Viagem para o interior

Capitulo II

Seis anos depois...

Me deparo observando as ilustrações do teto da igreja, uma mistura de anjos o qual não consegui desvenda todas as imagens que prenderam minha atenção.

A voz rouca do padre Francisco me chama a atenção, ele está fazendo algumas citações bíblicas e se referindo ao meu avô como uma pessoa que fará muita falta a comunidade local, pelo seu trabalho comunitário, sempre prestativo e ansioso em ser útil. 

O padre Francisco nem está exagerando, vovô era assim mesmo, lembro-me quando passeávamos na cidade para visitar ele e a vovó Rebeca, era maravilhoso, eles estavam sempre sorrindo, comunicativos e prestativos. Guardo em minhas lembranças à vista extraordinária dos arredores da casa, logo na entrada tem um lago grande e muito bem cuidado, onde vovô pescava.

Quando vovó Rebeca faleceu eu tinha oito anos, desde esse dia vovô mudou muito, não era mais tão comunicativo e a os poucos foi se ocupando com outros afazeres.

Ele passou a fazer trabalhos artesanais com madeira, tinha muitas encomendas e fazia questão de entrega-las pessoalmente, por conta desse trabalho ele viajou bastante nesses últimos anos, indo com frequência até a capital, com isso dificilmente passeávamos pela pequena Vila Rica.

Faz anos que não passo pelo centro da cidade, não conheço seus novos moradores e tenho poucas lembranças dos antigos vizinhos do sitio. Apenas uma vaga recordação do senhor. Uolter e suas netas, Beatriz e Brigith, elas estavam sempre com o avô, nós três brincamos algumas vezes nos arredores do lago. Não sei como estão hoje, acho que foram para outra cidade, pois o sitio do senhor Uolter, foi vendido para um criador de cavalos.

Não sei definir direito o que é esse lugar, colina, serra ou montanha. Sei lá!  Eu sempre disse para meus colegas que o vovô tinha uma casa na colina, esse detalhe deixava eles com inveja dos meus relatos.

Nessa região poucas residências têm tevê por assinatura e o sinal de celular é ruim, tecnologicamente falando “é um fim de mundo” uma cidade pequena, pode-se dizer que é um vilarejo, acredito que deva ter umas três a quatro mil pessoas morando por aqui. Realidade bem diferente do meu cotidiano.

Depois do enterro muitas pessoas procuram minha mãe e meu tio Eduardo para dar as condolências, eu e meu primo Henrique apenas observamos o que está acontecendo e as pessoas que circulam pelo local. Henrique parece não se importar com a falta de tecnologia, ele está usufruindo do ambiente de interior.

Quando as pessoas vão embora me deparo com um vazio enorme. Minha mãe e tio Eduardo choram muito abraçados, nesse momento me vem em mente a frase que vovô disse na última reunião de família: “Eu amo cada um de vocês do jeito que cada um é”. Depois dessa lembrança despenco em um choro descontrolado, meu pai me abraça, choro em seu peito, lembrando do sorriso e da vontade contagiante de viver de senhor Alberton, ou seu Tom como era carinhosamente conhecido.

  Entramos na casa do vovô, eu e mamãe vamos passar alguns dias aqui. Papai Henrique e tio Eduardo voltam para a capital ainda essa semana.

— Vocês estão pensando em vender a casa? — Henrique questiona.

— Ainda não pensamos em nada — mamãe menciona, ao procurar na pequena dispensa ingredientes para fazer uma canja.

Tio Eduardo e mamãe combinam como vão resolver os tramites legais da partida do vovô, enquanto eu e Henrique organizamos a mesa para o jantar.

— Então minha prima vai ficar dez dias tecnologicamente fora de serviço!? Pena que não vou estar aqui para me divertir com isso.  — Brinca Rick ao me encarar com um sorriso de deboche.

Dona Hanni aproveita o gancho para encher um pouquinho mais o meu saco.

