2 _ Portões do Inferno

   Quando peguei minhas malas, apertei a alça da mochila sobre o ombro ao caminhar pelo estacionamento do aeroporto do Conroe. Pessoas aos montes de movimentavam para todos os lados como um enxame de abelhas desorganizado. Não havia como não se sentir perdida no meio delas. Meus olhos desesperados varreram a área, e meu coração acelerou.

Suspirei de alívio quando avistei um homem, muito jovem e trajado num terno preto e branco parado a frente de um sedan branco, com uma placa a frente do peito intitulada PERSÉPHONE MORGAN.

Eu odiava aquele nome. Precisava mesmo escracha-lo tão grande assim?

Corri para ele, que abriu um sorriso quando me viu.

_Como vai, Srta. Perséphone? _ele me estendeu a mão quando me aproximei, com o sotaque carregado.

_Mal.

Ele sorriu, um riso compreensivo, e tomou minhas malas com delicadeza, ajeitando-as no porta malas espaçoso do carro. Quando ele abriu a porta de trás para mim, hesitei. De novo, não. Quando eu superar aquela aversão a carros? Entrei quando o motorista me enviou um olhar cético.

_Minha mãe sempre diz que um bom papo sempre alivia corações machucados _ele anunciou quando se sentou ao volante _São duas horas de viagem. Talvez seja melhor aliviar esse fardo não é?

Rolei os olhos. Dessa vez, eu não poderia dormir.

_É, pode ser...

Quando o carro parou numa vaga no canto da rua deserta, meu coração se apertou. Ótimo. Ali estávamos. O inferno me esperava a apenas alguns passos agora. Sai do carro aos tropeços e aceitei com dificuldades as malas que o motorista me ofereceu.

_Quer que eu fique para o caso de não haver ninguém?

Mirei a construção quadrada de dois andares, com tons de salmão desbotado e descascado em alguns lugares. Me virei para o motorista e os dispensei com um gesto gentil _Não, tudo bem. Obrigada.

Aquilo já era suficientemente desconfortável sem testemunhas. Ele não precisava ver aquilo.

Com um sorriso, ele se afastou. _Boa sorte para você, Perséphone.

Não tive tempo de agradecer. Ele entrou no sedan e saiu logo em seguida. Me virei para a enorme mansão Morgan, respirando fundo e abrindo o portão pequeno de metal branco. Caminhei pelo caminho ladrilhado que levava até a porta, enquanto observava as enormes janelas com espelhos brancos manchados e grades cor de vinho. Eu já havia visitado a casa quando era pequena. Minhas recordações não eram nada boas. Pelo que sei, meus avós se davam muito bem com minha mãe... até ela se casar com meu pai, e eu nascer...

Havia uma enorme garagem ao lado da casa, onde havia um Fusca velho e um Neon cinza.

Não haviam vizinhos próximos. Apenas uma casa no alto de uma colina próxima a mansão dos Morgan, mas eu não fazia ideia de quem poderia morar lá. E sinceramente, eu não estava com o mínimo interesse de descobrir. Uma densa camada de árvores enormes enfeitava a rua até ali, mas o especo ao redor da casa era mais limpo, ainda que não completamente.

Parei em frente a enorme porta marrom e entalhada em desenhos retorcidos. De repente, eu me sentia pequena diante de tudo.

Com os dedos trêmulos, apertei a campainha. Meu coração disparou quando meus ouvidos detectaram o som de passos se aproximando da porta, e no mesmo instante, tive o desejo infantil de me esconder atrás do enorme vaso de plantas que ficava ao lado da porta. Mas eu não estava mais no jardim de infância. Precisava agir com uma adolescente.

Antes que eu pudesse sair correndo, o trinco mexeu, e a porta se abriu.

Uma velha envolta em um xale de lã em cores desbotadas apareceu à porta com um sorriso no rosto. Os óculos redondos com armação de metal e muito grandes para o rosto pequeno enrugado estava torto, e seu cabelo espessamente cacheado e branco estava desgrenhado.

Vovó Stela. Seu sorriso sumiu quando me viu a soleira da porta.

_Ah, é você...

_Vovó Stela _cumprimentei.

Uma enorme sombra enfiada em um suéter cinza e com a cabeça envolta em uma cabeleira branca se projetou atrás dela, com um pedaço de biscoito entre os dedos gordos e de unhas amarelas.

_Quem é, Stela?

_Vovô Brutus _cumprimentei, e seus olhos cor de barro se estreitaram ao me ver.

_Perséphone? Chegou cedo...

Ajeitei a alça da mochila nas costas, a sentindo mais pesada que nunca, totalmente sem graça a frente deles na porta. Será que aquilo poderia ficar ainda mais desagradável?

_Bem, _ vovó Stela se mexeu, saindo de frente da porta _Não vai ficar aí o dia inteiro, vai? Entre.

Engoli em seco enquanto passava pelos dois, entrando no hall de entrada com as paredes cheias de fotos amareladas e em preto e branco. O cheiro de coisa velha misturada com

mofo me sobressaltou, fazendo minhas narinas arderem. O som um aspirador de pó extremamente barulhento soou ao longe, e entrei na cozinha seguida de meus avós.

A casa estava do mesmo jeito do qual eu me lembrava. Os móveis eram velhos, mas muito bem cuidados. Um carpe florido enfeitava o chão, e um rádio velho tocava canções antigas em algum canto da casa.

Havia uma enorme lareira acesa num canto, ocupando a maior parede, e uma enorme bola de pelos cinzenta descansava em frente a ela, esparramada em uma almofada vermelha de lã. Demorei um pouco a perceber que aquilo era um gato. O gato mais gordo e feio que eu já havia visto na vida. Ele baixou as orelhas e chiou para mim, afundando as unhas maciças na almofada.

Contive um esgar. Ótimo. Nem mesmo os gatos ali gostavam de mim.

_Helena! _o grito de vovó Stela soou atrás de mim.

O barulho do aspirador de pó parou, e passos leves se seguiram no andar de cima, como se estivessem correndo, mas quando chegaram às escadas, ela parou. Olhei com receio para cima. O projeto de uma Barbie que falava estava no topo das escadas, me fulminando com os olhos azuis e as garras muito bem feitas pintadas de vermelho.

Um avental florido segurava seus cabelos loiros encaracolados para cima. Eu também tinha péssimas lembranças de minha prima.

Não era novidade. Ela nunca havia gostado realmente de mim. Eu me lembrava com pesar das suas únicas visitas a nossa casa quando éramos pequenas. Papai nos forçava a dormir no mesmo quarto, o que me garantia muitos pesadelos à noite: cola sendo passada em meu cabelo enquanto eu dormia, insetos sendo colocados por baixo de minha coberta, e todo o tipo de horrores que se possa imaginar. Eu me recordava muito bem deles.

Talvez mais do que gostasse.

Mas seus pais haviam morrido num assalto, e desde os doze anos de idade, ela também estava aos cuidados de nossos avós.

_Helena, mostre a Perséphone o quarto. _Vovó Stela simplesmente disse, passando por mim como se eu já não estivesse mais ali.

A loira trotou até mim, arrebatou minhas malas do chão, e sem uma palavra, começou a subir as escadas. Puxando o ar com força, a segui, apertando o passo para poder acompanhá-la. A segui pelo corredor, tentando não comer cabelo.

Eles eram tão macios, que chegavam a brilhar, e os cachos se moviam com sua cabeça a cada passo saltitante que ela dava. Mesmo que aparentemente estivesse fazendo o trabalho doméstico, estava impecável. Até as unhas do pé estavam impecavelmente bem feitas, decoradas com francesinha. Usava um short marrom, que deixava a mostra boa parte de suas pernas bonitas e bronzeadas, e uma regata rosa. Baixei os olhos, olhando para mim mesma e me sentindo um lixo.

Calças moletom folgadas e camiseta branca no mesmo estado, já amassada por causa da longa viagem. Não era a toa meu visivel atestado de virgindade.

Meus cabelos negros e ondulados também estavam despenteados e cheios de dobras. Desse jeito, eu me sentia ainda pior perto de Helena, se é que isto era possível. Quase trombei nela quando parou em frente a uma porta, que empurrou com a ponta do pé. Entrei após ela, visualizando o espaço. Haviam duas camas, uma de cada lado. A do lado oeste estava feita, com edredom e colcha cor rosa choque e almofadas de pelúcia. A do lado leste estava sem roupas de cama _elas estavam dobradas na ponta do colchão _, onde ela descansou minhas malas.

Havia apenas dois armários em ambos os cantos e uma cômoda separando os lados. Pigarreei.

_Vamos dividir o quarto?

_O que você acha que isso é? Uma hospedaria?

_Eu só...

_Pouco importa, _ela deu de ombros, apontando para o armário _Esse está vazio, e você pode usá-lo. O banheiro fica no corredor, e o jantar sai às oito horas em ponto.

Ela marchou para a porta, mas se virou quanto estava prestes a sair:

_Não se atrase ou vai ficar sem janta.

Um segundo depois, me vi sozinha no quarto pequeno e desolado, e tentei lidar com minha frustração do melhor jeito que consegui. Me deixei cair pesadamente em cima do colchão, jogando a mochila no chão. Aquilo estava sendo muito pior do que eu esperava.

Como se não bastasse, cada centímetro de meu corpo doía e uma dor hedionda explodia por meu crânio, fazendo minhas têmporas latejarem.

O aspirador de pó ligou de novo. Me levantei, espiando por entre o corredor, mas Helena devia estar ocupada demais para me dar atenção agora. Caminhei por entre o corredor, procurando o banheiro. Era a única porta próxima ao quarto. Era simples, com ladrilhas brancas e alguns desenhos imitando ramos de Cristâneos e Madressilvas. Me dobrei sobre a pia branca e deixei a água correr em abundância, lavando o rosto com urgência. Ansiosa para me livrar da sensação de estar toda amassada.

Firmei os pulsos nas veiradas da pia enquanto visualizava minha imagem no espelho.

Ensaiei uma careta. Estava mais pálida que nunca, como osso, e um círculo escuro contornava meus olhos acinzentados. Algo em minha expressão dava a impressão de vazio. Nada de conteúdo. Meus cabelos escuros caiam amassados até minha cintura, como eu havia imaginado. A marca de nascença em forma de cereja um pouco a baixo de minha orelha direita estava arroxeada, como se fosse um hematoma sério.

Encarei o chuveiro. Eu ainda tinha alguns minutos antes do jantar, então corri para o quarto, e voltei com uma muda de roupa e uma toalha, e tratei de esquecer-se de meus problemas por apenas alguns minutos.

Quando saí do banheiro, sentia como se um peso houvesse saído de cima de mim, mas nãos o cansaço.

Ainda havia muita coisa a ser similada, muita coisa a ser aceita. Nenhum de nós queria o que estava acontecendo ali, isso era óbvio, e eu teria que encontrar um jeito de fazer com minha estadia ali se tornasse o menos irritante possível para todos. Eu com certeza nunca me sentiria feliz, mas tinha que tentar fingir que era suportável. Rumei para o quarto e me sentei novamente, firmando os cotovelos nos joelhos e escondendo o rosto entre as mãos. Eu não havia conhecido minha mãe, mas minha madrasta havia preenchido muito bem este papel ao longo dos anos, e eu a queria ali agora.

Meu peito se apertou ao pensar em meu pai. Que ele nunca mais estaria ali novamente para dizer que tudo ia ficar bem... por que tudo não ia ficar bem...

Me surpreendendo, Helena entrou no quarto de repente, e eu nem mesmo havia notado que o barulho do aspirador de pó havia cessado. Ela parou a porta, me olhando feio por alguns segundos e depois se dirigiu à cômoda.

_Meu Deus... você está horrível.

Levantei o rosto, a fulminando com o olhar, mas de repente, ela me jogou um vidro de plástico rosa bebê, como alguém arremessa uma bola em um jogo de handebol.

_É óleo esfoliante, vai ajudar. _e novamente, ela já estava saindo do quarto antes que eu pudesse dizer alguma coisa _Esteja pronta em cinco minutos. As regras nessa casa são rígidas, e os criadores preferem que elas sejam seguidas.

*

*

*

Cinco minutos depois, eu estava descendo as escadas receosa, me perguntando por quanto tempo eu aguentaria aquilo.

Todos já estavam em volta da mesa redonda quando apareci na sala de jantar, o que me fez parecer ainda mais sem graça do que pensava. Me sentei à mesa, num assento que havia sido reservado para mim. Havia um prato de porcelana posto a frente da cadeira, ao lado de talheres milenares e um guardanapo florido.

Havia uma teve parecida com uma caixa marrom no balcão atrás de mim, ligada no noticiário das oito, de onde a voz chata e quase eletrônica da jornalista era a única a soar no silêncio perfurado apenas pelo tilintar dos talheres batendo na porcelana.

_Sirva-se, _vovó Stela ordenou, afagando o enorme gato cinzento que me encarava com os olhos bem abertos e rosnados ferozes.

O ignorei. Não havia almoçado e meu estômago estava doendo de fome. Observei a refeição, sentindo meu estômago se revirar. Uma coisa gosmenta e molhada se mexia na única panela posta na mesa, como se estivesse me olhando. Canja de galinha com molho de tomate. Franzi o nariz. Nos dias em que fiquei mo hospital depois do acidente, aquilo havia sido tudo que eu havia comido, e minhas esperanças de comer comida de verdade esvaeceram ao contemplar aquela coisa pulsante.

De repente, eu já não estava mais fome, mesmo que meu estômago ameaçasse me devorar viva de dentro para fora. Levantei os olhos, encontrando o olhar inquisitivo de vovó Stela, que dizia algo como “Como é, vai comer essa droga ou não?”.

Servi-me com um pouco de sopa e um pão de queijo, torcendo para não vomitar ali mesmo, principalmente ao me lembrar que as pessoas que mais me odiavam no mundo estavam ao meu redor saboreando da mesma nojenta refeição. Engoli a primeira colherada com dificuldade, ouvindo o barulho chato que meus avós faziam ao engolir.

_Ótimo... _Stela disse de repente, entre uma colherada e outra, enquanto seu gato resolvera me ignorar também, se lambendo todo em seu colo. _Vamos deixar isso de maneira bem clara. Temos regras, e se você quiser ficar aqui, eu a aconselho que as siga.

Pousei minha colher no prato, suspirando com força, sentindo meus peitos comprimidos pelos botões de minha camiseta branca de moletom e mangas compridas. Uma hora ou outra iríamos ter mesmo que encarar a calamidade de frente. Ter a conversa que eu temia desde o momento em que entrara por aquela porta.

_Desde já, você precisa saber que temos horários para tudo. _sua voz era tão detestável quanto seu rosto enrugado _Para acordar, almoçar, e sobre tudo dormir. Somos idosos e necessitamos de nosso descanso acima de tudo. O toque de recolher nessa casa é às nove horas. Em ponto. Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Se você não estiver em casa até esse horário, precisa saber que vai ficar para fora _ela apontou para a porta de saída, mexendo-se espalhafatosamente, e o gato patético reclamou em seu colo. _Oh, Mordida, tudo bem, mamãe entendeu... _ela afagou o gato, que chiou para ela

Franzi o cenho.

Será que todas as pessoas ficavam assim ao envelhecer? Eu ficaria assim? Ou havia um motivo em especial para as pessoas me odiarem? Talvez houvesse algo exorbitantemente tenebroso em ser excluída do grupo dos excluídos...

Ou peculiar... não havia como saber.

_Não quero ser incomodada em nenhum minuto do dia ou da noite, _ela continuou _Se tiver algum problema, resolva você mesma. Eu já criei todos os meus filhos. Nada de música alta, TV em programas absurdos, amigos de arromba na porta e nem mesmo namorados por aqui... ou namoradas... _ela levantou uma sobrancelha. _Sabe, eu espero tudo de você, Perséphone. Talvez você tenha herdado um lado bom que talvez tenha vindo da sua mãe... porque sobre seu pai...

Baixei minha cabeça, arfando e sentindo meus olhos arderem. Não de mágoa, mas raiva. Ódio puro, que muitas vezes eu não conseguia controlar nem mesmo se quisesse.

_Todos sabem o que aquele imbecil depravado era. Não consigo entender o que a fez deixar do primeiro marido para se casar com Halle. Não me admira que sua filha tenda a puxar pelo seu lado da família. Ele apenas degradou o nome da família ao se casar com Guhay, aquela pobre boba. Se seu pai, aquele cachorro, não tivesse morrido, eu mesma o teria matado...

Por baixo dos cílios, voltei meus olhos para ela, sentindo meu rosto esquentando cada vez mais. Meu pai era tudo de bom que eu tinha. Como ela ousava falar dele daquela maneira? Cerrei os punhos por baixo da mesa, sentindo aquela energia estranha correndo por minhas veias e vazando por meus poros enquanto Stela tagarelava coisas absurdas enquanto engolia sua sopa nojenta. A mesma energia que havia me tomado em tantas outras vezes...

Minha marca de nascença abaixo da orelha doeu.

Por que você não se afoga com um osso perdido no meio dessa sua sopa m*****a e me deixa em paz?

E foi exatamente isso que aconteceu.

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