Capítulo 02 - jade

Faltavam vinte minutos para o avião decolar. Eu apertava a alça da mochila com tanta força que meus dedos doíam. Olhei para todos os lados tentando não demonstrar o quanto eu estava com medo. Eu não podia correr o risco de ser descoberta bem na hora que eu estava prestes a me libertar.

Eu olhava o relógio a cada dois minutos e meu coração deu um salto quando a atendente chamou meu nome.

- Srta. Anita Veiga.

Me aproximei tremendo e apresentei o documento de identidade falso que meu amigo Rian tinha conseguido às pressas. Pareceu uma eternidade até que aquela mulher conferiu os dados e me devolveu o documento.

- Boa viagem, senhorita

- Obrigada. 

Entrei quase correndo no avião e sentei encolhida na poltrona rezando para que levantasse voo logo. Precisava sair dali para me sentir mais segura.

Não sabia se estava fazendo o certo ou não, mas agora não tinha volta. Não aguentava mais a vida que levava em casa e não via outra saída senão me afastar daquelas pessoas que não me amavam e não me respeitavam. Era muito triste ter que fugir de casa para poder ter paz, mas depois de várias tentativas de conviver com minha mãe e meu padrasto, entendi que teria que partir de mim a decisão de trilhar meu caminho.

Não sei por que escolhi sair de Salvador e vim para São Paulo, talvez por ser uma cidade grande, onde ninguém se importava com quem passava ao lado e aquilo poderia me ajudar a recomeçar do zero.

Eu sabia que seria difícil, mas eu não pensava em desistir. Meu único medo era descobrirem que falsifiquei um documento e troquei de nome, mas eu não pretendia continuar com aquele documento para sempre, quando eu encontrasse um lugar seguro para morar eu poderia assumir minha verdadeira identidade. Aquilo foi só um disfarce para poder sair da cidade. Pelo menos, as coisas erradas que meu padrasto e seus amigos faziam me serviram para alguma coisa. Não foi difícil encontrar um cara que falsificava documento sem burocracia. Tive que recorrer ao meu amigo e fiel escudeiro Rian.

- Como é Jade? Você vai fugir de casa?

- Vou. E você vai me ajudar.

- Eu?  Posso saber como?

- Vai conseguir uma identidade falsa pra mim.

- Onde?

- Sei lá, pergunta ao seu pai onde conseguiu quando ele fugiu daquela investigação dos dólares roubados a um tempo atrás

- Jade...

- Você me deve uns favores aí, Rian, então me ajude agora.

Ele franziu a testa confuso.

- Por que vai fugir?

Eu confiava naquele moleque. Já tínhamos passado por tanta coisa juntos. Ele era filho de um deputado amigo do meu padrasto e a família dele frequentava minha casa o tempo todo. Eles se reuniam para discutir como pedir propinas para aprovação de projetos para empresas de grande porte. Eles nem escondiam de nós os assuntos das conversas e minha casa parecia um banco de tanto dinheiro que havia escondido em caixas e cofres.

Rian estava lá em casa sempre com os pais e todos eles pareciam de alguma forma envolvidos naquele negócio sujo. Até minha mãe se prestava ao papel de espiã e se aproximava de pessoas influentes para conseguir informações importantes. Eu me sentia enojada com tudo aquilo, mas me fazia de desentendida, afinal o dinheiro comprava tudo do bom e do melhor que uma garota de 20 anos poderia querer. Viagens ao exterior, compras, roupas de marca, escola boa e até carros e motos, mas aquilo incrivelmente não me preenchia. Minha mãe estava sempre ausente e eu não tinha com quem conversar. Eu me sentia muito sozinha, sentia muita falta do meu pai, mas ele morrera quando eu tinha dez anos e logo depois minha mãe se casou com o Carlos e ele, embora não deixasse faltar nada em casa, não me tratava com uma filha. Na verdade, mal olhava para minha cara e mais tarde quando resolveu prestar atenção em mim não foi da forma que um pai olha para uma filha.

Rian me chamou de volta.

- Ei, gatinha, me diga por que vai fugir?

Respirei fundo.

- Entre outras coisas por que o Carlos quer me obrigar a casar com o deputado Jonas.

Ele riu incrédulo.

- Aquele velho de 60 anos?

- Aquele velho de 60 anos que tem muito dinheiro e resolveu que iria me comprar.

Eu me arrepiava só de pensar naquele homem nojento me tocando. Preferia morrer a ter que me entregar a um homem daqueles em troca de acordos políticos.

- E sua mãe? Não disse nada?

- Disse que eu tenho que pensar em meu futuro.

- Que nojo!

- E então vai me ajudar e ficar de bico calado?

- Onde você achou dinheiro? Pra onde vai?

