III

Frederico Adler estacionou o jipe em frente à Pousada do Monjolo. Saltou lentamente do veículo, reclamando das dores nas juntas, efeito natural daqueles que chegam aos sessenta e cinco anos sem se preocuparem muito com exercícios físicos regulares.

Frederico era de estatura mediana, um metro e setenta e cinco centímetros mais ou menos, um pouco corpulento sem chegar a ser gordo, mas com uma barriguinha instalada e tomando forma. Tinha os cabelos cheios e lisos, penteados para trás e grisalhos; a barba é que já estava completamente branca. Ele a exibia orgulhoso emoldurando o rosto crestado pelo sol e pela vida ao ar livre. Frederico detestava se barbear e por isso a solução encontrada foi deixar a barba crescer. Seus cabelos também só eram cortados a cada seis meses, mas isso não era desleixo: era um costume que acompanhava o velho há muitos anos e do qual ele se agradava.

Era sábado e Frederico já tinha feito as compras para abastecer a pousada durante a semana. Fazia isso porque gostava muito da família de Vicente e lhe dava prazer comprar os mantimentos, escolhendo aqueles que estavam mais bonitos e saudáveis. O hábito transformara-se em rotina; sua ligação com a pousada era apenas sentimental, mas ele absorvera as compras do sábado como uma responsabilidade sua, desde os tempos em que morou ali logo que chegou ao Glória. Frederico considerava a família de Vicente como sua própria família.

Eva estava no balcão da recepção e seu rosto abriu-se num sorriso largo e bonito, emoldurado por duas covinhas, deliciosamente simpáticas, quando viu Frederico Adler chegando. Sentia um carinho enorme pelo velho amigo da família! Ela estava com vinte e cinco anos, uma jovem e bela mulher! Era a filha caçula de Linda.

Frederico Adler chegara ao Glória no final da década de sessenta, recém-formado em medicina e com uma enorme desilusão no seu currículo. Vinha da Bahia, de Salvador. Ele havia acabado de concluir seu curso e iria casar-se. Certo dia, sentindo-se mal, com terríveis dores nas costas, foi levado a um hospital. Lá realizaram uma punção nos pulmões e retiraram uma boa quantidade de água da pleura. Fez vários tratamentos, ficou internado por alguns dias e, por fim, um terrível diagnóstico concluiu: câncer do pulmão. Os exames confirmaram.

 Naquele tempo, e ainda hoje, o tratamento para essa doença era praticamente inexistente e ela se estabelecia como uma sentença de morte. Não havia esperanças de recuperação. Quando acontecia uma cura, situação extremamente rara, principalmente quando se dava de forma natural, ou seja, sem acompanhamento profissional, era considerado um milagre. E tais fatos deixavam os médicos embaraçados sem saber como explicar o acontecido.

Triste e desiludido, vendo sua vida, sua carreira, sua noiva, seu casamento, enfim, todos os valores pelos quais sonhara desmoronarem-se, Frederico resolveu abandonar tudo e fugir para um lugar ignorado de todos e onde pudesse morrer em paz. Sabia que era uma covardia, mas não teria forças para ficar à mercê da piedade geral. Por isso, deixou uma carta expondo suas razões, explicando sua doença e partiu para um paradeiro desconhecido.

Depois de algumas peripécias passando por várias cidades do sul da Bahia e do norte de Minas, viajando sem destino e sem muito dinheiro no bolso, veio dar com os costados em São João Batista do Glória, mais precisamente na pousada do Monjolo.

Vicente Braz, o dono do estabelecimento, recebeu-o e arranjou-lhe um quartinho pequeno nos fundos da casa principal por um preço módico. Ali, o jovem médico Frederico Adler, fugitivo de si mesmo, passou a viver, apreciando seus receios e convivendo com seus fantasmas. Era o ano de 1969 e Adler estava com vinte e cinco anos.

A pousada do Monjolo era um pouco retirada da cidade; na verdade, era a própria casa de Vicente, transformada em pousada. Hoje, com o crescimento expansivo do município, fica praticamente no perímetro urbano. Mas quando Frederico Adler chegou ali, ainda não havia a febre desencadeada em cima do turismo ecológico, trilhas, caminhadas, tracking, tirolesas e outras atividades que atualmente atraem milhares de apreciadores de esportes ecológicos ao Glória e a toda a Serra da Canastra.

