Capítulo 06

                                                            •Isabela•

  Cheguei alguns minutos mais cedo no colégio, os corredores ainda estavam vazios, e a culpa disso é da Olívia que me fez sair de casa mais cedo, segundo ela, para dar tempo de passar na biblioteca e terminar um trabalho que se esqueceu de concluir em casa. 

Fiquei sentada um bom tempo no chão do corredor, encostada em meu armário enquanto lia mais um dos livros que chegaram na mesma caixa que o outro. Este já se tratava de um romance atual, bem estruturado e diferente do melhor romance que já li na vida, era impresso, com uma narrativa completamente diferente. Um pouco mais fria, sem sentimentos. A história é até boa, mas não me encantou.

Não era do mesmo autor.

Ouvi uma música vinda do fim daquele mesmo corredor do estúdio, e vencida pela curiosidade, caminhei até lá, parando novamente na porta que continha um visor de acrílico possibilitando observar sem precisar abrir a mesma. 

Aléxia treinava os mesmos passos de antes, sozinha e concentrada, totalmente entregue aos movimentos. A música parecia conduzi-la, e não o contrário. Ela parou em um determinado refrão, então foi até o MP3 e voltou a música do começo. 

—Eu já te vi! —Sua voz ultrapassou a porta com diversão. Finalmente me olhou pedindo em um aceno que entrasse. 

—Desculpa. Te atrapalhei? —Entrei fechando a porta atrás de mim. 

—Não. Eu sempre travo nessa parte. —Respondeu ofegante colocando as mãos na cintura. 

—Seria um Fouetté? —Aléxia sorriu, assentindo. —Posso ver? 

  Ela ajustou a música novamente e se posicionou, ligando alguns passos anteriores para dar continuidade, e como suspeitei, no mesmo refrão ela conseguiu iniciar o passo, mas errou outra vez. 

—Uou! —Seu preparo técnico é evidente. Ela não parece nenhum pouco despreparada, mas sim, insegura! 

—Não vai, simplesmente não vai. —Suspirou frustrada.

—Você é impecável, só precisa confiar um pouco mais, de novo. —Empolguei-me e quando vi, já estava deixando minha mochila no chão. Aléxia voltou a música e novamente tentou, errando exatamente nas mesmas partes. 

—Não vai! —Ofegou exausta. Eu já tinha estudado seus passos.

—No meio do Fouetté, você está deixando a dinâmica do movimente te levar para subir na meia ponta. E não é, é Relevé! —Seus olhos brilharam ao me ouvir falar. 

—Sabia! —Riu voltando a posição novamente. Tentou mais uma vez.

—Isso, Plié e sobe! —Ela aceitou as coordenadas, mas infelizmente errou. —Aqui, presta atenção. —Foi minha vez de marcar posição. —Você está fazendo dupla Fouetté... e aí você deixa a dinâmica te levar. —Demonstrei. —Não, afunda Plié e Relevé... Plié e Relevé, marca o Plié lá embaixo. 

Juntas começamos a reproduzir os passos.

—Merda! —Rosnou insegura. 

—Quase! Tudo isso acontece em Plié, entendeu? Você está aqui, e já está tentando subir. —Soltei da barra e marquei posição de frente para o espelho, reproduzindo exatamente seus movimentos, para que enxergasse onde estava o erro. —E não, tudo acontece em Plié, eu só subo quando minha perna chega ao lado... —Demonstrei agora de modo mais prático, sem perceber que fiz uma sequência de cinco Fouettés, parando em quarta posição.

—Agora eu quero trinta e dois Fouettés perfeitos! —Uma mulher adentrou o estúdio nos pegando de surpresa. Na casa dos quarenta anos trajando um colam e saia longa, além de uma bandana na cabeça escondendo parte dos seus cabelos loiros. Sua voz soou autoritária, mas ela carregava um sorriso travesso de canto. 

Deixou sua bolsa no canto da sala e veio até nós, sem me olhar nos olhos, também manteve uma postura ereta e elegante o tempo todo. 

—Isobel. —Aléxia a cumprimentou. 

—Mon chéri! Em posição! —Afastou-se para voltar a música no mesmo refrão de partida. Aléxia a obedeceu, já eu fui para o canto da sala. Recebendo um olhar reprovador. —Em posição! 

—Ah, eu não... 

—Trinta e cinco? —Interrompeu-me indo para um armário cheio de sapatilhas. Vencida por sua insistência, assenti pegando um par de sapatilhas pretas. Aléxia também sorria em silêncio, já eu ainda estava morta de vergonha. 

Além de muito apreensiva, por um momento apenas me esqueci de tudo que havia prometido a mim mesma. 

Calcei com frio na barriga, ligeiramente empolgada para dançar. Foi questão de segundos para estarmos em posição, lado a lado. Esperamos o refrão chegar e iniciamos em sincronia. Foram incríveis trinta e dois Fouettés beirando a perfeição. Paramos na quarta posição  impressionadas, recebendo aplausos da professora.

Aléxia ficou boquiaberta, parecendo não acreditar que finalizou a música. Isobel também não escondia seu encanto. 

—Esplêndido. Qual seu nome mon chéri?

—Isabela! —Respondi. Isobel continuou  perscrutando misteriosamente. 

—Conheço uma única aluna que realizou uma sequência de Fouetté em uma aula experimental. —Senti o calor sumir do meu rosto. Ela falava de forma subliminar. —E eu ainda nem era professora. 

Desviei meu olhar para Aléxia, mas não era como se ela pudesse me ajudar nesse momento.

—Comecei cedo.  —Respondi tirando as sapatilhas. Isobel me trouxe um papel e o estendeu no ar, assim que fiquei de pé novamente. Era a matrícula das aulas complementares que eu ainda nem havia decidido o que fazer. 

Aceitei por educação, guardando o mesmo na mochila. O sinal tocou quando eu já estava calçando meus tênis. 

—Vou te ver nas próximas aulas? —Aléxia perguntou sentando-se do meu lado. 

—Não... —Sorri brevemente. —Foi legal, mas eu não danço mais. 

—E quando você parou? 

—Quando eu me mudei. —Respondi apenas. Joguei minha bolsa sobre o ombro e me preparei para sair da sala antes que mais perguntas viessem. 

—Isabela? —Me chamou receosa. A observei novamente. —Obrigado! 

—Imagina, você teria conseguido de qualquer forma. 

—Não só por isso, mas, enfim, é bom ter alguém que não te olhe como uma coitada. —Essa pauta sim me interessou. 

—Pelo que sei, você é a única que teve coragem, lealdade e opinião própria. —Forçou um sorriso, aquele mesmo sorriso acompanhado de tristeza e um pedido oculto de ajuda. 

—Então você provavelmente não ouviu toda a história. 

—Não mesmo, é a primeira vez que conversamos. —Dei ombros como se fosse óbvio. —Preciso ir pra aula. —Ela assentiu mais uma vez. —Ah... só pra deixar claro, cara feia pra mim é fome, não vou me intimidar pelo medo dos outros! 

Dito isso, deixei a sala sentindo-me revigorada. Não me lembrava o quanto isso me fazia bem. E se não fosse uma quase comparação, eu estaria nesse momento matriculada nas complementares de Ballet. 

Apressei-me com os corredores mais uma vez ficando vazios, quando inesperadamente, uma muralha brotou na minha frente após sair de uma das salas. O trombo foi brusco, a ponto de me desequilibrar vergonhosamente, estaria com a bunda no chão se ele não tivesse me segurado pela cintura feito um clichê de merda. 

—Olha por onde anda! —Falou friamente, travando o maxilar cada vez mais. Como se olhar pra mim tivesse despertado um ódio palpável. Eu também não estava suspirando gratidão.

—Ainda bem que sabe que eu não estava olhando, teria atravessado o corredor se soubesse que estava por perto. —Arfei ao ser erguida sem nenhuma dificuldade, mas fui pega de surpresa e apenas por isso, agarrei seu moletom preto na região do ombro, temendo que ele me soltasse ainda naquela posição, eu terminaria de cair feito uma moeba.

Mas o idiota fez de propósito, pois agora estávamos muito mais próximos do que antes. 

—Se fosse esperta realmente teria atravessado. —Ethan praticamente sussurrou, mas de modo que sua voz soou muito mais grave e rouca. 

Me desvencilhei do seu aperto e respirei fundo, sem muita paciência. Passei a detestar seu jeito intimidador, não tinha efeito sobre mim. 

—Sou vacinada contra caras do seu tipo. Não tenho com o que me preocupar! 

Continuei meu caminho como se ele nem estivesse ali, se fosse maior talvez teria passado por cima, mas o que me restou foi deixar um esbarrão proposital, deixando bem claro que ele não me coloca medo.

Cheguei na sala junto com o professor, ele mandou que nos juntássemos em dupla, Vienna acenou freneticamente para mim, já a Anne sentou-se com um garoto na nossa frente. 

—Tudo bem? —Perguntou em um cochicho. Minha cara não deveria estar das melhores. 

—Uhum. —Murmurei apenas, deixando claro que não estava com paciência para contar. 

Pouco tempo depois nós notamos o quanto a dupla da frente conversavam, levaram inclusive inúmeras chamadas do professor. Logo Vienna e eu trocamos olhares desconfiados. Ansiosas e cúmplices. 

Os dois inclusive saíram juntos da sala, como se ela nem lembrasse que estávamos ali. 

—Você viu o que eu vi? —Vienna perguntou parando no meio do corredor, observando Anne e o moreno entretidos em uma conversa. 

—Vi e você, viu o mesmo que eu vi? —Rebati ainda acompanhando seus passos. 

—Nós vimos o que vimos? —Nos encaramos ainda cismadas.

—Acho que estamos presenciando os primeiros indícios de uma ex-trouxa. —Vienna gargalhou e eu a acompanhei. 

—Ex-trouxa? —Dei ombros. Orgulhosa pela Anne. 

—É, ela está deixando de ser trouxa entendeu? Ex-trouxa! 

—Vamos nessa! —Me puxou pelo braço em direção a nossa próxima aula.

***

  No intervalo, minha única companhia era a Vienna, já que a Anne não tinha aparecido até agora. Havíamos acabado de nos sentar para comer, então não estávamos tão preocupadas, mas ansiosas para ouvir sua opinião sobre o garoto. 

—Acho que ela levou a sério demais nossos conselhos. —Comentei espetando o canudo na caixinha de suco. 

—Só não quero que se empolgue tão rápido, não adianta sair de um problema para entrar em outro. —Vienna parecia procurar por alguém com o olhar. 

—Falando em problema... —Chamei sua atenção observando o garoto que acabou de entrar no refeitório. 

O bom de estar em um lugar novo, é que tudo é novo, desde pessoas a lugares, incluindo as histórias. Eu me considero uma amante de histórias, do que há por trás de cada personalidade. Adorava criar paradigmas... padrões que explicavam atitudes ou ensinamentos. Como se realmente a vida tivesse sempre um motivo maior para nos tirar algo, ou causar algum tipo de dor. Mas, o lado ruim, é que eu ainda não conhecia nenhuma dessas histórias, então só me restava observar.

—E não é que você conseguiu. —Vienna comentou aparentemente surpresa. —O Coronel John não costuma ser muito receptivo... não mais. Não sei como conseguiu convence-lo. 

Continuei acompanhando os passos do Jony, ele foi bem objetivo ao atravessar todo o refeitório, pegar uma única maçã e sair, parecendo até invisível, ou talvez ele só não quisesse ser notado. 

—Acho que estava de bom humor. —Dei ombros. Seu olhar agora sobre mim fora de pena. 

—Acho improvável. 

—Vocês são vizinhos a muito tempo?

—Tempo suficiente para saber que ele perdeu todos os motivos de acordar com bom humor. —Uma lombriga de curiosidade me corroeu por dentro. 

—Isso tem a ver com essa tal briga entre o Jony e o Ethan? —Seu nome era a parte da história que menos me interessava. Vienna abaixou a cabeça, por um momento seu olhar ficou perdido, mas assentiu confirmando. 

—Ninguém deseja estar no lugar deles nesse momento, portanto ninguém se atreve intervir. —Pude jurar que saberia de toda a história nesse exato momento, mas Noah apareceu pegando Vienna de surpresa, ela abriu um sorriso lindo e o brilho voltou para o seu olhar. Era tão nítido a conexão e entrega desses dois.

Aquele tipo raro de casal que você consegue enxergar toda uma vida juntos. 

—Como vai Isa? —Sentou-se ao lado dela, de modo que conseguia abraça-la. 

—Bem e você? —Anuiu roubando uma batata frita do prato ainda intocado da namorada. 

—Cadê a Anne? —Perguntou de boca cheia, não parecia estar realmente interessado. 

—Serve aquela ali? —Vienna apontou com a cabeça para a entrada do refeitório, onde Anne acabou de passar completamente alheia a tudo em sua volta, entretida em uma conversa com o mesmo garoto ao seu lado. 

—Adam Scott? —Questionou com a testa franzida. 

—Estão juntos no trabalho de Biologia. —Respondi sem dar muita importância. Noah verificou uma última vez antes de rir balançando a cabeça negativamente. Anne passou pela nossa mesa sem ao menos notar nossa presença, estava ocupada demais rindo de algo que ele ainda contava. 

Vienna e eu trocamos olhares, como se pensássemos ao mesmo tempo, o quanto eles eram fofos juntos. 

—Eu avisei. —Noah comentou com um tom irônico.  

—Avisou o quê? —Vienna questionou. 

—Pensei alto. Coisa minha. —Parecia ser mesmo uma piada interna, pois ele permaneceu com uma expressão divertida. —Só não sei em qual lugar não queria estar agora, do Theo, ou do Adam! 

—Como se o Theo realmente fosse se importar. —Debochou duvidosa. 

—Se ele não se importar, o Ethan se importa. E você sabe como ele age quando precisa defender alguém. —Bufei ao ouvir essa declaração. 

—Por Deus... —Grunhi enojada. —Vocês endeusam esse garoto de uma forma. 