- Não posso dizer pra onde eu vou, é melhor pra nós dois, Depois eu te ligo e falo.

- Como vai sobreviver sozinha, menina?

- Eu me viro. Descobri a senha da minha mãe e transferi dez mil reais pra minha conta. Deve dar para comer até eu conseguir um emprego.

- Você é louca!

- Louca nada, estou tentando sobreviver.

- Tudo bem, vou te ajudar, mas prometa que vai manter contato

- Tá, prometo sim.

Dois dias depois daquela conversa, Rian me entregou um documento falso com uma foto de uma garota branca de cabelos pretos, com o nome de Anita Veiga Vilas Boas. Quase chorei quando joguei aquela tinta horrorosa em meus cabelos loiros brilhantes, mas era por uma boa causa. Minha mãe prestava tanta atenção em mim que nem viu que pintei meu cabelo e quando eu disse que passaria dois dias na casa de Vanessa, uma amiga que nem era tão próxima, ela apenas me disse tchau sem nem olhar para minha cara.  Aquilo me deu tempo suficiente para comprar a passagem e pegar algumas malas sem chamar a atenção. E agora estava eu ali, olhando pela janela do avião e já avistando o céu cinzento de São Paulo.

Meia hora depois, o avião aterrissou no aeroporto de Guarulhos e eu fiz uma oração pedindo a Deus que tudo desse certo e que eu não precisasse voltar humilhada para pedir abrigo em casa de novo.

Arrastei minhas malas pelo saguão do aeroporto que de certa forma não era tão estranho. Eu já tinha ido a São Paulo algumas vezes e não me sentir tão perdida. Tirei da bolsa o papel onde tinha anotado o endereço de uma pensão barata que procurei na internet e tinha alugado um quanto para uma semana. Daria tempo para ver se dava certo ou se teria que procurar outro lugar.

Peguei um táxi e dei o endereço.

O homem me olhou curioso.

- Isso aqui é muito longe, vai custar uma fortuna.

- Eu sei, quanto?

Ele pigarreou.

- Uns 500 reais.

Eu parei e dei uma risada

- Tá pensando que sou idiota? Dou 200. É pegar ou largar.

Ele me olhou dos pés à cabeça, com certeza achando que eu era uma delinquente que realmente tinha fugido de casa.

- Só se pagar primeiro, conheço vocês drogados. Quando chegar lá vai querer me dar o cano.

Enfiei a mão na bolsa e estendi os duzentos reais. Melhor ele achar que eu era uma delinquente mesmo, talvez aquilo até me protegesse.

- Podemos ir agora?

Ele resmungou e jogou minhas malas no fundo do carro.

O trajeto até o centro de São Paulo foi longo e silencioso e cerca de duas horas depois ele estacionou em frente à pensão que eu tinha alugado o quarto.

Ele jogou minhas malas no chão e deu um sorriso meio debochado.

- Vai se hospedar ai? Cuidado! Isso aqui é meio perigoso.

Tentei parecer corajosa.

- Tudo bem, obrigada pode me deixara aqui mesmo.

A casa de perto parecia mais velha e suja. Me aproximei da porta e toquei a campainha. Uma senhora de meia idade abriu a porta pela metade e me olhou de cara feia.

- Diga, moça...

Eu engoli em seco.

- Eu... reservei um quanto. Sou Anita Veiga.

Ela se afastou e fez sinal para que eu entrasse.

O Interior era um pouco mais acolhedor. Bem colorido e com móveis antigos. Uma mesa pequena na recepção e uma escada estreita que levava ao andar superior.

Eu descansei as malas no chão e olhei para a mulher que me encarava meio desconfiada.

- Você não parece com as meninas que alugam meus quartos

- Como?

- Você fugiu de casa?

Que inferno! Estava assim tão na cara.

- Sim, fugi. Tem algum problema?

Ela sacudiu os ombros.

- Pra mim, não, pra você, não sei.

- Não tem problema nenhum pra mim, vou poder ficar?

- Tem que pagar adiantado.

De novo? Que povo doido!

- Tudo bem, eu pago.

Ela foi andando em minha frente rebolando em cima de um salto altíssimo. Mulher estranha!

Abriu a porta de um quarto pequeno e apertado.

- Na reserva dizia que o quarto era maior.

- Mas não é. Vai querer?

- Quero, mas você me devolve 100 reais. Você me enganou.

- Garota, você é muito ousada. Aqui quem dar as ordens sou eu.

- Até dispenso os cem reais se você me ajudar a conseguir um emprego que não seja de garota de programa.

Ela me olhou demoradamente, provavelmente surpresa por ver que eu não me deixaria ser passada para trás tão facilmente. Sempre aprendi a me virar sozinha desde cedo e não era uma mulher com cara de cafetina que ia me botar medo.