 Naquele tempo, era apenas a família de Vicente que trabalhava na pousada. Vicente, sua mulher Vera e a filha Linda, de quinze anos, que ajudava na portaria e nos serviços gerais. Vicente ainda tinha mais dois filhos: Lúcio, com dezessete anos, estava fazendo o curso pré-vestibular e morava em Belo Horizonte, na casa de seus avôs maternos, e Carlos, com dezenove, cursava engenharia em Alfenas, morando em uma república de estudantes.

A casa era tipo um chalé com um jardim na frente e quintal nos fundos, por onde passava um ribeirão de águas cristalinas. Uma pequena parte dessa corrente era destinada a alimentar um monjolo antigo, mas que ainda funcionava para pilar o café e moer o milho transformando-o em fubá. Vinha desse monjolo o nome da pousada.

Para quem não conhece, um monjolo é um artefato bem antigo muito utilizado no interior de Minas e São Paulo, principalmente nas fazendas de café. Produzido artesanalmente de um tronco de madeira dura, geralmente peroba trabalhada, e onde em uma das extremidades fica uma espécie de cuia para conter a água do córrego; a cuia recebe a água que vem desviada e a retém, o peso da água na traseira faz com que todo o engenho se levante por ser maior do que o peso do martelo do monjolo na frente. Ao atingir a altura máxima do artefato, a água escoa-se por uma abertura e o martelo de madeira pesada desaba de uma altura razoável. Na verdade, esse martelo que está preso na parte dianteira do tronco é uma mão de pilão que cai com força dentro de um gral de madeira escavado e pila o grão que está ali dentro. Este ciclo se repete indefinidamente até que se desfaça o caminho utilizado para levar a água para dentro do sistema.

A pousada, atualmente, já sofreu reforma e ampliação para fazer frente à procura crescente de turistas que vêm ao Glória para desfrutar de suas belezas. Hoje o jardim se transformou em um estacionamento coberto com um telhadinho rústico, o chão foi revestido por uma brita bem fina para manter os veículos dos hóspedes fora da lama vermelha, característica da cidade. Para a recepção, sobe-se por uma escadinha de pedra de quatro degraus com canteiros do lado, onde belas e perfumadas rosas enfeitam a entrada.

A casa fica no alto, sobre um alicerce também de pedra, em cima do qual corre uma varanda com balaústre de madeira. Embaixo desse alicerce, o canteiro das rosas continua emoldurando toda a fachada. Tudo isso arrumado com muito bom gosto, dando uma harmoniosa simetria a todo o conjunto.

Internamente, onde anteriormente havia uma ampla sala de jantar de estilo rural com um assoalho de madeira rústica, agora existe um salão para refeições onde funciona o restaurante e a cozinha. Um pavilhão novo foi construído no fundo com dez quartos, todos com ar-condicionado, frigobar, banheiro, água quente e TV, para onde se vai através de uma passarela coberta e calçada com lajotas sextavadas.

Em um chalezinho afastado, nos fundos do terreno, moram Vicente, a mulher e a neta Eva. Linda e o marido possuem uma casa no centro, onde exploram um comércio. Os outros filhos também casados moram nas cidades onde trabalham.

Perto da recepção, algumas poltronas de vime, com colchonetes floridos em cima; uma mesa de centro também de vime com tampo de vidro; uma cesta com revistas e jornais e uma TV com tela de LED de 43 polegadas, equipada com canais por assinatura, completam o quadro da sala de estar da pousada.

Mas na época em que Frederico chegou ali era bem diferente. Um jardim deixava a entrada afastada do portão, que tinha um arco de ferro por cima; uma trepadeira florida se enrolava na armação formando um portal; o pé de buganvília cor de tijolo espalhava uma cascata de flores coloridas no caminho entre o portão e a varanda, onde se subia pelos quatro degraus. As rosas já estavam ali, embora não tão meticulosamente cuidadas como agora.

Naquela época, a casa toda tinha seis quartos: dois para a família e quatro para aluguel. Nos fundos, um quartinho independente para o caseiro, que era onde Frederico fora instalado.

Ao preencher a ficha, Frederico colocou sua profissão: médico. Não queria que ninguém soubesse, já que não se sentia disposto a clinicar. Doente, como se encontrava, não sentia vontade de trabalhar; viera para ali a fim de morrer em paz. Mas naquele tempo havia uma carência muito grande de profissionais na área de saúde, principalmente nas pequenas cidades interioranas. E Linda, ainda uma criança, não tomou conhecimento das intenções de Frederico em manter-se longe das consultas e encarregou-se logo de espalhar a notícia na cidade de que havia um médico hospedado na pousada. O resultado é que começou a haver uma romaria, principalmente de moradores da zona rural, gente humilde que precisava dos recursos profissionais de Frederico, atrás de uma consulta para tratar as suas mazelas.

Não tendo escapatória, o médico começou a atender na própria pousada, cobrando uma taxa mínima, simbólica, apenas para sua subsistência e pagar o aluguel do quartinho. O fluxo de atendimentos foi aumentando e logo ele precisou alugar uma casa e montar um consultório para dar vazão à clientela, que a cada dia crescia mais.

A maior parte dos clientes não pagava nada devido às suas condições precárias de vida. Muitos, entretanto, levavam um agrado ou um presentinho para o médico; geralmente eram artigos que eles produziam em suas lavouras, por isso o médico sempre estava abastecido de queijo, leite, manteiga, frutas, verduras e legumes, biscoitos de polvilho ou pão de queijo, frangos, patos, marrecos e até algum porco; tudo isso ia parar na casa dele junto com outras manufaturas regionais típicas.

Assim, sem ter muito onde gastar, sua renda era suficiente para manter-se, pagar aluguel e as refeições, que ele continuou fazendo na pousada para onde mandava todos aqueles “trens” que ia recebendo; e ainda sobravam uns bons trocados que, poupados com habilidade, deram a Frederico um capital razoável. O resultado é que em pouco tempo ele já possuía o dinheiro suficiente para comprar a própria casinha onde estava morando.

A verdade é que Frederico se revelava um excelente médico. Conseguia realizar curas cada vez mais surpreendentes! Sua intuição era fortíssima e sempre o conduzia a resultados muito positivos. Começou a perceber, também, que o grande problema do ser humano não era apenas a doença do corpo: a da mente, sim, era a principal!

A doença psíquica aliada a uma vida sem objetivos é que minava a saúde de uma boa parte daquele povo. As mulheres principalmente, posto que se sujeitassem a parir um filho por ano, emendando gravidez com gravidez. E por não ter escolha e nem coisa melhor a fazer do que gerar e criar meninos e meninas, sem qualquer perspectiva de alterar esse quadro esdrúxulo, elas sofriam o marasmo e o tédio das suas vidinhas insípidas.

Mesmo sendo gente simples e humilde, cada um dos pacientes que chegavam a ele trazia uma poderosa carga de sofrimento interior não percebido e nem, sequer, pressentido! Eram sentimentos escondidos bem no fundo, no mais íntimo da alma, de onde o médico, com muita habilidade e psicologia, conseguia retirar os subsídios para um tratamento eficaz.

E aí vinham as conversas edificantes e os conselhos para uma vida mais tranquila, o alerta para arranjar uma ocupação fora da rotina que proporcionasse distração e ao mesmo tempo uma renda, fato que sempre melhora a autoestima de cada um. Era, portanto, mais um médico da alma do que do corpo propriamente dito. E quantos não mudaram suas vidas com os sábios conselhos do doutor?

Ao perceber isso, Frederico começou a se dar conta da verdadeira missão que se debruçava sobre o seu futuro. E no auxílio que levava aos que buscavam seu concurso, foi preenchendo o objetivo do seu trabalho comunitário. Por isso, rejeitou ofertas para trabalhar em hospitais ou clínicas. E, ainda, constituiu-se em um verdadeiro Robin Hood da medicina, cobrando caro dos ricos e dedicando-se muito mais aos pobres e necessitados.

O tempo ia passando e Frederico Adler, absorvido na atividade que agora lhe dava um profundo prazer, não piorava do mal que trazia dentro de si. Pelo contrário, a cada dia que se passava sentia-se melhor. Para falar a verdade, chegava a esquecer sua doença durante a maior parte do tempo. Era como se renovasse sua vida no momento que a dedicava ao próximo. Não sentia mais dores, o que o intrigava bastante, pois como médico sabia muito bem quais os sintomas que aquele câncer provocava.

Depois de três anos na cidade, resolveu procurar um médico em Belo Horizonte para avaliar a sua situação. Realizou os exames solicitados e ficou estarrecido quando o colega lhe comunicou que sua saúde estava perfeitamente normal. Admirado, relatou o histórico de sua doença e o estado em que se encontrava antes, quando veio ao Glória. Apresentou os exames realizados em Salvador, e aí foi a vez do outro médico espantar-se e pedir novos exames. O resultado manteve-se: inexplicavelmente, estava curado!

Quando Frederico voltou ao Glória, era outro homem. O fato de estar curado mexeu profundamente com a sua maneira interior de ver e sentir as coisas. Se ele não era um materialista ferrenho, pelo menos se revestia de um grande ceticismo quanto a qualquer acontecimento transcendente, como, aliás, a maioria dos facultativos que exerciam a mesma profissão que ele.

Como médico, não acreditava que um tumor perigoso e agressivo como o situado nos pulmões de alguém pudesse regredir sem qualquer tratamento a ponto de desaparecer. Como homem, a partir daí, começou a pensar que podia existir um sentido maior na existência humana que não era fruto do acaso nem fazia parte de uma estranha coincidência. E, então, resolveu estudar para poder conhecer essa força capaz de modificar situações naturais a ponto de produzir efeitos miraculosos, como esse que havia ocorrido com ele.

E na sua busca atrás de conhecimento, enveredou por caminhos jamais sonhados. Caiu amiúde! Precisou rever e modificar conceitos e a navegar por águas, às vezes calmas ― quase sempre turbulentas ―, que podiam trazer tranquilidade ou remexerem o lodo do seu íntimo, provocando redemoinhos furiosos que o deixavam à mercê de suas próprias conclusões, na maioria, despidas de quaisquer explicações.

Não é fácil estudar e entender sozinho a mecânica do procedimento que acumula a sabedoria dos iluminados. Nisso, Frederico gastou quase quarenta anos de sua vida, convivendo com seus livros e aplicando as suas teorias na prática diária do exercício da medicina. E clinicar para os pobres foi fundamental para fortalecer a base, o alicerce de suas novas convicções filosóficas!

Seu jipe verde, carro que adquiriu para poder percorrer as regiões mais distantes da zona rural levando sua medicina especial para curar o corpo e a alma, era recebido com manifestações de júbilo e carinho pelos colonos que se espalhavam por aqueles sítios.

E assim se tornou o “médico itinerante e familiar” de todas aquelas pessoas pobres, a quem ele conhecia pelo nome de batismo. E dava consultas nas comunidades distantes, levava os remédios de amostras grátis que recebia dos laboratórios e ainda fazia palestras sobre saúde preventiva e, também, sobre a saúde do espírito, esta última de grande importância entre aquela gente humilde.

Mas esbarrava com frequência na crença que o povo, extremamente conservador de suas tradições, dedicava aos santos e ao padre. Por esse motivo, precisou estabelecer um canal de comunicação muito bem coordenado com a Igreja, instituição fortíssima no interior de Minas, e se ele e o padre tinham ideias diferentes com relação à criação do mundo, pelo menos comungavam com o mesmo propósito quando o assunto era esclarecer o povo. A pastoral realizada pelo religioso também se preocupava com uma qualidade de vida melhor para aqueles colonos humildes, e isso firmou um acordo tácito entre os dois grandes poderes representantes do pensamento da sociedade organizada: a religião e a ciência.

A década de 70 e o início dos anos 80 se caracterizaram por uma grande aproximação da Igreja com as classes menos favorecidas, contando com padres e bispos modernos, cheios de ideias avançadas bem menos retrógradas do que as originais que sempre nortearam a Igreja Católica.

Esta corrente tentava levar a cabo uma reforma agrária que, para não entrar em conflito com o regime militar revolucionário, adotou o nome religioso de “Pastoral da Terra”, mas que visava um esclarecimento da população rural para lutar pelos seus direitos humanos. A culminância deu-se com o livro de Leonardo Boff, que acabou por retirá-lo do meio clerical: A Teologia da Libertação.

Frederico escorregou e caiu muitas vezes, pois, geralmente, é árduo o caminho do estudante que procura muitas causas para explicar os vários efeitos e fenômenos diversos que teimam em se multiplicar pela face da Terra. Frequentes decepções, mas, vez por outra, quando já se supunha exausto e prestes a desistir, uma vitória! E essa vitória fazia com que recobrasse o ânimo e se dispusesse a recomeçar, com todo o sacrifício, superando os obstáculos e se alegrando com a luz que penetra pouco a pouco, frouxamente, no íntimo do indivíduo perseverante.

Na verdade, Frederico sofria a transmutação interior e mental que visa transformar o chumbo do egoísmo e do pragmatismo no ouro da dedicação às obras humanitárias, fatos que se produzem nos corações daqueles que escolhem amar ao seu próximo. Seu aprendizado não se deu apenas em livros e compêndios, mas principalmente à beira dos regatos, ouvindo o “chuá” da cachoeira e recebendo os influxos da mata e da serra. A natureza é o livro do místico que parte em busca do conhecimento que impregna o mundo desconhecido da mente do Todo. É na solidão do ermo que se recebe a intuição. E a intuição vem repleta dos conhecimentos que emanam dos arcanos da eternidade.

Indo às aldeias, escarafunchando os segredos que afloram do mundo primitivo que se abre para o homem que adentra ao misticismo ancestral, Frederico ia suprindo as lacunas de seu aprendizado; isso é a verdadeira procura pelo saber oriundo dos xamãs e feiticeiros remanescentes dos quilombos de outrora; eles são os guias espirituais das comunidades isoladas, umas poucas ilhas de descendentes de negros, ainda remanescentes de escravos fugidos, onde os usos e costumes arcaicos permanecem e sobrevivem. Algumas dessas raras ilhas encravadas nos chapadões da serra ainda persistem desafiando o tempo.

Com aqueles feiticeiros conhecedores da natureza conviveu Frederico, que com eles aprendeu sua arte milenar de cura. Esses são os últimos representantes de uma cultura atávica, transmitida oralmente por seus antepassados; frequentemente são chamados de ignorantes e analfabetos pela versão social dos entendidos em antropologia que não fazem ideia do seu cabedal. Foi através deles que Frederico adentrou a ciência primitiva das ervas, dos amuletos, dos chás e mezinhas que compõe a fabulosa sabedoria popular das rezadeiras, verdadeiras sacerdotisas da mata e das brenhas do nosso sertão.

A primeira coisa que procurou fazer logo que se viu curado, foi entrar em contato com sua família. Agora, mais do que nunca, reconhecia o erro cometido ao pensar que fugindo do seu ambiente original iria transformar a dor em riso. Agira por instinto apenas, como um avestruz que esconde a cabeça e acha que está totalmente oculto. Porém, em nenhum momento esqueceu as suas raízes ou passou uma esponja sobre o seu passado. Pelo contrário, o remorso só lhe dava mais apertos no coração. Portanto, tratou de viajar a Salvador para dizer àqueles que o amavam que estava vivo e há quatro anos vivia em um cantinho de Minas Gerais tratando de doentes pobres.

Sabia que não poderia mais deixar São João Batista do Glória. Fixara ali as suas raízes profundas e místicas que já faziam parte da sua vida presente e se descortinavam como o futuro almejado pelo seu destino.

Aquela serra exercia uma profunda atração sobre o jovem médico, como um imenso imã agindo sobre uma superfície passível de seu efeito magnético. A Canastra era um divisor de águas. Tanto no sentido real, com suas nascentes alimentando as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul, como também seus influxos percorrendo o interior místico, trazendo novas esperanças ao espírito eterno de um sempre eterno buscador.

Os efeitos quiméricos do misterioso Morro da Babilônia e da Serra do Letreiro haviam penetrado com profundidade no espírito do médico, agora ávido de novos conhecimentos e voos elevados em busca de outros horizontes. As pinturas rupestres que preenchiam as paredes das grutas e cavernas, as estórias de luzes que apareciam frequentemente no topo do monte... tudo isso dava a Frederico uma profunda felicidade, a de poder escalar aqueles paredões e do cimo, do cume, olhando para o lindo vale que a vista descortina, soltar um grito pungente que subia dos seus pulmões, agora curados, para a amplidão: “Eu estou aqui! Obrigado, Senhor, pela minha vida!”

Encontrou os pais ainda morando no mesmo bairro do Engenho Velho de Brotas, a colina que divide a cidade de Salvador em duas vertentes.

A geografia de Salvador é bastante complicada e só o morador antigo consegue entendê-la. Brotas é como se fosse a coluna vertebral da cidade; uma montanha que coloca de um lado a avenida Vasco da Gama, o Rio Vermelho e o Acúpe, e do outro o vale do Bonocô em ambas vertentes, ramificando-se para a Ladeira dos Galés, as Sete Portas e a Vila Laura. A Salvador de hoje também é bastante diferente daquela de quarenta anos atrás. Hoje temos uma cidade moderna, cortada por avenidas e vales, com bairros que surgiram do nada, como, por exemplo, a Paralela, o Imbuí, a própria Pituba e outras aquisições novas para uma das cidades mais antigas do Brasil.

O encontro foi emocionante. Os pais choraram muito, pois pensavam que o filho, devido à carta que escrevera relatando a doença, havia morrido. Também se admiraram de uma cura tão radical sem qualquer tratamento remetendo ao Senhor do Bonfim o crédito para o desaparecimento do tumor maligno. A noiva casara-se. Mas o que ela podia fazer? O casamento foi a saída mais honrosa para ela, que se sentiu abandonada e pouco amada.

Frederico visitou, ainda, alguns amigos do bairro, amigos de infância que se admiraram de encontrá-lo ainda com vida, pois a conversa que circulara ali era a de que ele havia morrido de câncer alguns anos atrás. Depois de muitas conversas amenas, recheadas de recordações agradáveis, resolveu voltar ao Glória, o lugar de seu coração onde encontrara o verdadeiro objetivo de sua vida. Mas deixou com os pais os meios para encontrá-lo, caso houvesse necessidade de sua presença. Os pais, que a princípio não concordavam com sua partida, acabaram por aceitar quando ele expôs a sua verdadeira missão naquele lugarzinho que, na sua concepção, era abençoado pelo Todo, pelo infinito Cósmico, onde nossas mentes se diluem na grandeza da Força Criadora.

Com promessas de visitas mútuas, despediram-se e Frederico partiu. E até a morte de ambos, o pai dezoito e a mãe vinte anos depois, os laços entre eles continuaram estreitos e, muitas vezes, o Glória recebeu a visita importante dos velhos genitores do médico.

Uma sólida amizade havia se formado entre Vicente e Frederico. Quando Linda se casou com Alfredo, foi Frederico o padrinho do casamento. Mais tarde, quando Eva nasceu, também foi nele que recaiu a confiança da família para que a recebesse como sua afilhada. Por isso o amor e carinho que Eva lhe dedicava. Desde pequenina, o vô Fred, como a menina o chamava, a levava pelos lindos caminhos da Serra, mostrando a bela paisagem natural e deslumbrante. Paisagem que desperta, mesmo naqueles que possuem um coração inflexível, um profundo sentimento de paz; sentimento que vem lá do fundo, mas do fundo mesmo, como uma benção que sobe com mansidão para a consciência individualizada.

Naquela manhã, portanto, o doutor Fred passou pela pousada apenas para dar um beijo na cabeça de sua afilhada e levar a compra da semana. Chegando ao balcão falou com a voz doce:

― Como vai essa minha pequerrucha? ― Disse enquanto abraçava e beijava a moça e colocava as sacolas em uma mesa.

― Pequerrucha? Veja só! ― Exclamou Eva. ― Já estou velhinha, vô Fred! Vinte e cinco anos nas costas! ― E deu um risinho como a zombar do velho médico.

― Não estou perguntando a sua idade ― redarguiu Frederico fingindo-se zangado ―, para mim você será, sempre, uma garotinha!

Eva era uma criatura encantadora. Bonita, simpática, atraente, culta... Cabelos castanhos claros, fartos e levemente ondulados emolduravam um rostinho encantador; sobrancelhas cheias, olhos cor de mel...

Tinha se formado em administração de empresas. Seu irmão mais velho trabalhava em Betim; era engenheiro de uma montadora de veículos. Ela preferiu ficar em São João Batista administrando a pousada. Vicente, seu avô, já estava com oitenta e cinco anos e a avó Vera, com oitenta. Os dois quase não saíam de casa, apesar de ambos se conservarem lúcidos e com uma saúde invejável. Linda e Alfredo eram cinquentões. Por isso Eva decidira ficar ali para levar a pousada à frente, já que os negócios de turismo haviam se multiplicado nos últimos anos e a procura por hospedagem na região se intensificava bastante. A pousada ficava sob sua administração e ela estava se saindo muito bem.

Mas nem tudo foram flores na vida da moça. Quando cursava a faculdade em Belo Horizonte, Eva esteve à beira de uma grave crise e por um triz não jogou por terra toda a sua estrutura psicológica.

Ela conheceu um rapaz, colega de sala chamado Afonso. Moço tímido, arredio... Apesar de inteligente, demonstrava uma vontade fraca, denunciada por um ligeiro tremor dos lábios e um piscar excessivo de olhos, cacoete que trazia desde pequeno.

O queixo era coberto por uma barbicha de pelos alourados, finos e ralos, no melhor estilo do Salsicha, parceiro do Scooby-do; isso lhe dava um ar de menino carente, embora para um bom conhecedor do caráter humano, também fosse um forte indício de uma personalidade fraca que poderia ser, facilmente, envolvida por opiniões alheias.

Entretanto, esses mesmos sinais o tornavam atraente para o sexo feminino. Justamente pela fragilidade que ele demonstrava possuir, as mulheres, por seu instinto maternal, sentiam-se compelidas a se aproximarem dele. As fêmeas da espécie humana adoram jovens complicados, inseguros e imaturos que se deixem tratar como tenras criancinhas desprotegidas.

Com Eva não podia ser diferente! Ela era uma menina de sentimentos elevados em que se incluía a piedade, e foi exatamente isso o que Afonso lhe despertou; mas ela, louca para protegê-lo, confundiu-se achando que aquilo que sentia era amor. Para Eva, o sentimento era puro e sincero. Para Afonso ela representava apenas uma muleta, na qual ele pudesse se apoiar e andar, mesmo capengando, pela sua vidinha insipiente e inútil. Já Eva, inexperiente nos assuntos do coração, deixou-se envolver e, em pouco tempo, acabou apaixonando-se pelo rapaz.

Começaram um namoro mórbido, repleto de lances escalafobéticos e complicados. Afonso era ciumento e choramingas. Queixava-se de tudo e, apesar da timidez e da insegurança que demonstrava, às vezes era violento, e se tornava agressivo e com os olhos injetados. Nessas horas, beirava as raias do paroxismo, o que lhe podia ser bastante perigoso. Era de um temperamento instável, sujeito a “chuvas e trovoadas”, fato que o tornava antipático para a maioria das pessoas. Mas Eva não enxergava nada além daquilo que seu sentimento lhe apontava.

Porém, algumas atitudes de Afonso a desgostavam imensamente. Ela era uma menina doce, amável e carinhosa e se propunha agradar ao rapaz, e por conta disso sofria uma barbaridade sem entender por que o namorado a tratava tão mal, brigando com ela a toda hora.

Eva não pôde deixar de notar que, inúmeras vezes, Afonso quedava-se alheio ao que ocorria à sua volta como se estivesse fora do mundo real; nesses momentos mostrava-se desinteressado e nulo. Nos estudos, ia tirando notas sofríveis, medíocres, e vivia no mundo da lua durante as aulas sem interesse ou vontade, enfim, sem ânimo para direcionar sua vida como um rapaz normal, universitário e pretensamente inteligente, agradecido das oportunidades que despontavam em sua existência. E esse grave sinal acontecera abruptamente sem avisos prévios...

Quando Eva foi dar-se conta, ela já estava totalmente envolvida com um viciado em crack no último grau, o derradeiro estágio do vício. E aí começou o calvário da moça tentando trazer o namorado de volta ao mundo e à vida. Quantas horas perdidas... quanta conversa inútil... Afonso não se considerava viciado e quando a jovem diligenciava fazê-lo voltar à razão, irritava-se ao extremo demonstrando um estado de desequilíbrio ameaçador, uma das características de jovens que se drogam. E aí falava em matar-se e matar a namorada. Era um tormento a vida da moça.

Mas existe um Ser Celeste, um Deus, que protege os loucos e os inocentes. Certo dia, quando ela ia chegando à faculdade, viu um ajuntamento na calçada, perto do portão; aproximando-se, constatou que havia uma pessoa morta ali, coberta com jornais... alguém dizia: “Coitado, tão jovem ainda! Levou cinco tiros... Dois na cabeça! Foi agorinha mesmo...” chegou mais perto, e quando um curioso descobriu a cabeça do cadáver, viu o que seu coração já suspeitava: Afonso estava morto, presumivelmente baleado por traficantes que se vingavam pela falta de pagamento da droga consumida.

Seu corpo jazia inerte na calçada próximo à escola que ambos cursavam, numa posição grotesca, coberto por jornais e com moscas zumbindo ao redor. Eva sentiu náuseas e, afastando-se para um lugar mais ermo, encostou-se à grade do portão da escola e vomitou todo o café ingerido mais cedo. Depois chorou copiosamente, e entre os soluços que estremeciam seu corpo, colocando para fora todo o sentimento reprimido, transferiu a culpa do acontecido para si própria e se ajoelhou junto ao corpo, abraçando o rapaz morto e participando de uma cena dantesca e patética ao mesmo tempo, de cortar o coração mais endurecido: era a manifestação subconsciente da frustração por não ter conseguido trazer o moço de volta para o convívio normal de seus amigos, sua família e seus estudos.

Ela estava, então, com vinte e dois anos e cursava o último ano da faculdade.

Eva precisou comparecer à polícia para prestar depoimento, já que era a namorada da vítima. Lá ficou sabendo detalhes da vida do pobre rapaz. Afonso envolvera-se com drogas e sem ter dinheiro para fazer face às compras frequentes da pedra que vicia de forma violenta, ficou na mão dos marginais que comercializavam a droga na porta do colégio.

O usuário de crack precisa cada vez mais da droga para satisfazer suas necessidades. Se ele tiver cinco, ou dez, ou quinze pedras, ele quer fumar todas. Torna-se um insaciável. Os traficantes, sabendo que já haviam sugado quase tudo de Afonso, começaram a ameaçar, apertando o jovem. Queriam o dinheiro de qualquer maneira.

Afonso começou a se envolver com o roubo para pagar o vício. Primeiro em casa, tirando dinheiro dos pais sem eles perceberem. Depois, como os pais eram pobres destinando seu pequeno ganho, seu parco dinheirinho para garantir o futuro do filho em uma faculdade particular, Afonso passou a furtar telefones celulares e carteiras de transeuntes que passavam por ruas mal iluminadas. Nessa ação usava uma faca oculta sob o blusão e um gorro com dois buracos que abaixava sobre os olhos.

O passo seguinte foi o assalto à mão armada, usando um revólver calibre 32 que adquirira no submundo que frequentava, juntando mais essa dívida à conta do traficante que o havia adotado.

Mas parece que, mesmo assim, não conseguiu cumprir com seus compromissos, pois a cada dia precisava de mais e mais pedras e, por isso foi morto. Infelizmente é a mesma estória de milhares de jovens, ricos, filhos de boa família, estudantes universitários, secundaristas, classe média, trabalhadores, proletários, pobres, miseráveis...

O crack nivela as classes sociais, transformando todos em zumbis, mortos-vivos que andam pelo mundo carregando seus corpos esqueléticos sem ter ideia para onde vão. É a degradação de todos os valores educacionais e morais, o cancro que corrói uma sociedade que vê seus jovens arrastados como fantasmas pelos meandros de uma ficção doentia, atrás de umas gramas de pó ou uma pedra mortal para poderem sentir as sensações falsas que seu ego necessita. E, na maioria das vezes, é sob a sepultura a derradeira estação onde vão desembarcar após essa louca viagem.

Esse episódio transformou Eva profundamente. Voltou ao Glória e não queria mais ir à faculdade. Ficou doente, com febre. Frederico veio vê-la e conferiu que era um caso típico de doença da alma. Com muita psicologia, convenceu a moça a sair com ele, andando pelos ermos, pelas beiradas de rio, pela borla das florestas, pelas cascatas espumantes... E assim, aos pouquinhos, foi falando das sublimes vitórias da natureza humana, dos bons costumes, da integridade do caráter contra a mesquinhez das mentes tacanhas. Com isso conseguiu convencer a jovem a voltar à sua vida normal e mesmo aos trancos e barrancos, com a alma aos frangalhos, terminar a faculdade.

Essas feridas, porém, deixaram cicatrizes profundas que sulcaram a alma de Eva; ficaram impressas as marcas indeléveis da passagem desses terríveis tormentos. Mas, apesar de tudo isso, as conversas edificantes travadas com o velho médico foram mais fortes do que as muitas mágoas que marcaram o passado e produziram frutos muito mais satisfatórios naquele coraçãozinho sentimental: Eva voltou a sentir satisfação em viver, e se algumas vezes a tristeza toldava seu olhar, a vontade firme da moça cobria a dor com um sorriso, tão lindo como só ela sabia dar.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo