Capítulo 2

                                                               Carol

A menina estava sentada em frente a uma mesa de centro, numa sala insípida, penteando os longos cabelos loiros de uma boneca e balbuciando palavras de carinho para ela, quando o jovem doutor entrou e a viu.

- Como vai, Carol? – perguntou, enquanto ela brincava e o ignorava.

Ele sentou-se no sofá à sua frente, deixando sua prancheta e caneta descansarem a seu lado, enquanto a observava.

- Você já deu um nome à sua boneca?

A pequenina continuava a brincar, sem se importar com sua presença.

- Acho que deveria chamá-la de Carol.- disse médico, observando-a.

- Por quê? – enfim, perguntou a menina.

- Ela se parece com você.

Mesmo tendo pouca idade, a pequena lançou um olhar de desdém para o jovem, que lhe sorria na esperança de conquistar sua confiança.

- Tenho cabelo curto e a boneca tem comprido. E eles não são iguais! – disse apertando os lábios e se voltando para a boneca.

- Mas um dia eles crescerão e você se tornará tão bonita quanto a sua boneca!

- Por que estou aqui? Cadê a minha mãe? - inquiriu a criança, fazendo beicinho.

- Seus pais estão lá fora. Eu gostaria de conversar um pouquinho com você.

- Por quê? – perguntou a pequena, franzindo a testa.

- Gostaria que você me falasse dos seus sonhos.

- Não são sonhos. Mamãe não gosta quando eu falo sobre isso.

- Mas foi sua mãe que a trouxe aqui. Ela acha que se você me contar tudo sobre eles, ficará mais feliz.

- Eu não estou triste! – respondia, enquanto trocava a roupa da boneca.

- Mas esses sonhos te deixam triste, não é mesmo?

- Já disse que não são sonhos. Eu vejo tudo quando “tô” acordada.

- Você está vendo alguma coisa agora?

- Não! “Tô” com fome. Posso ir embora? – perguntou a menina, olhando pela primeira vez para o jovem médico.

- Pode, mas você vem me ver amanhã?

- Você vai olhar minha garganta?

- Não querida! – disse sorrindo, enquanto lhe estendia uma bala de caramelo – Não sou esse tipo de médico.

Ela olhou para ele com uma expressão intrigada no rostinho pequeno. Levantou-se e abraçou a boneca.

- O que você faz, então?

- Eu ajudo pessoas a entender as coisas que acontecem com elas. Posso ajudar você a entender porque vê essas imagens quando está acordada.

- Elas não me fazem mal, é só que...

- Elas te incomodam, Carol?

A menina deu de ombros, enquanto ele aguardava a resposta.

- Tudo bem, querida. Pode ir agora, mas peça para seus pais entrarem, enquanto você fica brincando com aquela moça bonita lá na recepção, está bem?

- “Tá”.

A moça se remexia na cama. Estava prestes a acordar de uma noite agitada, cheia de sonhos que se repetiam com certa frequência. Ela abriu os olhos assustada, praguejando:

- Droga de sonho! Por que isso está acontecendo comigo?

Levantou-se e foi cambaleando até o banheiro. Acendeu a luz e encarou o rosto cheio de olheiras, no espelho.

- O que está acontecendo com você, Carol? – fechou os olhos, suspirando profundamente.

Como sempre acontecia, não obteve a resposta que queria, e isso a transtornava. Era sempre o mesmo maldito sonho. A menina e o psiquiatra. Ela sabia que a menina era ela com seus quatro anos de idade, porém, quando perguntava aos pais se algum dia tinha frequentado o divã de um analista, a resposta era sempre a mesma: NUNCA! Então, por que diabos tinha esse sonho recorrente? Resignada, lava o rosto e desce para a cozinha, ao encontro dos pais.

- Bom dia princesa! – disse o pai, abaixando o jornal, quando ela sentou-se à mesa.

- Bom! – respondeu mal humorada.

- Ei! Que bicho te mordeu? – perguntou a mãe, colocando uma xícara de café fumegante à sua frente e um prato cheio de pão.

- Nada! – respondeu azeda.

- Não seja malcriada com sua mãe, Carol, ou ficará de castigo.

