Capt. 3

Rodeado de húmido matagal, encontro um caminho de folhas secas dos teixos, freixos, carvalhos e aveleiras que ladeiam o mesmo. Percorro-o durante meia hora olhando para todos os lados e vendo os fumos saídos da fortaleza que coroa o monte Gerião[1], baptizei-o assim em nome do monte do norte onde a minha grei assentou. Uma elevação granítica estava à minha frente, salpicada de declinados carvalhos e oliveiras, dois corvos desciam e subiam uma dessas árvores e eu achei aquilo um bom presságio. Começo a subir o penedio monte, calcando as caganitas das cabras, encontro as fendas xistosas e embrenho-me nelas a medo entoando cânticos contra os duendes do ferro, um anão estava à minha frente de gorro vermelho e varapau.

- O teu mestre está? – pergunto-lhe dando-lhe uma moeda com a esfinge do Imperador Teodósio. O anãozinho, de cara enrugada, toma o peso do metal e trinca-o avaliando o seu valor, depois dá-me passagem pela fenda, eu passo por ele e quando lhe ia agradecer o mesmo já lá não estava. Lembro-me que a ilusão é provocada em nós mesmos logo é uma coisa que não acontece na realidade, o anão não me desapareceu da vista, eu é que penso que sim e não o vejo, o segredo está aí.  

Atrace era velho e deu o lugar aos mais jovens e robustos feiticeiros que acompanham o rei Hermerico como Abracax e Arioax, seu tempo acabou quando deixamos a velha Suábia no sul da Germânia, entre o Danúbio e o Main, seu tempo ficou ai: na arcaica floresta negra dos cavalos brancos e nichos das deusas que se encontram ocultas nos lagos. Devia ser diferente do que é aqui; viver rodeados de inimigos por todos os lados e sobreviver no lodaçal que era a velha Germânia. Quando acossados pelos Hunos saímos todos, Atrace passou o poder rúnico e apanhou boleia num dos carros de bois que atravessaram a Europa. É cego de um olho, o olho esquerdo, o olho da clarividência, o olho que o velho pai sacrificou amarrado ao freixo sagrado nos inícios do mundo. Baixo a cabeça e desvio um pesado pano de fazenda para entrar para uma baixa alcova, vergo-me respeitosamente perante Atrax o mago, o magno pressagiador. Ele estranha a minha reverência como algo que estivesse enterrado na mítica floresta negra, muito longe dali. De joelhos e iluminados por duas lucernas, retiro do alforge o pão e o queijo embrulhado, com uma faca parto meio-queijo e entrego-lhe, corto-lhe também uma fatia de pão, ele põe-se a mastigar com os seus únicos dois dentes da frente perguntando-me:

- Sois Boríngio, o chefe de Saturnring[2]?

- Sim, sou mestre! preciso que me decifreis um sonho que me apoquenta.

- Todos temos sonhos que nos apoquentam, e não é por isso que corremos a consultar runamais. Os reis, esses sim têm que analisar todos os sonhos, dado que conduzem muita gente, mas o comum dos guerreiros ou do camponês não precisa. – diz-me encolhendo os ombros e continuando a comer, mira-me de alto abaixo com seu único olho azulão, que mais sobressaía com seu cabelo ralo branco e suas barbas também ralas e também brancas, era moreno  e seu rosto ossudo estava com sulcos que indicavam os caminhos que percorrera.

- Esse anel que envergais no dedo dá-me dores de cabeça.

Eu olho o anel de couro preto que trago no dedo, nele estão inscritas runas protectoras contra feitiços e feiticeiros.

- Raios, Boringio, não te chega o martelo de Donnar[3] que tendes ao peito, para que raios quereis mais protecção? – pergunta meio enervado.

- Eu vejo coisas e sou hábil nos artefactos de magia. – o velho franze-me o sobrolho.

- Fizeste alguma coisa ontem? – eu penso no pano linho das runas.

- Sim fiz um feitiço para um doente.

- E fizeste-o bem? – pus-me a pensar que eu, como tantos outros na minha idade, receberam a chamada iniciação nos mistérios odinistas, mas somente isso, lembrei-me do perigo de fazer um mau encantamento.

- Acho que sim, mestre. - coço nervosamente a minha barba. Atrace mexia calmamente com uma vareta os pedaços de freixos sagrados alumiados pelas lucerna, sorriu mostrando seus dois dentes da frente. Coça o nariz, tornando-me a observar com seu olho azulão.

- Que escreveste no pano de linho? – relembro as runas e a medo digo-lhe:

- Que a vida regresse ao corpo da avó de Hermelinda. – Atrace arregila-me mais o olho. Raios, será que fiz bosta?

- Mum, não deverias antes escrever “longa vida para o corpo da avó de Hermelinda?

- Mas qual é a diferença?

- Qual é a diferença? – pergunta-me exaltado, atirando-me a vara à cara. Eu, respeitosamente apanho-a e com a cabeça baixa torno-a a oferecer-lha.

- Demora toda uma vida a fazer um bom runamal. – declara, olhando novamente os pedaços de seixo. Eu pensei que ele me explicaria o que é que eu tinha feito mal, mas creio que foi algo de tão irreversível que já não vale a pena anular nada.

- Bem, vamos lá a isso.

Ymir, gigante  gelado

Ouve minha súplica dos tempos futuros

Conduz minha mão nos seixos do destino

Do teu braço nasceram os dois

Os que agora entram em sonhos

Dum servo teu, mui devotado

Ilumina pois, segredos desvelados

É sempre bom ouvir as palavras mágicas. A súplica partiu da terra média, foi ouvida no palácio dos deuses e ecoou nos labirintos das raízes de Yrdrasil e nos calabouços de Hel. O gelado Ymir nem sequer acordou, apenas pestanejou, esse pestanejar foi suficiente para aclarar o lançar dos freixos que Atrace acabara de consumar. O mago ordena-me rispidamente que aproxime a lucerna do campo do sol onde caíram os freixos, eu reparo em runas de união tais como Beoc e engulo em seco.

 - Mum…Nascimento, fertilidade ou casamento, duas runas de casamento, e uma de viagem e boas notícias vindas de longe. Parabéns Boríngio, vais casar. – casar?! Eu! O casamento para mim era uma daquelas coisas distantes que só aconteciam aos outros e que nós aparecíamos para beber, comer e dançar ao som dos adaúfes e das cornetas. Tusso de nervosismo.

- Então é esse o significado do sonho? E é preciso um gigante para me dizer isso? – pergunto exaltado.

- Vais ter que te baptizar.

- O quê? não quero! não me baptizo, meu pai dava voltas na tumba. – comecei a ficar nervoso, um nervoso miudinho a subir pelas  pernas.

[1] Geres

[2] sortelha

[3] designação arcaica de Thor, deus indo-europeu do trovão.

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