uma dançarina independente.

– Garota ousada – Pedro refletiu em voz alta, fazendo a garota empinar um pouco o peito e, por conseqüência, os seios, de orgulho.

– Sim, realmente, gosto de arriscar.

– Por isso arriscou ficar nua e toda solta dentro da toca do lobo mau?

– Ha-ha, engraçadinho você. Eu já vi que você é carinhoso e gentil, não é um bad boy.

– Quer arriscar isso também? – Pedro desafiou, olhando para ela com interesse.

            Ela engoliu em seco, oscilando entre se arrepender e continuar com aquela provocação. Decidiu mudar de assunto e deixar para depois.

– Voltando à sua pergunta: da última vez que eu vi, Elise me disse que vai seguir farmacêutica, medicina floral, essas coisas.

– É bem a cara dela – O lobisomem concordou, pensativo, embarcando na mudança de assunto.

– Já a Vivi precisou cuidar do irmão em reabilitação. Quando o encontraram, estava muito maltratado, o braço arrancado. Mas você sabe desses detalhes. De qualquer forma, parte do tratamento dele era encontrar um hobby que pudesse ocupar a mente dele, e ela achou que corrida de carros era ótimo para o irmão. A Vivi agora é co-piloto dele no circuito Estrada Selvagem.

– Por essa eu não esperava – Pedro admitiu, surpreso. Aquela felina era a mais imprevisível das três, não sabia por que estava surpreso.

– Mas eu me surpreendi foi com você, virando dono de uma lojinha de bugigangas mágicas e feitiços. Depois do que fez, você poderia ser o que quisesse.

– Algo em mim gritou, sabe? Depois do incidente da bomba no Instituto, quando a gente conversou, só nós dois – Judy novamente corou, ao lembrar daquele momento – Eu usei uma runa, Naudhiz, a necessidade. Aquilo ajudou a localizar o maldito objeto. Depois disso, não parei de pensar no assunto.

            A garota concordava educadamente enquanto dava golinhos naquela bebida quente, pois sabia que lidar com magia era algo incomum nos dias atuais. Poucos, se tanto os sacerdotes de grupos religiosos ou tribos, eram os que sabiam usar magia. Essa forma de energia era mais empregada na robótica, chamada de “mecânica arcana”, e muito se pôde explorar disso. Alguém estudando magia e os usos dela por um sentimento de necessidade era algo raro, e até mesmo admirável.

            Depois de ouvir o rapaz falar pelo que pareceu dez minutos de falatório sobre magia, magia riatulistíca, élfica, e toda uma sorte de coisas possíveis de se fazer com tal poder, Judy começou a se sentir um pouco tonta, “alta”, como diziam. Olhou para seu copo, se perguntando o que era aquela bebida.

– Errr... Pedro, desculpa interromper – Sua voz soava arrastada, quase pastosa –, mas o que, exatamente, é essa bebida?

– É uma combinação de vinho tinto com conhaque e frutas vermelhas, foi cozida e deixada assim pra ficar mais forte. É ótimo pra aquecer no frio.

– E você bebeu, não é? Como não ficou mal com isso?

– Lobisomens têm fator cura, eu dificilmente fico bêbado, e raramente bebo também – Notou a pele da garota suando, seu rosto avermelhado e o sorrisinho tonto – Oh, merda, e você é fraca pra bebidas.

            Judy riu um pouquinho, e continuou comendo, tomando em golinhos a bebida. Pedro observou a garota, cauteloso. Não sabia se devia impedi-la de beber, e não sabia o que poderia acontecer com uma fauna bêbada em casa, e que, para piorar, estava afim dele. Portanto, manter vigilância em cada movimento dela era crucial.

            Pouco a pouco Judy passou a ficar mais “alegrinha”, rindo sem motivo e falando algumas besteiras, e Pedro concordava apenas por cautela. Mas não demorou muito até as coisas degringolarem de vez.

– Ah, eu tô sentindo calor demais, a bebida me deixou um forno... E essa camiseta... – E puxou a peça de roupa por cima da cabeça, removendo-a de um jeito que Pedro achou sensual (contra sua vontade), e jogou-a na cama dele – Pronto, agora me sinto um pouco mais fresca. O que acha?