- Esperta, hein garota, gostei de você.

Eu sorri satisfeita.

- Eu também posso gostar da senhora. Estou aqui sozinha e precisando de um emprego. Vou pagar certinho e posso até ajudarem alguma coisa até conseguir trabalho. Podemos fechar negócio?

Estendi a mão e ela segurou com força

- Fechado, mocinha

Quando ela saiu eu me deixei cair sobre a cama exausta. Que dia! Faltava só mais uma coisa. Peguei meu celular, retirei o chip e desliguei. Um iphone seria muito fácil de rastrear e eu não podia correr aquele risco. Retirei da bolsa um aparelho popular que Riam tinha comprado e inserir um chip novo com o número de São Paulo. Agora ninguém poderia ligar pra mim, só quem eu quisesse falar.

Liguei apenas para Rian e disse que estava bem, mas que ele não dissesse a ninguém onde eu estava. Pedir apenas que ele avisasse a minha mãe que não me procurasse, por que eu não queria voltar para casa, mas que não se preocupasse. 

Não era só por causa daquele casamento ridículo que eles inventaram com um homem que mal se mantinha de pé, tinha muito mais coisas que me incomodavam.   Não tinha mais estômago para conviver com o Carlos, meu padrasto. Eu tinha fechado os olhos por muito tempo, mas recentemente eu percebi que se não tomasse uma decisão aquilo ia acabar me adoecendo, principalmente por que algo me dizia que minha mãe não teria a atitude que eu esperava. Era muito triste admitir aquilo, mas eu receava que se falasse com a mãe sobre o comportamento do marido ela se omitiria em nome da boa vida que levava, então cabia apenas a mim fugir daquele ambiente doentio e tentar me salvar.  Eu sabia que não seria fácil, mas eu iria até as últimas consequências para não ter que conviver com aquelas pessoas novamente.

Levantei lentamente e me olhei no espelho da porta do banheiro. Estava com um aspecto péssimo. Com olheiras e o rosto cansado. Me achei estranha com aqueles cabelos pretos, eu amava meus longos cabelos loiros e pretendia dar um jeito de tirar aquela cor. A moça disse que era apenas um tonalizante que sairia conforme eu fosse lavando.

 Pensando bem eu estava meio gordinha, precisava maneirar um pouco nas comidas prontas e refrigerantes senão teria que enfrentar uma dieta, coisa que eu odiava. Por enquanto acho que dava pra segurar naqueles sessenta e oito quilos distribuídos em meus 1,65 de altura.  Naquele momento minha maior preocupação era arrumar um emprego e não se estava gorda ou magra.

Respirei fundo e fui tomar um banho, precisava dormir e recuperar minhas forças para o dia seguinte.

Levantei cedo e sair em busca da dona daquela espelunca para descobrir como tomar café. Encontrei-a na sala brigando com uma senhora que arrumava a mesa para o café.

- Este café está horrível, faça outro e esquente esse pão.

Até parece que ela estava preocupada com a qualidade do café servido ali, o que ela queria mesmo era humilhar a pobre coitada.

- Posso ajudar?

Ela se virou para mim com cara de poucos amigos.

- Sabe fazer café? Acho que não, com essa carinha de menina rica, então não enche o saco.

Passei por ela ignorando-a e seguir a mulher para o interior da cozinha.

- Deixa que eu faço esse café, eu que vou tomar mesmo, pelo visto não tem muitos hospedes aqui.

A mulher deu uma risada irônica

- Quem aguenta essa chata? Não tem hospede nenhum. Até eu estou querendo ir embora. Arrumei um trabalho na casa de um solteirão ai e estou querendo dar o fora daqui

- Então por que não vai?

- Porque tenho pena de deixar essa ingrata sozinha, ela é minha irmã, então acho que vou m****r minha filha para lá.

- Esse trabalho é para fazer o que?

- Tudo. Arrumar, cozinhar. O cara mora sozinho, mas a casa é enorme e a mãe dele disse que tá uma zona lá. Vai dar muito trabalho.

Aquela ela minha chance.

- A senhora não quer me indicar para esse serviço não?

Ela me olhou incrédula.

- Você? Claro que não. Não daria conta de um serviço desses.

Eu quase ajoelhei na frente dela.

- Por favor, me ajude, estou precisando muito

- Se bem que minha filha já está cuidando de uma senhora idosa, não teria tempo.

- Então. Por favor me ajude a conseguir esse emprego, prometo que faço tudo direitinho.

Ela suspirou.

- Tá certo, fiquei de me encontrar com a mãe do cara lá na casa dele amanhã, posso te levar e ver se ela aceita.

- Ela vai aceitar, tenho certeza.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo