Capítulo Dois Continua

Parte 4...

E isso o fez se sentir mal, pequeno até. Assim como ela, quantas outras pessoas não viviam por ái, espalhadas pelo mundo, sendo esquecidas pelas autoridades que não lhes dava oportunidades e mais ainda pelas pessoas comuns que se preocupavam apenas com seu próprio umbigo.

Quantas outras Camila deveriam estar por aí agora, tentando sobreviver por terem a má sorte de sofrerem de alguma lesão, algum problema que as impedisse de participar de modo ativo da sociedade. Muitas com certeza eram abandonadas.

— Desculpe perguntar coisas assim, mas preciso saber um pouco mais sobre você - sentiu vergonha de incomodá-la.

— Não tem proble...ma. Fique à vontade. E-eu prefiro até.

— Quando fica nervosa você tem uma reação mais forte, não é assim? - ela assentiu — E você consegue ler, escrever... Pegar recados... - se sentiu mal por essas perguntas ridículas.

— S-sim - ajeitou a bolsa no colo — É um pouco com...plicado quando estou em... Em um dia ruim - gesticulou tentando explicar — Mi-minha coordenação motora ficou muito preocu... Prejudicada - forçou — Mas agora eu le...io, só que...Como uma criança de dez anos - parou um intante e puxou o ar de novo — E-e quando estou bem, posso ler algumas frases inteiras. Para escrever é, é, mais difícil porque preci...so ter tempo.

Antes ela tinha vergonha disso, mas agora após esses anos, compreendia que era algo que levaria consigo para toda a vida e por isso não tinha porque sentir vergonha. Não era algo errado ou feio, ela apenas tinha sequelas de um grave acidente.

— Como é um dia ruim, Camila? - cruzou as mãos.

— Eu me esqueço de coisas simples. Os números fi-ficam embaralhados ou invertidos e tem palavras que não saem da boca. O mais chato é quan...do eu não... Eu não... - ela travou de novo e soltou um grande suspiro, olhando para ele. Fez um bico e deu de ombro.

— Não consegue completar o que ia falar ou fazer? - ela assentiu — Eu entendo - coçou a testa — Posso fazer um pequeno teste agora?

— Pode sim - sorriu inclinando a cabeça — Mas, mas estou um pouco nervosa agora.

— Tudo bem - ele sorriu e se esticou pegando uma receita em cima da mesa e passou para ela — Pode ler isso aqui?

Ela pegou o papel e olhou com calma, fixando os olhos nas letras que a princípio ficaram levemente borradas e depois foram se mostrando para ela. Ler era uma das coisas que ela mais gostava de fazer antes e não poder fazer isso corretamente como antes a deixava enervada e triste, mas queria tentar.

Leu devagar em silêncio e depois respirou fundo, relendo para ele em voz alta, mesmo com suas travas, mas querendo provar que sabia ler e entendia o que lhe mostrava ali.

— Você leu bem para mim - ele disse e foi honesto. Não revelou que sentiu vontade de apertar sua mão — Tem algo aí na receita que você não tenha entendido? - ela releu e fez que não — Isso é bom.

— Se escre...ver os números por extenso é, é me..lhor pra mim.

— Como faz para contar os números?

Ela mostrou os dedos das mãos.

— Conta até dez? - ela fez que sim — E se passar de dez?

— Eu uso os pés - deu uma risadinha e ele a acompanhou — E se faltar dedos, aí tenho que parar.

Ele gargalhou com o modo engraçado dela falar. Ficou feliz em ver que tinha bom humor sobre algo tão sério, mas ao mesmo tempo se sentiu triste por ela passar por algo assim. Devia ser uma luta constante.

Ele percebeu que ela estava um tanto tensa, apesar de tentar se manter calma, mas os dedos de suas mãos começavam a ficar vermelhos de tanto ela apertar. Gostaria de poder ajudar em algo, fazer com que ficasse calma e entendesse que estava tudo bem, que ele não a julgaria.

Ela era um lutadora, podia ver isso. Sair de uma vida normal, onde era praticamente uma arquiteta, trabalhando com o que gostava e tinha talento, para depois estar aqui, pedindo emprego para limpar a caca de animais doentes, era algo para poucos.

Se fosse comparar, diria que ela tinha o espírito de uma fênix e a força de uma ursa, para se manter de pé diante de todas as adversidades que a vida estava lhe impondo.

— Bem, Camila - ele se reclinou de volta na cadeira — Se você quiser um trabalho sem graça e sem glamour, creio que poderá fazer o período de teste conosco. A clínica pertence a mim e a meu irmão.

— Sendo muito ho-ho-hones... - ela parou e puxou o ar, sentindo uma inquietação e impotência.

— Sendo honesta...

— Isso - engoliu em seco — Eu preciso de um trabalho q- que não me exija mui-muito e que me pague um salário todo mês - bateu as mãos de leve — Tenho contas a, a pagar e viver de bi...cos não é b-bom.

Ele sentiu que ela começava a ficar mais agitada, talvez até um pouco nervosa. E pelo que havia entendido, isso não era nada bom para ela, então não quis forçar mais. Estava decidido a querer que trabalhasse ali. Tinha a impressão de que seria bom para ambos.

— Eu imagino, as coisas andam muito difíceis hoje em dia.

— Eu posso voltar a-amanhã pra falar com seu irmão.

— Não precisa - abanou a mão — Quero que volte amanhã para começar a trabalhar. Nós confiamos na opinião um do outro. Se eu digo que você é capaz de fazer o trabalho, ele assina embaixo.

Ela sorriu e pareceu aliviada. Mike gostou disso.

— Podemos fazer o seguinte - ele voltou a se inclinar para ela, falando devagar para que o compreendesse — Você fará um teste de quinze dias, seu horário será meio turno e vai trabalhar comigo e com meu irmão, me entende? - ela fez que sim — Terá supervisão e vai aprendendo como é feito o serviço. Se sentir dificuldades poderá pedir ajuda, se não, apenas siga com o serviço. No final dos quinze dias, se estiver tudo bem para ambos os lados, poderá renovar para mais quinze e após isso, aí sim podemos te contratar de modo fixo. Está bom assim?

— Sim - respondeu firme.

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