Capítulo 03

Quando fala o amor, a voz de todos os deuses deixa o céu embriagado de harmonia.

William Shakespeare

— Só mais uma colherada. — Ele estava com a colher levantada na altura da minha boca e me olhava suplicante.

— A última — disse quase miando. Não gostava de negar os pedidos dele, mas não aguentava mais nada.

— A última! — Ele disse decidido com um sorriso vitorioso nos lábios.

              Assim terminamos o prato de canja que Maria havia me trazido, segundo ela, ninguém nesse mundo consegue resistir ao carinho que há em uma boa canja. Não fiquei melhor, mas com certeza em cada colherada senti o carinho tanto de quem fez a comida, como de quem me alimentava.

              Passamos o dia bem, digo passamos, pois o Guilherme estava doente junto comigo. Comia se eu comia, dormia quando eu dormia e parecia respirar no mesmo ritmo que o meu, estava sendo infinitamente mais do que um marido. Se alma gêmeas realmente existem, ele nasceu para ser meu e eu dele.

              Foi somente quando o sol começou a ceder espaço para a lua que meu corpo passou a dar sinais de que algo não estava bem. Sentia dores nas juntas e a sensação de que uma bigorna estava sobre meu peito. Sentamos no sofá da sala, Fátima abriu todas as janelas da casa e sentia em minha pele que o vento entrava livremente, somente não alcançava os meus pulmões. A sensação era horrível, mas sorria e tentava acalmar um noivo que berrava ao telefone andando de um lado para outro, exigindo que Gustavo liberasse a ambulância da cidade para vim me resgatar. Não sabia o que ele justificava, mas jamais vi o Gui agir daquela forma ou usar as palavras que ele estava usando com o amigo naquele momento. E, como se o universo estivesse testando a paciência e bondade de meu futuro marido, o pior aconteceu.

              O sangue escorreu solto por meu nariz, manchando não somente minha boca e queixo, mas como em uma cena de filme de terror, manchou minha camisa, levando todos ao meu redor ao desespero.

— Será que agora você pode enviar a porcaria da ambulância? Ou vai esperar minha mulher morrer com uma hemorragia bem na minha frente? — Ele gritou ao telefone e não ouvi mais nada.

— Gui? — chamei por ele e logo senti sua mão acariciando meu rosto.

— Estou aqui, amor, estou aqui.

— O que houve? — Não queria saber de mim e sim dele, suas lágrimas molhavam meu rosto e a voz embargada me levou ao desespero.

— Nada, Bia, nada. — Sem cuidado ele passava as mãos no rosto, limpando as marcas que as lágrimas faziam, como se esse ato conseguisse arrancar de sua face a dor e frustração que ele carregava.

— O que está acontecendo? — Não conseguia reconhecer a fraqueza em minha voz.

— Bia... — Foi a voz do Gustavo que chamou minha atenção, tentei me sentar na cama, mas o quarto rodou e caí sobre o travesseiro novamente. — Calma, fique assim como está mesmo, vamos conversar um pouquinho?

              Só neste momento que me permiti olhar ao redor. Helô e Fátima estavam sentadas no sofá de mãos dadas e me olhavam como se o meu cortejo fúnebre estivesse passando. Algo me dizia que a situação era muito pior do que imaginava. Sorri para elas e o que me deram de volta me causou ainda mais medo. Voltei minha atenção para Gustavo.

— O que está acontecendo, Gu?

— Bia, você foi diagnosticada com Leucemia Mieloide Aguda — disse sem rodeios, me olhando.

— E o que isso quer dizer?

— De forma bem simples, sua célula tronco está doente, muito doente e precisamos entrar com o tratamento agressivo nesse momento.

— Vou morrer? — Indiferente da gravidade da situação, era somente isso que importava.

              Ele não respondeu.

— Vamos começar o tratamento hoje mesmo, Bia, e faremos de tudo o que estiver em nosso alcance para conseguir a cura.

— Entendi — disse olhando para os únicos amigos que já possuí na vida. Mas meus olhos buscaram a pessoa que realmente me preocupava. — Podem me dar licença, por favor? Quero falar a sós com o Gui.

— Claro, minha amiga. — Helô foi a primeira a se levantar, puxando Fátima com ela.

              As duas passaram por mim e se inclinaram em minha direção, beijando o alto da minha cabeça e declarando o seu amor em meio às lágrimas, saindo assim do quarto.

— Irei dar um tempo para vocês dois, mas volto rápido, não podemos perder mais tempo.

