O Outro Lado do Espelho
O Outro Lado do Espelho
Por: J. Ferrari
A princípio, uma discussão

2005 — Rockford, Illinois

Julie

— Que coisa, Caroline! Pare de gritar! — eu pedia, levando minhas mãos ao alto enquanto ela via sua ridícula série. Eram mais de onze da noite. Na minha opinião, já tinha passado a hora de ouvir seus fangirlings.

— Julie, deixa de ser chata, vai! — ela disse se ajoelhando no sofá para me encarar. — Vai dizer que esse loiro aqui não é lindo?

Ela me puxou para perto da tela da TV. Eu revirei os olhos e suspirei.

— Ele é bonito — respondi, apontando para o rapaz de cabelos escuros, um pouco para contradizê-la, um pouco por sinceridade. — Mas mesmo assim, a série é estúpida!

— Não é estúpida! Você que é, por criticar tanto algo que você nem conhece.

— Ah, cale a boca, isso aí fala do quê? — Apoiei uma mão na cintura e a outra se moveu com desprezo, enquanto eu dizia: — Dois caras que rodam os Estados Unidos, matando coisas que não existem! E essa diabetes toda que é a relação deles? Tenha dó! Quantas vezes eles morreram em, sei lá, meia temporada? E só para salvar um ao outro! Que bobagem!

— Bobagem? — Ela ficou de pé sobre o sofá, pisoteando as almofadas. — Sou sua irmã mais nova! Você não me protegeria diante de uma situação perigosa?

— Só temos um ano e meio de diferença, Caroline. E você sabe se cuidar muito bem. Nunca precisou de mim para se defender, para a alegria dos meus nervos. Eu já tenho muita dor de cabeça sem ter que lidar com os seus problemas.

Caroline semicerrou seus olhos para mim com puro rancor.

— Tomara que uma Shtriga te pegue durante a noite — ela disse.

— E eu lá sei o que é isso?! — perguntei retórica, balançando as mãos.

— Uma Shtriga é uma bruxa que...

— Eu não quero saber!

Ela saltou para o chão, dando um grunhido raivoso com a garganta. Os fios lisos e castanhos de seu cabelo escorregaram por cima do ombro, alcançando seu quadril. Caroline era mais baixa que eu, portanto, jamais me intimidaria. Além disso, a extensa largura dos seus quadris a deixavam bem cômica.

— Você é muito anormal! — ela acusou. — Como não pode gostar da própria família?

— Eu nunca disse isso!

— Ah! Disse sim! Lembra quando você foi para aquela festa da escola e voltou bêbada pra casa? Eu briguei com você por ter bebido e avisei que papai e mamãe iriam fazer pior se descobrissem! Você ficou resmungando que queria que eles nem voltassem pra casa...

— Ei, ei, ei! Eu não lembro isso! — Sacudi as mãos para interrompê-la.

— É claro que não! Você nem lembrava seu nome! Se bobear, naquele estado, você até perdeu a...

— Cale a boca, Caroline! Você não sabe o que está falando!

— Então tome cuidado! — Ela cruzou os braços. — Porque eu, até hoje, estou guardando esse seu segredinho sujo! Papai e mamãe já estão voltando do trabalho. Você sabe que para eu abrir a boca não é nada.

— Você não vai fazer isso! — Eu avancei na direção dela.

— Então retire o que você disse sobre a relação deles e sobre a série!

— Eu não vou retirar nada! Por que você idolatra tanto isso? Sério, não tem nada de mais nela! Você acha que acreditando no que aparece nela você vai ser atacada e os irmãos Rottenberg vão vir te salvar?

— Primeiro — Ela começou, erguendo o dedo indicador de modo didático. —, é Hein-sen-berg. Segundo, você não tem que se meter no que eu acredito ou deixo de acreditar! E se eles realmente existirem? E se todas as lendas que aparecem na série forem reais?

— Não são!

— E como você sabe?

— Porque eu nunca vi! — Eu gritei tão forte, com tanto desespero para enfiar a verdade na cabeça dela, que minha garganta arranhou e minha voz falhou. Tossi e me recuperei para acrescentar: — Ninguém nunca viu monstros, Caroline! Eles não são reais!

Ela sacudiu a cabeça em indignação e apertou os olhos para mim.

— É impressionante como você pode ser tão diferente de mim! Por que é tão cética? — ela disse.

— Porque eu consigo enxergar o que é real, ao contrário de você e dos seus amiguinhos hipócritas! Aqueles otários que dizem acreditar...

— Não fale assim deles — Ela bateu o pé no chão.

— Caroline, acorda! Aposto que você é a única entre eles que realmente acredita Nele! — Ergui o dedo na direção do céu.

— Como assim?

— Os seus amigos fingem ser crentes pra não serem excluídos! Eu, por outro lado — Apontei para meu peito. —, não tenho vergonha de dizer que não acredito no cara lá de cima! Não existe o Inferno, não existe o Paraíso! Você não vai pra lugar nenhum quando morrer! Vai ficar na cova, sete palmos abaixo da terra, e não vai sair!

Eu abaixei os ombros para tomar fôlego e então notei que seus olhos estavam marejando. A culpa esmagou minha consciência, fazendo-me perceber que eu não devia ter dito isso...

— Por que não experimenta guardar suas opiniões pra si mesma? — ela perguntou, também furiosa, com a voz embargada e correu para o quarto, batendo a porta atrás de si. Eu fiz o mesmo, com um pouco mais de força.

A verdade era que eu odiava brigar com a Caroline, especialmente nos últimos dias. Já era difícil o bastante morar naquela casa com nossos pais. Contudo, falei sério quando disse que achava a série dela ridícula! Tudo bem que os personagens eram bem gostosos, mas não era só isso que importava. E, devido ao círculo familiar em que eu vivia, não havia muita coisa na trama com que eu me identificava. A relação perfeita daquele mundo fictício era pura utopia.

Fazia pouco tempo que descobri que Elisa, minha mãe, estava traindo meu pai, Martin, com um amigo do escritório dela, enquanto meu pai estava fazendo o mesmo quando viajava para outras cidades a trabalho.

Como eu sabia disso? Fui à empresa da minha mãe uma vez, entregar uma pasta de documentos que ela tinha esquecido em casa, e a vi devorando um homem um pouco mais novo que ela, sobre uma impressora. Quanto ao meu pai, peguei seu celular, em uma das noites em que ele estava bêbado demais para lembrar o próprio nome, e me deparei com mensagens que me fizeram vomitar. É, eu sei: quem procura, acha. Porém, isso não mudava os fatos.

Agora você pergunta: "Por que não tirou satisfações com eles?". Boa pergunta, eu respondo! O casamento deles não era problema meu. A única coisa que me interessava era como tratavam a mim e a Caroline, e isso já era problema o bastante. Caroline era mais tolerante que eu, mas a verdade era que nossa casa era o último lugar em que deveríamos estar. Eu tinha planos para ir morar sozinha e levá-la comigo. Infelizmente, me restava esperar pouco mais de um ano para atingir a maioridade e, até lá, nós duas não podíamos brigar com a frequência que sempre fazíamos. Mesmo que alguma coisa mudasse antes dos meus dezoito anos, eu não mudaria de decisão.

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