Capt.6

- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto:

- Existem casebres vagos intra-muros?

Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me:

- Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões.

- Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó?

Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entrar? Alguém? Os visigodos além Pirinéus? Os bagaudas vasconnes? Ou os resquícios dos alanos e vândalos que se tornaram salteadores de estrada nas amplas pradarias hispânicas? Porque é que o rei não nos dá mais homens? Querem é que sejamos mortos e esquecidos aqui; O bastarzinho e o incomodativo sobrinho. É isso que querem?  Pegunto a um puto que por lá pairava:

- Queres ir numa caçada?

Estirado estou no solo de Inverno, respirando a terra. Minhas mãos, como garras, esgaravatavam-na quente, a Deusa-mãe Freya está quente. Pequenas valquírias de pólen esvoaçam no ar, louvando a Deusa dos bosques. Procuro o martelo de prata dependurada no meu peito por um fio de robusto couro, sentindo as estrias trabalhadas por um artesão bretão que me fizera em Britonnia[1]. Quando o toco tento achar uma sintonia com o céu azul que me encima. Quando a acho, fruo o momento uno com o céu, devotando-me ao velho pai Woden que expulsou os gigantes chegado do Leste. Os gritos dos homens despertam-me da minha letargia.

- Boríngio, Boríngio, que raios fazeis aí deitado?

Ergo o tronco, procurando o puto acima do feno, ele detém-se, surpreendido, a olhar o meu cabelo cheio de folhas e mato avisando-me com o dardo:

- Tás maluco, queres que os outros te vejam assim, sabes qual é o castigo por te baldares numa caçada? – pergunta aflito o miúdo Quinto Célio, olhando para todos os lados da imersa mata, eu, calmamente, ponho-me de pé, fazendo-lhe uma careta. Ele queria sorrir, mas, como me tinha ralhado, conteve o riso, acena-me então com o dardo dizendo-me “anda daí!”, embrenhando-se como um lince arvoredo adentro. Sacudo as folhagens, torno a atar as botas de camurça, envolvendo as pernas com os atilhos até às virilhas. Ajeito a túnica preta de linho por baixo do felpudo colete, puxando-a, por debaixo do cinto para a endireitar. Tomo a longa lança do chão e recoloco o atilho na testa. Embrenho-me com passo furtivo no encalço do puto, evitando picos e silvas. A gritaria começava a aumentar à medida que eu corria para o desconhecido, gritando por Quinto. Até que vejo surgir por entre os arbustos um focinho de javali com as suas presas afiadas. O bicharoco investe contra mim e eu não tive tempo de parar e enristar a lança. Preparei-me para o embate dele contra as minhas pernas, mas o bicharoco, com uma agilidade notável, guina para a minha esquerda. Vejo as suas crias com riscas amareladas no lombo dirigindo-se apavoradas a mim e preparo a lança mirando a umas delas. De repente, recebo uma chifrada da minha esquerda desprotegida que me fez rodar e cambalear pró chão. O raio do javali fez meia volta atrás e investiu contra mim para proteger as suas crias. A gritar no chão, permaneço agachado levando chifradas nos rins, até que os homens cercam o animal e tentam espetar-lhe lanças no lombo, Odoacro atira-se ao pescoço da besta cutilando o crânio, a lança de Frumário perfura-lhe as costelas e quase me vaza. Por fim, Odoacro, com a cara manchada de sangue, ergue o seu cutelo em sinal de vitória. A caçada tombou e todos gritamos uivos de contentamento. Ajudam-me a levantar agarrado aos meus rins. Quinto não consegue disfarçar um riso irónico, sinal de que apanhei com o javali em cima por descurar a caçada. Eu dava graças aos deuses por estar vivo, um primo meu morreu duma investida de um javali há três anos. Atamos as patas do javali a um tronco jovem de pinheiro, era o primeiro animal que caçávamos, ainda nos faltava mais um do mesmo porte, tínhamos bocas para alimentar em Saturnring e o Inverno e a bolsa do distante rei em Mérida não nos  mostravam sinais de abundância tal como o Atrace deduziu das entranhas dos animais.

