2. CONTRATEMPOS

(Gabriela)  

Sete e trinta e cinco!  

Dou um pulo da cama me perguntando por que meu celular não despertou? Meu Deus, isso nunca aconteceu antes! Estou frita, frita e atrasada. Tomo o banho mais rápido da minha vida e coloco o uniforme da loja. Faço uma maquiagem simples e seco os cabelos fazendo algumas ondas leves. Exigências do emprego, boa aparência, sempre. 

Chamo um carro pelo aplicativo, não vai dar para esperar o ônibus mesmo. Passo por Beth que está na cozinha preparando algo com cheiro maravilhoso mas que não vou poder comer, ela me entrega um pote cheio de pedaços de bolo e eu beijo sua bochecha, agradecendo por ter salvado meu café da manhã. 

Assim que entro no carro me permito respirar aliviada, ou quase, ainda estou atrasada, mas a caminho. Chego 15 minutos atrasada, por sorte nenhum dos meus supervisores me vêem chegar e as meninas ainda estão arrumando a loja para abrir. Tomo meu lugar atrás do balcão, é um emprego simples, mas amo ser caixa da boutique. Gosto de lidar com o público, tem seus altos e baixos mas a maioria ainda é gente boa. 

Ainda dá tempo de comer bolo junto com Leila e Carina, minhas colegas aqui no trabalho, nem todas se gostam mas nós três nos damos bem. O ritmo aumenta e eu vou me ajustando ao longo do dia. Ganho biscoitos de leite de um cliente e uma cantada de outro, o tempo passa rápido até o almoço.

— Vamos mulher?! Estou com fome.— Leila vem me apressar eu organizo as notas fiscais do meu caixa. 

— Você sempre está com fome, Lê.— Levanto os olhos apenas para ver ela fazendo careta, a fome a está afetando. Guardo tudo na gaveta, pego a carteira e a bolsa e saio com ela para almoçar. 

Paramos em um restaurante que estamos acostumadas a ir, recebemos alguns olhares enquanto procuramos uma mesa. Conversamos sobre amenidades durante o almoço e tomamos sorvete de sobremesa. Meu celular vibra no meu colo. 

"Achei que jamais a veria de novo. Está linda, Gabi. Preciso admitir." 

Releio a mensagem, o número é desconhecido. Não tem foto, não tem nome, até imagino quem pode ser. Mas não quero que seja. Seria ele? Se fosse, ele me viu? Onde? Voltou a morar por aqui?  Ah, não. Não pode ser. 

— O que foi, Gabi? – Leila me chama atenção e vejo que está preocupada. Minha cara deve estar ruim mesmo.

— Nada. – Tento forçar um sorriso. — Só uma mensagem. 

Minha amiga ergue uma sobrancelha de um jeito que eu nunca conseguiria fazer.

— Mensagem de quem,  senhorita? – Ela leva a última colherada de sorvete até a boca e então puxa sua cadeira um pouco mais para frente, está pronta para me fazer falar. 

— Não faço idéia. – gesticulo com a mão livre enquanto a outra revira a taça para misturar o sabor de passas ao de chocolate. 

— Nenhuma suspeita? – Ela limpa os lábios finos com um guardanapo. Enquanto eu levo a mistura que fiz a boca, uma pausa no tempo para sentir o sorvete derreter na minha língua, é magnífico. 

— Na verdade tenho uma suspeita, mas não tenho certeza se é, e... – Fecho meus olhos respirando fundo, nego com a cabeça. — Não quero que seja ele, Lê. 

Ela faz uma careta, enquanto seus olhos escuros e expressivos me analisam. 

— Seu ex? 

Aceno que sim. 

— Deixa eu ver. – Entrego meu celular e deixo ela ler e reler a mensagem, assim como eu ela tenta verificar qualquer sinal, foto, nome, qualquer coisa.

— Isso é meio assustador.— Lê me devolve o aparelho. 

— É sim. 

Ter namorado Marcelo é o maior arrependimento da minha vida. Nos conhecemos em um horário de almoço, o qual eu decidi experimentar a comida de outro restaurante, enquanto eu saia do estabelecimento derrubei suco de laranja em sua camisa e ele não quis me matar, bom, pelo menos não naquele momento. 

Ficamos amigos e três meses depois começamos a namorar, seis meses de relacionamento e ele foi um príncipe encantado a maior parte do tempo, apenas para se mostrar o pior dos homens depois. Possessivo, ciumento, e quando eu quis colocar um ponto final na relação disse que jamais aceitaria. 

Passou meses me procurando onde quer que eu fosse, fez até mesmo algumas ameaças. Depois de muito esforço consegui que ele me esquecesse, pois seu pai pediu que fosse morar com ele no interior após descobrir que estava doente. 

Isso foi há 5 anos atrás.

Nunca mais o vi, nem ouvi sua voz  graças a Deus, e espero que isso não mude. 

Prometi a mim mesma que não ia cometer uma burrada dessas novamente, e desde então não me envolvi com mais ninguém. Acho que não é trauma, só sou mais madura e cautelosa agora, também nunca achei alguém que realmente valesse a pena.

Meus planos são outros, só consigo pensar em mim em uma faculdade, segurando um diploma, usando uma roupa de formatura. Ainda vou chegar lá. 

— Olha amiga, fica de olho. Mas também não cria paranóia sabe, porque isso também pode ser alguém querendo te assustar e fazendo brincadeira de péssimo gosto.  – Uma luz se acescende em minha cabeça. 

— Lê, será que é alguma das meninas da loja? Você sabe que algumas odeiam a gente. – Ela parece pensar na possibilidade. 

— Ah, mas se for aquelas invejosas... Eu juro que eu vou... – Ela gesticula com as mãos como se o vento fosse o pescoço de uma delas. 

— Leila, espera. Não sabemos se é realmente, tá bom? Não vejo como elas poderiam saber da minha vida a esse ponto.

— Mas se continuar recebendo mensagens assim e com tom de ameaça vai procurar a polícia. – Meus olhos dobram de tamanho. — Promete? 

Eu concordo mesmo não querendo, o horário de almoço está acabando,  não dá tempo de começar uma discutir agora. Voltamos ao trabalho e o resto do dia passa se arrastando, só mesmo quando me distraio a hora parece dar um salto e vejo o relógio marcar 18h. 

Leila se despede, devia ser meu horário de ir embora também, mas como sempre faço hora extra, acabo chegando em casa depois das oito e meia.

— Boa noite, mãe. — Murmuro para Beth, ela está sentada no sofá, dividindo a atenção entre a tv e o crochê em suas mãos. Ela me olha e sorri. 

— Boa noite, minha flor. Demorou. A lasanha está  no forno, é só esquentar. — Meus olhos se abrem mais em surpresa. Meu cansaço se transforma em animação. 

— Fez lasanha?  — Abro um grande sorriso e aperto o passo para o meu quarto, a casa não é enorme e só tem um andar. Deixo meus sapatos no chão e volto correndo para dar um beijo em sua bochecha. — Já disse que te amo?

Ela ri da minha animação, mas comer é uma coisa que amo fazer e não posso evitar. 

— Você sempre diz. — Ela ri. 

Vou até o meu quarto tomar um banho e me preparar para dormir. Depois vou para a cozinha em busca da lasanha, vou comer no sofá, fazendo companhia para minha mãe e assistir a novela junto com ela. 

Beth me conta como foi no orfanato, Beth já tinha Fernanda, na época com dois anos, quando começou a trabalhar lá como cozinheira e estava desesperada por um trabalho, já que sempre foi mãe solteira. 

 A verdade é que Beth me encontrou com aproximadamente  um ano de idade, eu estava abandonada no banco da praça Radial Sul, aqui em Botafogo RJ, no meio de uma noite de inverno. 

Ela me levou para casa mas então, no dia seguinte, tomou todas as providências para que eu ficasse no Doce Esperança, o orfanato que ela trabalha até hoje. Beth sempre achou que eu seria adotada logo, disse que vontade de me adotar não faltou, mas faltou dinheiro e condições financeiras, pois ela já tinha Fernanda e era difícil sustentá-la sozinha.

Então Beth cuidou de mim como pôde enquanto eu estive no orfanato, segundo ela sempre fui muito retraída.

Beth soube me conquistar, trazia alguns brinquedos e fazia pratos divertidos para chamar minha atenção, logo virei seu grude. 

Cresci assim, fiz poucos amigos, mas sempre ficava triste ao ver que todos eram adotados e eu não. Até as crianças que não gostavam de mim tinham mais sorte que eu. Era sempre assim, os adultos chegavam e olhavam, alguns até se interessavam por mim, diziam que eu era uma criança linda, mas sempre encontravam outra e seus olhos brilhavam. Nunca era eu. 

Sempre me questionava por que não eu? O que todas as crianças tinham que eu não tinha? Beth me dizia que o problema não estava em mim e sim nos olhos dos adultos. Que eles tinham uma venda invisível que os deixava cegos para as coisas boas da vida. Eu inocentemente acreditava. 

Os anos se passaram, Beth teve Eduarda. Continuou cuidando de mim no orfanato até eu completar dezoito anos. Quando atingi a maioridade ela me acolheu em sua casa já que eu não tinha para onde ir, nessa época Nanda e Duda ainda moravam aqui. Foram três anos difíceis, as duas nunca gostaram de mim, só me toleravam. 

Quando Beth não estava em casa eu aguentava todos os comentários maldosos a meu respeito. Quando comecei a trabalhar ainda aos 18, insinuaram que eu estava me prostituindo, que era a única coisa que eu seria capaz de fazer. 

No fundo sempre soube que Duda é melhor que Nanda, Duda não me odeia, só vai na idéia da irmã. Quando Nanda se casou e se mudou nosso relacionamento se tornou menos pior, ela me ignorava como se eu não existisse, mas não havia nenhuma ofensa.

Nunca tive vontade de conhecer meus pais biológicos. Beth é minha mãe e isso é tudo que importa, não guardo mágoas, mas também não quero saber o que levou meus pais a me deixarem. É melhor assim. 

Organizo a cozinha e ajudo Beth a levantar quando vejo que ela tem dificuldade. Ela anda muito cansada e isso me preocupa. Depois de um beijo de boa noite vou para o meu quarto e encontro meu celular tocando.

— Oi Ali.  — Ela balbuciou um "até que enfim". Conversamos sobre eu parar de fazer hora extra, mas expliquei para ela que é necessário. 

Depois que deixei o orfanato meu desejo é fazer faculdade, quero fazer farmácia. Mas estudar sempre foi um sonho distante, mesmo que eu trabalhe. A maioria dos meus empregos foram puxados, e o dinheiro das horas extras sempre foi necessário.

Além das despesas da casa, Beth assim como muitos precisa de alguns remédios, Duda e Nanda nunca contribuíram muito. Depois que Nanda foi embora nunca mais ajudou, Duda paga algumas contas, mas quanto aos remédios sempre diz que não pode ajudar muito, e o salário de Beth nunca foi alto. Então conciliar as despesas das contas de água, gás, compras do mês, telefone, remédios e outras coisas mais com possíveis gastos da faculdade é impossível. Além do tempo que é zero. 

O que sempre desafoga são as horas extras. 

Aline sempre diz querer ajudar, é minha amiga desde criança, ela também cresceu no orfanato, mas foi adotada aos 11 por uma família bem sucedida. Ali está estudando arquitetura e vem com essa idéia de vez em quando. Mas não quero que ela pague meus estudos, quero conquistar isso sozinha e não me sentiria bem deixando ela pagar. Se os pais adotivos encrencarem? Jamais seria motivo de problemas para ela.

Ela me pede opinião sobre Brendo, o rapaz estuda na mesma instituição que ela, a convidou para sair duas vezes mas ela recusou. Mas ele é insistente e minha amiga está balançada. No fim da ligação ela decide que vai aceitar o convite se for para saíram como amigos, apenas para conversarem.

Conto sobre a mensagem anônima que recebi, Aline diz que vai pesquisar a vida do meu ex. Sou contra mas ela me convence que é a única maneira de confirmar ou descartar a chance de ser ele. Ela sempre foi boa nisso, por que não?

                               °°°°°

Acordo as três e vinte da manhã com um barulho na cozinha, quando vou ver é Duda, está bêbada e falando ao telefone. Incrível como ela não tem como ajudar muito em casa mas sempre sai depois do trabalho. Fim de semana quase nem dá sinal de vida. 

Volto para cama aliviada por não ser Beth na cozinha. Ouço ela rindo por alguns minutos, deve estar falando no telefone. Bufo irritada.

Por que as pessoas nunca valorizam o que tem? Nanda e Duda tem a mãe que eu sempre quis ter. Por que não vemos como somos privilegiados pelo que temos ao invés de nos sentir injustiçados pelo que não temos? As duas sempre foram ambiciosas demais,  mas são incapazes de ver a mãe que tem.

Já de manhã acordo cedo para preparar o café, hoje é minha folga. Enquanto preparo o café vejo que Beth respira como se tivesse acabado de correr uma maratona, vou levar ela para fazer exames.  Ela tem pressão alta e diabetes, mas toma os remédios. 

Ela sorri quando me vê, tentando disfarçar o cansaço.

 — Tudo bem?

— Tudo ótimo.— Ela pega a garrafa térmica e põe sobre a mesa. 

Depois do café começo a bendita faxina, deixo cozinha e banheiro por último. E nem penso em arrumar o quarto de Duda, ela que lute.

Quando termino de almoçar já passa das duas da tarde e não resisto a um cochilo depois. Acordo com meu celular vibrando na minha barriga.

— Oi, Aline.  — Murmuro ainda de olhos fechados. 

— Gabi, me diz que você está em casa.— Seu tom é urgente, sorrio, Aline é dramática. 

— Estou em casa, hoje é minha folga. — Suspiro e viro o corpo um pouquinho entre as almofadas. Se eu pudesse tirar um cochilo desses todos os dias... 

— Estou indo aí. —  Abro os olhos. 

— Aconteceu alguma coisa? 

— Nada, mas acho que vai querer saber sobre o que descobri. 

— Sobre Marcelo? – Me sento no sofá, a tranquilidade de antes se desfaz como fumaça. 

— Sim, mas não fica desesperada tá? Já chego aí. – Ali desliga sem esperar minha resposta. É claro que fico desesperada.

Tento afastar os maus pensamentos e vou para a cozinha preparar um lanche para nós, Beth decide fazer bolo, por mais que eu diga que não precisa ela insiste. Minutos depois ela está na cozinha batendo um bolo, sua bochecha está com farinha e ela nem liga.

 Ouço o toque de mensagem no celular e vejo que Ali já está na porta. Abro o portão para ela, Ali nem repara no meu estado, mas eu não posso fazer o mesmo com ela. Ela anda sempre bem arrumada. Os cabelos longos e ruivos parecem ter acabado de sair de uma escova, ela usa gloss e perfume. Aline não vive sem produção. 

— Um pássaro me contou que vai ter bolo nessa casa hoje. — Ali vai até Beth e a abraça, as duas tem muito carinho uma pela outra,  já que Ali foi minha única amiga no orfanato por anos. 

— Daqui a pouco sai um bolo de laranja quentinho. – Beth derrama a massa na forma já untada e eu sei o que vem a seguir. 

— Posso? – Ali aponta para a vasilha onde Beth fez a massa e ela só sorri em resposta, entregando a vasilha em seguida. 

— Você é muito abusada, Aline! – Cruzo os braços, não acredito que ela vai tirar a parte que cabe a mim.

Ali lava as mãos, pega a vasilha e vem para o meu lado já passando o dedo e levando o resíduo da massa crua até a boca. 

— Hummm. – Ela fecha os olhos e eu fecho a cara, ela só percebe quando volta a me olhar. — Que foi? Podemos dividir, mas... Eu sou visita, não tenho essa chance sempre. 

Deixo a vasilha para ela e a levo até o meu quarto, fecho a porta enquanto ela se senta em minha cama. Faço o mesmo e a encaro.

— Vai, desembucha. – Gesticulo com as mãos e Ali faz careta, pede tempo para acabar com o conteúdo da vasilha. 

Quando ela termina ainda espero ela ir lavar as mãos e a vasilha e voltar. 

— Então... Ontem quando você contou da mensagem eu procurei saber do Marcelo, se ele ainda está morando no interior e tal, se está trabalhando por lá e essas coisas.  

Eu concordo com a cabeça. 

Ali começa a estralar os dedos ainda sem desviar os olhos dos meus. 

— Descobri que ele não mora mais lá, voltou há pouco mais de um mês. – Ela morde o lábio temendo minha reação. 

— Como descobriu isso?  

— Tenho alguns contatos. – Ela dá de ombros. 

 Marcelo na mesma cidade que eu? Provavelmente uma hora ou outra vamos nos encontrar. A não ser que... 

— Ali, você sabe se ele tem alguém? – Ela faz careta, não entende minha pergunta. 

Pode ser que tenha se apaixonado durante esses anos, que tenha me esquecido de verdade. Mas se fosse assim, então por que ela mensagem? 

— Eu não sei, amiga. Mas se ele tivesse de boa não ia te incomodar. Né? – Eu concordo e respiro fundo. — Pode ser que ele queira só te irritar, sabe? Esses caras de hoje em dia tem o ego fragilizado, ele pode estar querendo saber como você está, se está melhor sem ele, se tem outro namorado e essas coisas.

Faz sentido, mas não quero pagar para ver. Ele me fez ameaças, não quero correr o risco, odeio dizer isso mas tenho medo. Não vou contar nada a Beth agora para ela não se preocupar. O bolo fica pronto e tomamos café da tarde, temos uma tarde e noite entre amigas como não tínhamos há tempos.

Naquela noite, antes de dormir minha mente vaga a espera do sono. Preciso cuidar mais de Beth, não posso ficar sem ela. Faço alguns cálculos na minha mente, com bastante esforço, planejamento e uma conversa séria com Duda e talvez com Nanda também, consigo com que Beth não precise mais trabalhar. Na próxima semana vou resolver todos os exames dela na minha folga, mesmo que leve o dia todo. Vou ligar para Nanda e aturar suas provocações, fazer o esforço de falar com Duda, tudo por ela. Eu faria o necessário pela saúde dela. 

(Continua) 


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