              E, com essas palavras, Gustavo também deixou o quarto. Devagar e com a ajuda do Gui, consegui me sentar. Ele apoiava meu corpo e estava tão próximo que minha vontade era de me fundir a ele e simplesmente sumir. Se fosse para morrer, queria morrer amando aquele que um dia me resgatou.

— Oi — disse baixinho olhando em seus olhos, esboçando um sorriso.

— Oi. — Ele me respondeu no mesmo tom. — Você vem sempre aqui? — brincou.

— Essa sua cantada funciona com as outras? — Entrei no jogo.

— Só tentei ela com uma mulher e estamos juntos até hoje.

— Deve ser uma louca inconsequente.

— A louca mais linda!

— Sabe que você é a minha vida, não sabe? — perguntei ainda baixinho.

— Não faz isso. — Ele me respondeu sem conseguir conter as lágrimas que escorriam livres em seu rosto. — Por favor, só não faz isso. Não se despeça, só por favor, não me deixe.

— Desculpa. — As lágrimas invejosas em meus olhos se juntaram às dele e, como se conseguisse ouvir o desejo de meu coração, ele me abraçou tão apertado que todo o meu corpo doeu, mas me recusei a reclamar. Ele sentia a necessidade de sermos somente um, assim como eu.

              Ficamos abraçados e em silêncio. Para os outros, ficamos assim por muito tempo, para nós, foram somente alguns segundos. Meu corpo reclamou, não somente pela posição, como também por toda a força que ele colocava naquele abraço. Como se meus lábios tivessem vontade própria, se abriu e um grito de dor escapou, assustando até mesmo a mim.

              Gui me soltou no mesmo momento em que as enfermeiras entraram no quarto, ele tentava sem palavras me confortar, pela forma como pedia para me segurar, ele tiraria a dor com suas próprias mãos se pudesse.

              Sem muito tato, as enfermeiras foram jogando meu futuro marido para o lado, até que vi seu corpo cair sobre o sofá no canto, onde minutos antes estava minha amiga e minha sogra. As duas entraram correndo no quarto, sentando-se ao lado dele, amparando-o. Eu queria poder falar alguma coisa, dizer que ficaria bem, mas toda vez que abria a boca, somente gemidos saiam.

              Gustavo entrou em seguida, liberando ordens que eu não entendia, as palavras chegavam aos meus ouvidos, com uma ordem desconexa, eles estavam falando mandarim para mim e eu nunca aprendi nem o português direito. Meu corpo foi se acalmando e uma inércia se apoderando. Meus olhos ficaram pesados e mesmo eu me esforçando muito para continuar com eles abertos, estavam se fechando sozinhos. Procurei por Gui e adormeci olhando os olhos aflitos do homem da minha vida.

              Não sei dizer a vocês quanto tempo estava apagada daquela forma, mas meu corpo doía tanto, que o ato de respirar se tornou insuportável. Passei a dormir muito mais e permanecer acordada por pouco tempo, o suficiente para sentir o nariz voltar a sangrar e as juntas me atormentarem como se estivesse me quebrando em muitos pedaços. Em uma dessas vezes em que me vi em estado zumbi, acordada mas sem vida alguma, ouvi minha família e o pânico no tom de voz de cada um.

— Ela não vai morrer! — Helô falava decidida. — Não importa o que a medicina diga, ela não morrerá.

              Silêncio.           

— Diga a eles, Gustavo. — Ela ordenava. — Diga ao Gui que não perderemos a Bianca.

              Silêncio.

— Não é possível! — Minha amiga gritou e saiu, batendo a porta com toda a força que seu braço fino permitia.

— Guilherme — Gustavo começou a dizer em sua voz no “modo médico” —, você sabe que estou fazendo tudo o que está dentro do meu alcance.

              Silêncio.

— Daria a minha vida para não lhe ver desse jeito, meu amigo. – Sabia que de alguma forma, tentava consolar o amigo.

              Silêncio.

              Ele não falava nada.

              Eu queria gritar, dizer a ele que eu estava lá, que não havia desistido, que lutaria até o fim, mas nada em meu corpo me obedecia, eu tentei, juro que eu tentei. Me dediquei tanto a chamar por Guilherme que a exaustão me tomou e novamente a escuridão me engoliu.

— Não pode se entregar assim. — Ouvi Fátima falando baixo, mas carregada de autoridade. Sua voz estava longe, bem longe.

— Onde está a sua fé? – Seu tom de voz deixava claro a reprovação.

              Silêncio.

— Olhe para mim agora, Guilherme Medeiros! – O tom imperativo modo mãe, foi acionado.

              Hum... ela disse o nome dele completo. Agora o Gui estava mesmo encrencado, se minha boca obedecesse, estaria rindo da cara dele.

— O que foi? — Ouvi ele falar, mas não parecia sua voz, estava fraca e sem vida.

— Deus é sabedor de todas as coisas, entregou a você o que tanto pediu, por que acredita que Ele não iria curá-la agora? – A fé que exalava da minha sogra, deveria ser o suficiente para recarregar qualquer um, mas pareceu não atingir Guilherme.

— Não sei, mãe. – Ele parecia o doente, fraco, sem vida. Sua voz era somente um grande vazio.

— Então trate de saber. Ele não conhece impossíveis, Guilherme, não conhece.

              E assim ela se foi. Ouvi a porta se fechando e em seguida o som da cadeira sendo arrastada para perto. As mãos frias dele envolveram a minha, de um tempo para cá, as mãos dele sempre estavam frias.

— Amor, não consigo imaginar o que você está passando, mas, por favor, não me deixa, não desista de nós. — Ele me pedia com tanta dor que me odiei naquele momento.

              Guilherme ficou em silêncio, colocou os lábios no dorso de minha mão e ali ficou, sem nada ser dito. Me esforcei tanto para abrir os olhos, para dizer a ele que jamais o deixaria, mas tudo era muito estranho. Minha cabeça parecia estar ótima em seu melhor dia, mas meu corpo não reagia a vontade dela. Estava entregue.

— Eu sei que tudo está no controle de Suas mãos... — Ele começou a dizer e parou, puxando o ar para respirar. — Deus, o senhor sabe o quanto eu amo essa mulher, sabe que é do sorriso dela que eu preciso para continuar vivendo, eu só te peço que o Teu milagre aconteça.

              Ele estava orando e algo deve ter acontecido mesmo lá no céu, pois senti meu amor enxugando minhas lágrimas e falando baixinho ao meu ouvido, enquanto liberava beijos carinhosos. Naquele momento agradeci ao Deus dele, por ter tido tempo de colocar em palavras o amor que sentia pelo Gui. Ele encontraria a carta.

— Está tudo bem, meu amor, eu estou aqui, sempre estarei aqui, Bia. Pode ficar tranquila, descanse.

              Eu obedeci.

              Me entreguei a escuridão, sentindo os lábios dele tocando levemente os meus e sua mão acariciando a minha face. Tudo o que eu queria era ficar com ele, viver a vida que sonhamos e planejamos, ser carregada para dentro do nosso apartamento e fazer amor com o Gui em cada canto daquele lugar, então eu lutei, com todas as minhas forças, lutei por tudo o que vivi ao lado dele e por tudo o que ainda queria viver.

              Aos poucos consegui acordar, estava sendo medicada e o tratamento mexia muito com meu estômago e humor, vivia nauseada e nada mais parava dentro de mim. O transplante de medula parecia ser algo inalcançável, estava na lista do sistema de saúde, mas a demora estava enlouquecendo a todos e me tirando completamente a vontade de continuar vivendo.

              Morava no hospital. Gustavo, contrariando a todos, permitiu que Helô fizesse do quarto uma extensão de um canto agradável e habitável, segundo ela. Gui passou a literalmente morar comigo, foi colocado outra cama hospitalar ao lado da minha e acreditem, o nome do meu falecido sogro abria portas inimagináveis.

— Estou cansada de tudo isso — assumi em uma tarde, após ter perdido o estômago dentro do saco para vômito.

— Pare com isso! — Ele me deu uma bronca e continuou a limpar meus lábios e segurar a garrafa com suco de limão gelado para que eu tomasse.

— Não aguento mais, Gui, por favor, só me deixe.

              Bati na mão que segurava a garrafa, fazendo todo o líquido cair no chão e espirrar na parede. Caí sobre os travesseiros e chorei, gritando para que ele simplesmente me deixasse ir.

— Pare com isso, Bianca, pare com isso agora! — Ele gritava tão alto quanto eu e segurava meus ombros pedindo para que olhasse pra ele.

— Não, Guilherme, isso não é vida, não é justo com você, não é justo comigo.

              O cansaço me tomou, tirando completamente o ar dos meus pulmões. Me sentei de súbito buscando respirar, mas quanto mais puxava o ar, mais ele sumia.

— Me ajudem! — Ele começou a gritar em desespero. — Socorro! Socorro!

              Ouvi a correria dentro do quarto, os gritos do Gustavo e o soluçar alto de Helô, minha sogra clamava a Deus com todas as suas forças e o Gui andava de um lado para o outro, gritando “não, não, não”. Juro para você que eu lutei, briguei com meu corpo e contra toda a escuridão que tentava me tragar, mas perdi a briga.

Enfim a escuridão me levou.

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