- Pai! Quantos anos você acha que eu tenho?

- Para mim você sempre será minha garotinha, não me importa que esteja quase terminando a faculdade – sorriu zombeteiro.

- Pois deveria se importar. Acho que fiz besteira ficando aqui em São Carlos. Talvez tivesse sido melhor optar por estudar em São Paulo. Mas não! Eu tinha que deixar vocês me convencerem.

- Você jamais iria se adaptar em São Paulo, querida! E aqui, eu fico de olho em você.

- Você me tortura isso sim! Pensei que ter aula com você iria me favorecer, mas foi justamente o contrário! Você pega mais no meu pé do que no dos outros alunos.

O pai abaixou o jornal e lhe sorriu jocoso.

- Tenho que dar o exemplo. Se for brando com você, seus amigos cairão matando em cima de mim.

- Manipulador – respondeu, levando a xícara aos lábios.

- Você deveria pegar leve, querido – ralhou a mãe, em prol da filha.

- Ainda bem que você está do meu lado, mãe.

- Sempre, querida – sorriu, colocando a mão em seu braço.

- Mas me diga, Carolzinha, – falou o pai, enquanto a  moça revirava os olhos – por que está com essa olheira? Não está conseguindo estudar? Está com dificuldade em alguma matéria?

- Como se você não soubesse, se eu estivesse! Ele vive perguntando das minhas notas para os colegas dele – voltou-se para a mãe.

- Ben! Você não faz isso, faz? – perguntou debochada a mãe, já sabendo a resposta.

- É claro que não! – respondeu, farfalhando a folha do jornal; e as duas caíram na risada.

- O que foi querida? Seu pai está com a razão. Você está com olheiras. Não dormiu bem?

- Aquele sonho de novo – respondeu; e os pais trocaram um olhar cúmplice, enquanto Carol abaixava os olhos para o pão à sua frente.

- Isso vai passar, querida – respondeu a mãe, levantando-se bruscamente da mesa – Já estou indo. Alguém quer uma carona?

- Vou com você querida – disse o pai, beijando o alto da cabeça de Carol.

Carol sabia que eles não gostavam quando ela trazia o assunto à baila. Só não entendia a razão.     

                                                               ******

Enquanto Carol deixava a cozinha acolhedora, seus pensamentos correram soltos ao passado. Sentia-se ressentida por sua vida ter sido traçada, desde o seu nascimento, pelos pais. Sempre fora a bonequinha do pai e o orgulho da mãe. Era óbvio que escolheria a mesma profissão que o pai. Porém, o que eles não imaginavam, ou fingiam não perceber, é que, embora fosse uma garota obediente e gostasse verdadeiramente daquilo que estudava, sentia-se presa. Era como se tudo que houvesse feito fosse apenas um passatempo, até que pudesse realizar aquilo para o qual havia nascido, e que era algo que nem ela mesma sabia o que seria. Conseguia sentir a chama que a consumia e devorava por dentro. Sabia que precisava realizar algo de extrema importância, contudo, tudo o que havia aprendido em seu curso de Química, não era exatamente o que a deixava realizada. Precisava de algo mais.

Seus pais queriam que ela seguisse a vida acadêmica, mas seu espírito queria ser livre. Sentia que esse algo, que estava preso dentro dela, esperava o momento certo para se libertar, a levando para plenitude que tanto procurava. Quase encontrara essa plenitude na música. Seu primeiro contato com um instrumento, o violão, a deixou extasiada. Era incrível o som vibrando por entre os dedos quando os corria pelas cordas, calando fundo em sua alma. Lembrava-se perfeitamente quando chegou à sua casa falando da descoberta.

- Pai, estou apaixonada – declarou com um largo sorriso, deixando o pai paralisado.

- Apaixonada? Como assim? Não acha que é muito cedo para isso? Você só tem doze anos.

- Ah, pai. Não é desse tipo de paixão que estou falando, derrr – fez careta, erguendo as mãos para o alto e revirando os olhos.

- De que tipo de paixão estamos falando, então? – perguntou o pai sorrindo, enquanto a mãe o olhava da pia da cozinha, fechando a torneira.

- Do violão!

- Violão? – perguntou a mãe, enxugando as mãos e olhando aborrecida para ela. – Não quero você metida com essas coisas.

- Como? – ela rebateu procurando pelos olhos do pai. – Por que não posso aprender a tocar violão? Você vive cantando pelos cantos da casa. Por que não quer me ver feliz? – seus olhos encheram-se de lágrimas amargas.

- É claro que quero vê-la feliz. Só não quero que seja com um violão nas mãos. Isso é coisa de gente que não tem o que fazer; e você tem muito o que estudar, se quiser passar no vestibular.

- Pai!

- Querida, talvez...

- Não me venha com essa, Benjamin. Você sempre faz tudo o que essa menina pede. Não vou tolerar nenhum instrumento nessa casa e ponto final. Eu sei o que isso pode fazer com uma pessoa – respondeu irritada, saindo da cozinha, dando as costas aos dois.

- Pai, não é justo. Por que não posso tocar violão? Minhas amigas fazem aula de um monte de coisas e eu tenho só que ficar estudando e estudando essas matérias chatas. Eu quero me divertir também.

- Eu sei querida, é que... Sua mãe tem motivos para não gostar disso...

- Por quê? Que mal há em tocar violão? Fala com ela, por favor, pai.

- Está bem querida. Vou falar, mas não prometo nada.

- Ela é uma chata, isso sim. “Tá” sempre implicando comigo.

- Isso não é verdade, gatinha! Sua mãe só quer o seu bem.

- Pois não parece. Ela quer que eu fique louca de tanto estudar. Quero me divertir também.

- Vá descansar, gatinha. Depois a gente conversa.

Ela deixou a cozinha emburrada e com raiva da mãe. Não podia entender como alguém, que gostava de cantar e de ouvir música, pudesse ficar com tanta raiva, só porque ela disse que tocaria um instrumento. Será que o problema era, especificamente, com o violão? Ela sentiu-se tão feliz quando sua melhor amiga a deixou pegar no violão do irmão. Foi como se  o conhecesse a vida inteira. Sabia exatamente o modo de colocá-lo em seu colo. Lembrava-se do coração disparado ao passar as mãos pelas bordas da madeira envernizada. Seus dedos finos da mão esquerda procuraram automaticamente pelas casas, distanciando-se dos traços com perfeição. Ela podia fechar os olhos e vê-los correndo, nota por nota, transformando-as em acordes, enquanto seu polegar direito deslizava por entre os bordões e as primas. Aquele som parecia sair de dentro dela, e uma música quase saltara para fora, escondida em sua mente.

- Você sabe tocar, Carol? Pensei que não soubesse.

- Eu não sei.

- Mas você está fazendo um acorde. Meu irmão me ensinou alguma coisa. Você está fazendo um Ré. – disse a amiga, admirada.

Carol soltou o violão assustada. Como ela poderia saber aquilo? Tudo o que fizera foi imaginar, quando estava de olhos fechados.

- Eu não sei tocar. Apenas fechei os olhos e vi a posição dos dedos nas cordas surgir em minha mente.

- Puxa! Eu gostaria que fosse assim comigo. Por mais que eu tente não consigo mudar de um acorde para outro com rapidez, e o som sai horrível. Meu irmão diz que não tenho jeito para coisa. Você deveria aprender. Ele tem um ótimo professor.

- Vou pedir ao meu pai.

Tudo poderia ter sido diferente, ela pensava, enquanto subia as escadas em direção ao quarto.  Sempre esteve envolta por mistérios que não conseguia resolver. Toda essa questão de não poder fazer coisas de que gostava, como tocar violão, por exemplo, e de não ter respostas diretas para suas perguntas, a deixava furiosa. Por que eles não respondiam suas perguntas sobre o maldito sonho? Eles ainda a tratavam como a criança que fora aos doze anos. Carol sabia que eles a amavam e que queriam seu bem, mas não percebiam o quanto a sufocavam? Bem, agora estava com vinte e três anos. Já era adulta. Se não obtinha respostas por eles, então tentaria em outro lugar. Já estava na hora de saber o que havia por trás desse sonho.

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