– O que eu acho sobre o que? – Pedro apenas olhava, imaginando se, com o grau de bebedeira dela, levaria muito tempo até ela cair no sono para poder colocá-la na cama e se esconder na loja.

– Acha que são bonitos? – A garota apontava para os pequenos seios, rijos por causa da bebida, redondos como frutas.

– Não acho que isso importe agora.

– Ah, você não acha? – Apesar de estar bêbada, ela parecia magoada de fato.

– Não, não é isso. São lindos, okay? Você está bêbada e precisa dormir um pouco.

– Não, não quero dormir – Fazia birra feito uma criança. Sem aviso algum, começou a se aproximar de Pedro, e ele teve de manter uma distância segura enquanto havia sofá sob seu corpo.

– Judy, vai pra cama, por favor – Ele não queria ter de usar força nela.

– Ah, poxa, não pode ficar comigo só um pouco? – A voz dela era pastosa, chorosa, a bebida realmente foi uma péssima idéia.

– A sua definição de “ficar” deve ser bem diferente da minha.

– E se for? – Sem que ele pudesse evitar de machucar a garota segurando-a com firmeza, ela subiu em seu colo, olhando profundamente em seus olhos, enquanto as pernas ficavam abertas para que ela pudesse impedi-lo de fugir.

– Judy, essa é uma linha que eu não vou cruzar, okay? – Agora ele estava sério, realmente incomodado. Se tivesse de agarrar a garota e deixá-la sozinha, poderia fazer alguma besteira. Nunca lidara com gente bêbada, mas sabia que muitos acabavam caindo no sono (ou em coma, ou desmaiados depois de uma surra). Infelizmente, nessa situação, poderia machucar ela se usasse de força (considerando que ele era bem menor do que ele). O maior problema era a visão que a garota representava: a pele branca, suada, o peito arfante por causa da pulsação, as coxas abertas, estranhamente macias devido à grossa camada de pêlos lanosos, e para piorar, o que havia entre elas. Mesmo que houvesse uma triangular cobertura ali, era pequena e cuidada, e aquilo indicava uma vaidade de Judy. E aquilo o deixou quase hipnotizado a ponto de perder a razão. Quase.

            Teve de segurar os ombros dela, para evitar que tentasse beijá-lo a força, mas não pôde impedir a fauna de esfregar o rosto no dele, que agüentava aquilo com os lábios fechados, forçadamente, uma expressão de desconforto no rosto. Ela começara a mover os quadris em sua cintura, e aquilo estava passando dos limites.

– Judy, por favor. Se você continuar vou ter que te botar na cama a força – Afastou a garota de perto do próprio corpo. A reação dela foi de mágoa, mas bêbada como estava, não parecia verdadeiro. Antes que ela chorasse, pegou-a no colo, feito uma criança, e ninou ela um pouco, acalmando-a conforme ela parando de soluçar.

            Aquilo lhe trazia à memória um dia terrível, do ano passado, quando ele precisou do apoio físico e emocional dela. O dia do incêndio ficou conhecido na cidade como Fogos da Dor Escarlate, e os lobisomens cantavam em uivos situações fantasiosas envolvendo Pedro e seus amigos. Mas o fato é que o lobisomem fora consumido por uma culpa que não lhe cabia. Sentia-se destroçado, aniquilado, e a “enfermeira” que lhe arrumaram fora Judy, que acalmou suas dores com um carinho do qual ele sentia falta.

            Agora, numa situação completamente diferente, Pedro fazia o mesmo pela fauna: dava-lhe um pouco de conforto emocional. Quando ela começou a murmurar sonolenta entre breves soluços de choro, ele se levantou e carregou a garota até a cama dele. Deitou-a delicadamente e cobriu seu corpo com o cobertor, e deixou a garota dormir. A chuva acalentou seu sono, deixando uma expressão de tranqüilidade nas faces delicadas da garota. E Pedro pôde suspirar relaxado, e teria de impor a regra de “nada de álcool em casa” daqui em diante.

– Certo... Agora, vou trocar de roupa, pegar um pouco dessa comida – e toda a bebida –, levar tudo o que eu puder pra baixo e me entocar na loja – Falava sozinho. Monólogos tornaram-se um hábito quando se sentia irritado, frustrado, pensativo. E agora se sentia muito irritado, mas não sabia com o quê – Duvido muito que alguém vá aparecer pra comprar algo. Com esse toró todo lá fora, é mais provável que alguém entre pra se esconder da chuva. O que também é improvável, já que eu duvido que alguém esteja disposto a sair de casa num temporal desses. Mas eu saí, o que quebra a lógica, mas há a possibilidade... – E ia falando, falando, trocando de roupa, empacotando um pouco da comida ainda quente, e pondo guardanapos de papel por cima do resto para evitar moscas – ou corvos – inconvenientes. E seu falatório continuou enquanto descia as escadas e abria a loja oficialmente.

                                                           ****

            Obviamente, ele estava errado e correto ao mesmo tempo. Duas pessoas pararam na loja para comprar algumas coisas, conversaram por alguns longos minutos, e saíram. Passava das três quando um entregador precisou se esconder da chuva, e Pedro lhe ofereceu um copo da bebida quente para aquecer o corpo. Não foi fácil para o pobre e ensopado entregador entrar, pois era um centauro, e se movia com dificuldade entre as grandes prateleiras. Por sorte ele não quebrou nada nem derrubou muita coisa. Conversaram pelo que puderam, e logo o entregador tinha de correr (centauros e suas pressas).  E mais tarde, pelas cinco ou seis horas da tarde, duas garotas tiveram de entrar correndo, gritando e rindo, e quanto notaram onde estavam, perderam o fôlego por alguns minutos. Viram então o Lobo Negro Furioso e começaram a falar com ele, como fãs, até passarem para observação dos objetos da loja. Ficaram olhando por duas horas sem parar, depois conversaram com ele duas horas a mais, compraram algumas coisas, e se foram, sorrindo de orelha a orelha, com livros autografados pelo lobisomem mais famoso da década de 20.

            Já era bem tarde da noite quando outra pessoa apareceu. Pedro notou sua presença antes mesmo do estranho entrar. Cambaleante, roupas velhas e puídas, e o cheiro dele era ácido, nojento. Pedro manteve um olho vigilante nele, para evitar que quebrasse qualquer coisa.

            Foi quando ouviu um som borbulhante vindo de debaixo do capuz do bêbado (de tão pilhado que estava com Judy, considerar que aquele estranho estava bêbado parecia lógico ou pura paranóia). Um som esquisito, como o de crustáceos. E mesmo que o capuz estivesse muito baixo a ponto de lhe cobrir o rosto, Pedro sabia que aquele cara olhava diretamente para ele.

– Posso ajudar em alguma coisa...? – Ele perguntou, cauteloso, deixando de lado o garfo com um pedaço de carne que segurava numa mão e o livro que tinha na outra mão, ambos em cima do balcão. E conforme ele se movia, o estranho seguia-o com o olhar oculto. Aquilo parecia suspeito, então decidiu pô-lo para fora – Olha só, eu lamento mas você vai ter que sair. Se continuar aqui vai fazer uma mancha de sujeira enorme no chão, o seu cheiro vai grudar nas coisas... E eu não tô afim de partir pra violência, por isso tô pedindo educadamente: dá pra sair?

            Aquilo era errado. Tão estranho e aleatório que dava para sentir no ar o quão errado era. O lobisomem se forçou a manter a calma, não atacar antes de entender em que tipo de situação estava, mas o maldito zumbido em seu crânio não o deixava em paz. Há meses aquilo não o incomodava, mas estava ali novamente, como um lembrete de algo que ele sequer sabia se podia se lembrar.

            O estranho borbulhou mais um pouco aquele seu som nojento em resposta à voz de Pedro, o que liberou mais daquele cheiro forte. E por mais estranho que o som fosse, aquela coisa falou:

– Vi... olên... ciaaaaa – O estranho gaguejou lentamente.

            Uh-oh. Problema. Aquilo o deixou em estado de alerta, somado ao zumbido que o instigava a atacar. No entanto, o fator do inesperado prevalecia, e como ele não sabia o que viria daquele estranho, o lobisomem manteve os músculos em estado de ação, para qualquer coisa. Mas o qualquer coisa de Pedro não incluía uma língua gigante de sapo saltando em sua direção vinda de uma boca repugnante de crustáceo cheia de tentáculos como barba. Só foi capaz de se esquivar por um reflexo, e fora por um triz, sentindo o ar cortando em cima da cabeça a milímetros de seu cabelo.  E ouvia os passos cambaleantes da coisa vindo até o balcão. Não era amigável, não estava ali sem razão, e era loucura pensar em coincidência naquele momento.

            “Que se dane!”, pensou, num acesso de raiva. Saltou por cima do balcão e recebeu outro golpe automático daquela língua repulsiva, agarrando a ponta dela com a mão esquerda e puxando o corpo ao qual a língua pertencia num movimento brusco. Quando o estranho estava com o pescoço nas mãos de Pedro, ele finalmente pôde dar uma olhada clara na aparência dele: o rosto era uma combinação de escamas de réptil com casca de crustáceo, a boca era uma combinação esquisita de pinças aracnídeas e de caranguejo, com os estranhos tentáculos a guisa de barba coleando e chicoteando o ar como se tivessem consciência própria. Havia oito pares de olhos, grandes, pequenos, bulbosos e brilhando em azul turquesa, todos eles fendidos como os olhos de um réptil.

            As mãos, por sua vez, tinham sete dedos cada, dois dos quais eram puramente garras afiadas e cortantes, enquanto os outros cinco dedos eram finos e firmes, com estranhas crateras que causaram em Pedro um desconforto grotesco. A língua, por sua vez, se parecia com os tentáculos ao redor da boca, isso até a extremidade que agarrava seu braço, que mudava de textura até tornar-se áspera, com espinhos e o que ele sentia serem ventosas, grudando em sua pele e puxando, a sensação de dor causada pelos puxões ardia como tapas de uma mão de ferro muito quente, mas tinha de agüentar aqui, pelo menos até encontrar uma solução.

– Olha só, parceiro – O lobisomem rosnava entre grunhidos de raiva –, eu não sei que merda você quer aqui, mas na real, teria sido bem diferente se você tivesse saído pacificamente!

– Vooo... Cê... – A coisa respondeu, um som borbulhante e gutural. Mas a situação piorou quando a coisa grudou uma das mãos na face esquerda de Pedro.

– Agora chega! – O lobisomem urrou, e com a mão direita livre, passou a socar o rosto do “monstro”. Parecia esquisito chamar aquela coisa de monstro, mas aquela palavra era a única coisa em comum entre Pedro e ele. Até que soubesse o que era, de onde era, não poderia simplesmente chamá-lo de “Steve”, ele pensava com um humor azedo.

            Os socos continuaram, o som ecoante de uma casca se partindo e carne molhada e nojenta sendo batida repetidamente, e Pedro sentiu o aperto em seu braço diminuir, mas a língua da coisa continuava grudada nele. Dentro de sua mente, ele só ouvia o zumbido, semelhante a uma granada flash cegando-o para qualquer outra coisa, deixando-o surdo para os sons gorgolejantes daquela aberração medonha. E o lobisomem se cansou, acessando parte de sua transformação e passou a socar com mais força, até ver-se socando uma coisa grande, oval, toda quebrada e vazando liquido verde que por acaso continuava ligada a língua que já não segurava seu braço esquerdo, cheio de arranhões profundos e pele faltando, os cortes já cicatrizando.

            A respiração arfante, a visão turva numa névoa carmesim de agressividade, o lobisomem parou para observar a obra de sua fúria. Ficou assim por vários minutos, e o zumbido foi sumindo novamente até tornar-se um silêncio profundo em seu crânio.

            Ele esperou alguns instantes, para ver se aquela coisa voltava a se mover, se poderia se curar, ou se alguém viria procurar por um “bicho de estimação experimental que dera errado”. Àquela altura Pedro já não duvidava de mais nada, e qualquer coisa que acontecesse em seguida lhe parecia possível. Então, voltou para trás do balcão, terminou sua comida e chamou Nevasca, o corvo. O animal veio voando ao seu comando, lhe trazendo seu celular preso aos pés.

– Valeu, Nevasca. Hora de chamar, tarde da noite, os únicos capazes de me ajudar a resolver essa meleca toda. Um velho amigo e um louco com sua patrulha. E aí, tá com fome?

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