Parece exagero, mas perdi a fome na hora. 

—Aonde você vai? —Vienna perguntou rindo orgulhosamente.

—Para algum lugar onde não possa ouvir os louvores e clamores ao playboyzinho de Ottawa. —Os dois gargalharam. Coincidentemente, o refeitório explodiu em comentários e suspiros femininos assim que fiquei de pé, olhar para a mesma direção dos olhares só fez meu estômago embrulhar ainda mais.

O grupinho, Dave, Theo, Ethan e vários dos meninos que estavam no jogo ocupavam uma mesa sem se importar com o barulho e burburinhos que causaram. Revirei meus olhos e pesquei minha bolsa ainda na mesa. 

—Te vejo mais tarde! —Vienna diz ainda rindo. 

Deixei o refeitório disposta a procurar um lugar mais calmo onde poderia me concentrar no livro até então nada esplendido como o outro. Qualquer coisa era melhor do que ficar no mesmo ambiente que ele.

No mesmo corredor do mural de troféus, uma presença me chamou atenção. Jony estava parado de frente para ele, compenetrado em algum objeto. Daqui não conseguia ver o quê, e a curiosidade mais uma vez falou mais alto. 

Me tornei quem eu mais temia. 

Me aproximei silenciosamente, parando do seu lado já disposta a ser notada. Não tinha certeza, mas Jony parecia olhar para a foto da Aléxia ao lado de uma professora segurando uma medalha enquanto sorria lindamente. 

As duas! 

A morena da foto se parecia muito com Jony, digo, os traços marcantes e o olhar chamativo, era nítido a semelhança, tinham um grau de parentesco evidente.

Foi inevitável não formar inúmeras perguntas na minha cabeça, dúvidas que eu mal conseguia ordenar, queria poder responder todas de uma só vez. 

Agora mesmo, eu não conseguia identificar quem mais lhe chamava atenção na foto. 

—Deu pra ficar me seguindo agora? —Perguntou ríspido.  

—Não estou te seguindo, estou admirando o mural de troféus, precisa de autorização pra isso? —Rebati com outra pergunta sarcástica. —Ou existe alguma regra de revezamento? —Jony revirou os olhos impaciente. Saindo logo em seguida. —Você gosta dela?

—Agora você está me seguindo! —Ignorou minha pergunta. 

—Está na cara que sim. —Concluí segura. 

—Está caçando encrenca novata. Quer desafiar meu primo? É eu sou o melhor caminho pra isso, mas não pense que vou te livrar quando precisar de ajuda. —Jony estava apenas andando rápido, já eu parecia um pato manco para acompanhar seus passos sem parecer que estava correndo. 

—Não preciso de você para me meter em encrenca, tampouco para sair de uma. E se quisesse desafiar alguém, seria alguém a altura.

—Está dizendo que eu estou a sua altura e não ele? Saiba que não foi um elogio se essa foi sua intensão. —Ele ao menos me olhava, mas estava cada vez mais maleável. 

—Nem um, nem outro. Acha que já não lidei com o perigo de verdade? Ficaria surpreso em saber como conquistei meu primeiro amigo. —Sorri orgulhosa. Andrew jamais imaginou quem pagou sua dívida com o agiota no qual se encrencou, e não foi com dinheiro. 

Por sorte o cara me subestimou, e eu claro usei esse rostinho angelical ao meu favor. Correr a cento e oitenta quilômetros por hora em um racha ilegal foi sem dúvidas, uma das maiores adrenalinas que já senti na vida. A moto parecia nem tocar o chão, o vento era tão forte contra o meu corpo, que a sensação era de que me levaria caso soltasse aquele guidão.

—Não vou ser seu amigo! —Grunhiu debochado. 

—Deveria, eu posso te ajudar com a Aléxia! —Jony parou tão repentinamente que foi impossível frear a tempo. Dei de cara na lateral do seu corpo. Ele segurou meu braço e me encarou furioso, tão profundamente que eu poderia descrever quantos frisos tem a íris dos seus olhos. 

—Fica longe dela! —Rosnou pausadamente, antes de me soltar sem nem um pingo de delicadeza. —E estou avisando para o seu bem! — Jony finalmente saiu sem ser seguido, eu também não era idiota.

Talvez um pouco. 

Pensei, certa de que não iria parar até entender essa merda de vez. Aléxia então é quem estava no centro de tudo isso? 

Ou foi ela quem causou? 

Por que ela seria uma ameaça pra mim? E por que eu deveria manter distância? 

Avistei o painel de matrícula para as aulas experimentais, eu não participei de uma oficialmente, portanto, ainda tinha direito a uma aula de Ballet! 

Isabela Callegari! Assinei em uma reafirmação de que não recebo ordens, e não tenho medo!

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