— Vamos ver como Ana Julia vai sair dessa! Quem sabe ela consegue fazer amigos de verdade nesse tempo, não viver apenas de papos virtuais.

Finjo que não ouço os comentários, me sento a mesa ao lado do papai e me sirvo da encorpada canja de galinha que mamãe preparou no fogão a lenha.

A casa é grande, enquanto ando pelo corredor que dá acesso aos quartos me veem as lembranças de quando éramos crianças e Rick me puxava pelo corredor sentada no pano que vovó Rebeca usava para lustrar o assoalho.

O silêncio é assustador, só se ouve os grilos e algumas rãs que estão se apossando do lago em frente à casa. Demoro um pouco para adormecer, mas quando o sono chega apago durante a noite inteirinha.

Acordo com um sol terrivelmente brilhante tocando a janela sem blecautes, Rick bate na porta com força dizendo:

— Acorda madame, o café está servido. — Batendo na porta mais duas vezes.

— Aqui é tudo tão lindo — comento ao me sentar à mesa, e em seguida digo bom dia.

Papai senta ao meu lado e prepara seu café antes de comentar:

— Vou pescar, quero aproveitar o dia, antes de voltar para o nosso adorável caos.

— Eu vou pescar com o tio Otavio, pois a tarde tenho que dar no pé, amanhã é dia de trabalhar — Rick comenta antes de dar a primeira mordida no pão com ovo frito que ele mesmo preparou.

Após o café matinal mamãe e tio Eduardo saem para resolver alguns assuntos pendentes e nós três vamos pescar, sou meia desastrada, papai e Henrique se divertem ao observar minha falta de jeito com o molinete, nós conversamos muito, o tempo simplesmente voou. Adoro a companhia deles, principalmente a do meu pai.

A única coisa que eu não gosto em meus pais são aqueles papos de namorados, eles pegam no meu pé, porque nunca tive um namorado sério. Já dei alguns selinhos, nada além disso. Me apavora só de pensar em algum relacionamento mais íntimo. Sei lá! Acho que sou muito reservada.

No dia seguinte acordei cedo, a casa parece que ficou ainda maior, vamos ficar dez dias aqui, só eu e a mamãe, isso vai ser um verdadeiro tédio. 

Sem sinal de celular aproveitei para pôr minha leitura em dia. Sentei na varanda e terminei o livro que a Sabrina me emprestou “A fera”, um título bem sugestivo em uma época que só se vive de aparências.

Mamãe me convida para conhecer o centro da cidade onde ela cresceu e viveu toda sua infância e início da juventude. Aceito o convite, procurando não demostrar minha falta de vontade em conhecer uma vila que chamam de cidade.

Dona Hanni desembarca do carro, solta o sinto de segurança sem tirar os olhos de uma pequena sorveteria, desembarca e não consegue esconder que está emotiva, mesmo com os olhos vermelhos ela segue mostrando as lojas, o banco da praça onde ela beijou o primeiro namoradinho. Ela fica admirando o lugar, enxuga algumas lagrimas ao me mostrar o bar onde ela e suas colegas tomavam sorvete, era o ponto de encontro da cidade, ainda deve ser, pois não vejo outras opções por aqui.

A cidade fica na encosta do vale, deve ter aproximadamente uns 500m de altitude, por aqui tem sempre um ar serrano muito agradável e fresquinho, a casa do vovô e algumas propriedades rurais ficam mais alto que a cidade, ganhando de brinde a visão de toda a região.

— Bom dia Nani é você mesma!? — Ouso uma voz gritada e histérica vinda de uma das lojas.

E do nada aparece uma mulher abraçando mamãe, que retribui o abraço parecendo estar muito feliz em ver aquela mulher extravagante.

— Ana Julia essa é minha melhor amiga do tempo de ginásio.

— Lissi — diz ela, bem rápido impedindo que minha mãe diga seu nome.

— É um prazer conhecê-la Lissi, pode me chamar de July é só a mamãe que me chama de Ana Julia — digo sorridente.

— Eu te entendo querida, era só minha mãe que chamava de Elissiane — diz ela me abraçando com força.

 As duas conversam empolgadas, enquanto fico andando pela rua em busca de sinal de celular, distraída esbarro em alguém alto e visivelmente mal-humorado, ele continua falando ao celular, e me segura pela cintura para não cair.

 — Como ele está falando no celular? — me pergunto, pois ainda não consegui me conectar ao mundo virtual.

— Ei menina, por que não olha por onde anda — diz o troglodita. 

Ríspida respondo:

— E você por que não toma mais cuidado! Seu grosso!

Sem dar muita importância para o acontecido ele recolhe os papeis que deixou cair no chão, enquanto ouso Lissi perguntar:

— Oi querida, vejo que você acabou de encontrar meu filho mais velho.

— Theodor! — Ele me estende a mão, ainda com a expressão fechada, pelo jeito deve ser um sujeito de poucos amigos.

Demostro um pouco mais de simpatia me apresentando de maneira mais civilizada, mas de nada adiantou, ele manteve sua postura de homem das cavernas.

— Vamos dona Lissi, já passei no veterinário e pegue o remédio para o mal-estar do Brutos, agora temos que medicá-lo.

— Meu filho é só um cachorro, eu e minha amiga vamos tomar sorvete como nos velhos tempos, lá no barzinho da esquina, eu no lugar de vocês dois faria o mesmo — diz ela saindo empolgada segurando o braço da amiga, que por sua vez está radiante.

— Brutos não é só um cachorro, ele é o meu cachorro — resmunga Theodor para si mesmo, parecendo irritado com o comentário da mãe.

Como um aceno um pouco mais gentil ele me convida para irmos até a sorveteria.

 Minha mãe e Lissi, não param de falar nem por um segundo, estão muito à vontade e tentando colocar o papo de alguns anos em dia.

Uma garçonete, loira, com olhos escuros, não muito alta, veio anotar nosso pedido, percebo que ela olha para mim e Theodor sentados juntos em uma mesinha ao lado da janela, parecendo não entender o que está acontecendo.

— Bom dia Theo tudo bem? — diz a garçonete ignorando minha presença.

Então Theodor é só para a mãe chamar, acredito que seja regra nessa cidade, as mães registram os filhos com um nome só para elas gritarem quando estão bravas e abreviam para as demais ocasiões.

Os dois conversam enquanto Samanta anota o pedido e em seguida se retira me observando só com o cantinho do olho. Acho que foi um sinal de que não sou bem-vinda a cidade.

 — Aconteceu algo? — pergunto direcionando o olhar para a garçonete.

— Acho que não é muito comum me ver tomando sorvete em plena terça-feira e principalmente com uma garota.

 Sem processar direito o que vou falar, pergunto:

— Por que? Você é gay?

Pela primeira vez vejo vestígio de sorriso em seus lábios antes de rebater a pergunta:

— A resposta faz diferença para você?

Fico vermelha até o ultimo fio de cabelo, só aí percebo a bola fora que acabei de dar, me justificando rapidamente.

— Desculpa minha falta de educação é claro que.... — ele interrompe meu discurso atrapalhado, dizendo:

— Não sou gay e não tenho nada contra quem é, apenas não é meu estilo.

— Então qual é seu estilo?

 — É uma longa história — diz ele antes de degustar o primeiro gole de café preto e sem açúcar que Samanta acabou de pôr em sua frente.

 Então o furacão Lissi e Nani que também está eufórica sentam-se conosco.

Enquanto termino o sorvete, só ouvimos as duas falarem combinando um jantar hoje à noite.

 Lissi eufórica diz:

— July, vou te apresentar o Junior, vocês têm a mesma idade, pode ser que tenham mais assuntos em comum.

Olho de relance para Theo que terminou seu café tranquilamente parecendo nem prestar atenção na conversa.

— Estou esperando as duas para um jantar com vinho e fofoca hoje à noite. Não precisam se preocupar vou encomendar comida pronta — diz Lissi enquanto abraça minha mãe.

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