Deixamos a floresta cerrada dos seixos e faias e subimos para um deserto monte queimado onde pernoitaríamos antes de descer para o vale de Ulf. Lá, entre fragas de cabeças de gigante das outras eras, acampamos, vendo o sol descer para os lados do mar externo. Bebemos o sangue dos javalis, comemos bolota esmigalhada, damos graças aos deuses cantando.

Vou untando as feridas, nas minhas pernas, com uma gema de ovo para cicatrizarem mais depressa. Odoacro ainda não limpara da sua cara e cabelo o sangue do animal, assim sendo a sua densa barba loira estava agora avermelhada como Donnar, o nosso deus popular. Deita um olhar desinteressado à minha perna arranhada e depois olha a fogueira bebendo vinho tinto por um odre de ovelha.

- Estamos fodidos Boríngio.

- Ah, e porquê?

- Quanto tempo julgas mais que eu e tu sobreviveremos, estou à espera do dia em que assassinos contratados pelos teus tios ou por quem se quer ver livre de mim…

- Hermerico? – interrompe-o.

- …Hermerico ou alguém próximo, porque julgas que nos enviaram a Saturning com tão poucos homens para defendê-la, querem-nos é ver mortos Boríngio. Não tarda teus tios e o rei enviam-nos uns párias para nos degolar, podes ter a certeza. – Frumário e o puto Quinto Célio miram-nos com ar de assustados. Eles fazem parte de Saturnring e não deve ser agradável viver com alguém com a cabeça a prémio. Será que meus tios querem-me ver morto? Recordava o longínquo passado, vi mães a comerem os próprios filhos que geraram cozendo-os, meu pai obrigava-me a manter os olhos abertos perante tais monstruosidades como maneira de me endurecer, vi feras a comerem homens fortes, enquanto nós estávamos bem protegidos pelos carros dos bois em círculos na espartana invernia.Recordo-me da Grande Reunião em que tirámos as sortes das províncias hispânicas com os filhos de leste, a nós coube-nos a parte mais ocidental da Galécia. Eu já começava a ser um robusto jovem endurecido pela vida, via Odoacro algures, também jovem, perdido entre as muitas famílias de Arivões, Varinos, Eudosos, Suardões, Nuitões, Marsignos e Burios, relembro buria, uma terra fértil ao longo da Gar[2]. Os galaicos deram-nos luta, combatemos bem até se consertar a paz e ficamos no nosso cantinho, enquanto que Valia despedaçava os alanos e vandalos na Lusitânia e Bética, os vândalos na Bética acabaram, e Adace rei dos alanos pereceu sob o machado gótico. Até que Gunderico rei dos vandalos da Galécia decide atirar-nos borda fora e nos cerca nos montes Narbassos, foi o meu primeiro combate e Odoacro estava lá. Formámos um escudo defensivo em cima dos carros de bois e aguentámos pedraça, granizo, chuva, calor, frio, imóveis como uma estátua, estancando a onda vândala, que acabou por se retirar. Erguemo-nos dos escombros e meu pai continua a consolidar o poderio suévico até que perece. Ao rei vândalo Guderico sucede Genserico e os vândalos partem para África. Estamos sós, minha mãe não quer saber da terra búria, meus tios mandam-me servir o rei Hermerico que quer conquistar a Lusitânia e sua capital Mérida sem alanos e vândalos por perto. É tempo de agir! mandam-me para a guerra, Odoacro foi comigo, também não muito feliz.

A fogueira crepitava, Frumário bebe pelo odre de ovelha, os lobos uivam e eu toco do meu martelo de Donnar, o puto Quinto Célio está inquieto.

- Não te apoquentes rapaz, o fogo protege-nos.  

- E a nós Odoacro, quem nos protege, a tua cauda?

- Que cauda? – pergunta curioso o puto.

- Não me digas que não sabes que ele tem uma cauda, só os filhos de rei é que tem uma cauda. – informa Frumário muito sério. O puto risse desalmadamente, torna a ouvir os lobos e fica calado, “cauda, cauda têm os que uivam à nossa volta”, envolve-se no manto e tenta recostar a sua cabeça num penedio.

- Durmam, eu não deixo que os assassinos nos matem. –

- Mostra-lhes a tua cauda que eles assustam-se. He! He! – ironiza Frumário. Odoacro põe-se de pé apoiando-se na lança para evitar dormir.

[1] Mondonedo, norte da Galiza.

[2] Geira, estrada romana que atravessava o geres

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