Capítulo 3

Marina

Meu apartamento era pequeno, bem próximo ao campus, na sala tinha um sofá de três lugares, uma mesinha de centro, uma estante com meus livros favoritos e uma televisão de plasma. Cozinha americana pequena, com um armário e um fogão no cantinho. Dois quartos e um banheiro. Resolvi não dividir com ninguém, achava que para o meu estado de espírito era melhor morar sozinha mesmo.

Quando pisei na sala, depois de uma tarde inteira resolvendo algumas coisas importantes da faculdade, notei algumas coisas fora do lugar. Espera aí. Tinha uma mala em cima do sofá? Olhando em volta, notei mais algumas coisas estranhas, na cozinha tinha panelas e pratos dispersos, como se alguém tivesse feito uma refeição.

Peguei o guarda-chuva que deixava ao lado da porta e me armei pronta para atacar o invasor. Andei o mais silenciosamente possível no corredor que levava aos quartos e ao banheiro. Ouvi o barulho do chuveiro ligado. Mas o quê? O ladrão resolveu tomar um banho? De repente, a porta se abriu e o que eu vi quase tirou meus pés do chão.

— O que você está fazendo aqui? Como você entrou aqui? E por que você tá gato desse jeito? — ataquei, sem fôlego.

Ele abriu um sorriso malicioso e disse:

— Eu tô gato, hein, Mari?

— Ah, sério?! A primeira coisa a me responder é isso? — Estava abismada com a sua audácia.

— Em primeiro lugar, você que me recebeu totalmente sem noção. — Rindo, apontou para o que estava em minhas mãos. — O que você ia fazer com esse guarda-chuva?

— Ah, ia dar uma paulada bem na cabeça desse invasor idiota. Acho que ainda estou considerando essa possibilidade.

— Mari, sério? Um ladrão ia entrar com chave?

É, ele tinha razão. Mas vamos às apresentações. Esse cara que invadiu minha casa, alto, musculoso, de cabelo loiro, olhos azuis, e só com uma toalha em volta da cintura, é aquele meu amigo nerd. Da escola, meu único amigo. Então, eu lhe dei uma chave quando me mudei, para que, quando viesse me visitar, não se preocupasse se eu estava ou não em casa. Mas o que ele estava fazendo aqui com mala e tudo?

— O que você está fazendo aqui, Edu?

— Nossa, parece até que você não está feliz em me ver, eu estou feliz em te ver.

— Não é isso. Não era para você estar na faculdade?

O semblante dele fechou na hora.

— Eu resolvi trocar de faculdade e vir para cá, já que meu pai tinha alguns contatos consegui a transferência sem muitos problemas e ainda tem o bônus de ficar com a minha melhor amiga de todo o mundo — ele disse, sorrindo, mas eu sabia que tinha caroço nesse angu.

— Ok, amigo, vai vestir algo decente e vamos conversar, vou fazer um café. Pelo visto, você já almoçou.

Ele pegou a mala na sala e caminhou para o quarto ao lado do meu. Enquanto isso fui à cozinha e preparei um café para nós. Percebi que essa conversa seria bem longa. Nossa, como Edu ficou tão gato? Ok, tinha três meses que não o via. Mas pouco tempo para tanta mudança? Era no mínimo estranho, porém era compreensível porque ele era meio zero à esquerda na escola. E uau, se ele não fosse meu melhor amigo de todo mundo... Mentira, o meu melhor amigo foi e sempre seria o Theo. Droga, esse cara não saía da minha cabeça.

Edu voltou para a cozinha vestindo uma bermuda de tactel preta e uma camiseta branca. Pegou a cadeira ao meu lado no balcão e deu um gole no café, me olhou determinado.

— Ok, Mari, você está esperando algumas explicações. Eu mudei, certo. Mas você também, o seu motivo eu sei. O meu é que conheci alguém e quis ser diferente para ela. Mas acabou não dando certo, por isso eu vim pra cá. Antes mesmo de confirmar a matrícula lá consegui uma vaga aqui, e vou estudar na sua faculdade e morar aqui com você, já que me ama tanto.

Ok. Recapitulando... Ele tá gato por uma garota, ela deu um pé na bunda dele, porém continua gato, e está não só na minha faculdade, mas na minha casa. Ótimo! Ei, não me julgue! Eu amo esse garoto, mas queria viver sozinha, só para experimentar. Acho que ele percebeu minha reação, eu devia estar fazendo careta, sempre faço quando fico chateada. Dei um suspiro angustiado e coloquei minha cabeça em seu ombro.

— Vai dar tudo certo, Edu. A gente vai ficar bem. Você pode ficar. Mas me conta. Quem é a baranga que te deu um chute?

De súbito, ele se levantou com uma expressão de desgosto, como se tivesse levado um soco ou comido uma coisa muito desagradável.

— Eu não quero falar sobre isso, agora só quero focar em estudo e mais nada — disse ele passando a mão por seus cabelos, que, aliás, estavam bem grandinhos.

— Vai sonhando, baby. Como você de nerd sem graça virou um gato malhado e bad boy? Vai chover gatinha.

Ele me olhou como se eu tivesse um chifre no meio da testa.

— É sério, Marina. Não quero complicações, pra mim já basta o que aconteceu nesses últimos meses. Eu queria muito ficar naquela universidade, mas eu não conseguiria depois de tudo.

Nossa, meu amigo estava mesmo muito magoado! Fazer o quê, a vida é sempre cheia de surpresas, tombos, buracos na estrada. Ei, mas olha pelo lado bom, estamos mudados e prontos para o que a vida vai nos m****r. Mas, por favor, vida, machuca muito não. E afinal quem era eu para dizer alguma coisa? Era uma bagunça completa.

O Theo estar na minha vida de novo era um infortúnio que não contava.

Maldito, estava tudo indo muito bem sem ele pra atrapalhar.

Quem eu queria enganar?

Ele nunca saiu da minha cabeça desde o dia que o vi pendurado na cerca da minha casa.

***

— Acorda, dorminhoca. Tá na hora de brilhar — disse Edu, me jogando uma almofada na cabeça.

— Own, Edu. Vai embora! Mas que droga, isso é jeito de me acordar? Essa almofada pesa quantas toneladas?

Se você quisesse me ver de mau humor, era só me acordar assim de supetão. O safado sabia muito bem o quanto me deixou irritada.

— Ah, fala sério, Mari. Esse seu mau humor não é só porque eu te acordei não. Desembucha, vai. — Sentou-se na beirada da cama.

Nesses três anos de amizade, ele me conhecia até melhor do que eu mesma. Às vezes, isso me assustava.

— Ok, você tá certo. — Dei um suspiro, sabia o que vinha por ali. — Theo está na minha turma da faculdade.

Ele deu um pulo da cama, como se tivesse sido espetado em brasa quente.

— O quê?!

— Ai, não grita, ainda estou dormindo — pedi tapando os meus ouvidos.

— Desculpa, só fiquei surpreso. Mas... o que ele está fazendo nessa universidade?

— Como se eu soubesse, eu pensei que nunca mais precisaria ver aquele idiota outra vez — bufei.

Edu sentou na cama novamente, pensativo. E com uma expressão estranha, que eu não conseguia decifrar, em seu rosto. Mágoa, saudade?

— Mas tudo bem, sou bem crescidinha, vou superar. Só queria que você soubesse para não ter nenhum ataque — disse afastando as cobertas. — Vou tomar um banho, estarei pronta em vinte minutos.

Fui direto para o banheiro, abri o chuveiro e tirei a roupa. Entrei debaixo da ducha e tentei relaxar. Só de pensar no dia que teria pela frente, já ficava tensa de antecipação. Teria aula integral, então seria bem longa minha tortura. Será que ele iria sentar ao meu lado de novo? Esperava que não. Com o Theo tão perto eu não conseguia fazer mais nada, a não ser sentir o cheiro dele, ficar louca de saudade e me odiar por isso.

Não gostaria de sentir essas coisas de novo. 

Desliguei o registro e me enrolei na toalha, era o momento mais complicado do dia. Escolher a roupa da nova “eu”. No armário tinha várias opções. Peguei uma saia jeans que ia ao meio da coxa, uma regata preta com uma jaqueta jogada por cima. Pra calçar um sneaker preto e caramelo de velcro. Olhei no espelho de um lado a outro, até que ficou legal. Amarrei o cabelo num rabo de cavalo alto, apliquei rímel e gloss nos lábios. Peguei a mochila em cima da cômoda e fui ao encontro do Edu.

Ele me encarou e soltou um longo assovio.

— Oh-oh, olá pernas. Você está vestida assim pra matar? Ou para impressionar alguém? — Me cutucou com um sorriso malicioso que, aliás, estava me deixando nos nervos.

— Eu não sei o que você quer dizer com isso, mas me visto pra mim mesma e pra mais ninguém.

— Continue dizendo isso, que você vai acabar acreditando.

Eu olhei para ele e quis dar um soco no meio da sua cara. Como se estivesse lendo meus pensamentos, levantou as duas mãos em sinal de rendição e disse:

— Calma aí. Não está mais aqui quem falou.

Saímos de casa, eu estava nervosa em expectativa com o dia. Continuei andando sem prestar atenção ao meu redor. Edu ficou ao meu lado em silêncio, percebendo o meu estado de espírito, sabia que tinha que manter distância. Às vezes, eu era bem esquentadinha, ele costumava dizer que meu gênio era igual aos meus cabelos: fogo puro. Aliás, estava excepcionalmente gato, vestindo calça jeans clara, T-shirt vermelha, com a mochila pendurada por uma alça, e a cara amarrada. Um verdadeiro estilo bad boy, mas isso era só fachada. Na realidade era um garoto doce e magoado.

Chegamos ao campus e já estava fervilhando, Edu olhou em volta de um jeito que eu conhecia bem. Ele estava mapeando todo o local, vendo rotas de fuga e classificando a galera em volta, assim como eu fiz. Era engraçado seu modo de pensar, dizia que tínhamos sempre que ter um plano alternativo em caso de catástrofe, acho que jogava muito videogame.

Éramos tão parecidos. Por que não acendia um fogo em mim quando olhava para ele e vice-versa? Somente um cara fazia isso comigo. E falando nele... Theo estava sentado debaixo de uma árvore com fones de ouvido e lendo um livro. Ele sempre fazia isso. Quantas vezes eu não o acompanhei? Ficava nostálgica só de me lembrar...

Como se soubesse que estava sendo observado, levantou a cabeça e me viu ali parada, o encarando. Deu um sorriso de lado e voltou para a sua leitura.

Maldito!

Como ele fazia meu estômago dar cambalhotas e ninguém mais conseguia? Eu nem queria mais nada com ele... Nem a amizade!

Despedi-me do Edu, nossos cursos ficavam em lados diferentes do campus. Ele estava fazendo o curso de Engenharia da Computação, era um verdadeiro hacker. Uma vez nós conseguimos entrar no computador da Tatiana e ver todos os e-mails dela. Ele colocou um malware, que ferrou com o disco rígido, e ela surtou. Foi nossa única traquinagem. Depois disso, nos sentimos meio culpados e ele se ofereceu para arrumar. Mas só de lembrar da cara dela quando contamos, não conseguia deixar de sorrir.

Na sala de aula todos já estavam sentados, inclusive o Theo. Como eu fiz um desvio para o Edu pegar a grade de horários, demorei um pouco. Mas o pior de tudo? Ele estava sentado ao lado da Carol, e só tinha um lugar vago, ao lado dele.

Ótimo!

Se ele estava achando que eu iria me acovardar, se enganou. Cumprimentei todo mundo e sentei.

— Caramba, Mari! Você tá de tirar o fôlego, hein? — disse Hugo debruçado na mesa e sorrindo.

Theo deu um grunhido baixo, que só eu ouvi — provavelmente a Carol também —, e olhou para ele com cara de poucos amigos. Resolvi provocar um pouco.

— Ah, obrigada Hugo. — Dei um sorriso tímido, encenando.

— Não tem de quê, gata. Só estou constatando o óbvio. — Sorriu malicioso.

Eu sabia que estava provocando, mas essa era exatamente a minha intenção, pimenta nos olhos dos outros...

A sala ficou em silêncio quando o professor entrou. Ele foi logo sentando e remexendo em seus papéis.

Eu gostava do professor. Até que ele disse algo que acabou completamente com o meu dia.

— Bom, pessoal, hoje eu vou dar um trabalho de Ética Jornalística. Será em dupla, da direita para a esquerda para não ter panelinhas.

Bem, eu era a última da fileira. E adivinha quem era o da minha direita? Yes, você acertou: Theo. E ele estava olhando para mim, com aquele sorriso idiota do gato de Cheshire.

Os alunos foram juntando suas carteiras e o professor começou a escrever no quadro os tópicos do trabalho. Fui anotando e olhei de esguelha para a mesa do Theo, que estava totalmente estático. Levantei a cabeça e vi que ele me observava fixamente.

— Você vai continuar agindo como se não me conhecesse, Marina?

Respirei fundo, para não perder a paciência. Afinal, não era nenhuma louca que exagerava em tudo. Ok, só um pouquinho.

— Eu não conheço você. O Theo que eu conhecia morreu no dia que me humilhou na frente de todo mundo.

Theo engoliu em seco, tentando digerir o que eu tinha dito. O que ele estava esperando? Que esquecesse tudo? Fingisse que não tinha acontecido nada nesses três anos?

— Mas deixa isso pra lá, vamos fazer o trabalho. Eu estou aqui pra estudar.

Assentiu. Começamos a anotar e discutir alguns tópicos. Tinha que admitir, ele era um ótimo parceiro de estudo. Mas eu não estava confortável, me trazia muitas lembranças boas, que preferia deixar pra lá. Não podia amolecer. Logo agora que minha vida começava a andar para frente.

O tempo passou e nem percebi, mas era sempre assim quando estava ao seu lado. A aula tinha acabado e o professor já estava levantando, quando disse:

— A propósito, esses serão os pares para o resto do ano letivo.

Perfeito! Só que não!

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo