CAPITULO II

                                    CAPITULO II

A

 visão dos combalidos bandeirantes chegando a Villa de Piratininga remeteu a população a se lembrar da chegada de Dom Gabriel meses antes. Eram os mesmos rostos cansados e desiludidos, os mesmos feridos, a mesma baixa estima. Mal chegaram e o povo veio lhes acudir. Padre Nicolau os recebeu fraternalmente e pediu que os feridos e doentes fossem levados à enfermaria do colégio.

 João Dias se reuniu com as autoridades da Villa e lhes relatou o ocorrido. Fora surpreendido pelos Guaicurus e não houve como enfrentá-los, tamanha era a ferocidade e força com que os atacaram. Não soube dizer a quantidade de guerreiros de Kaluanã, mas apenas relatou que estavam em toda parte da floresta. Foram perseguidos e caçados por vários dias, até que finalmente foram deixados em paz. E assim, conseguiram pegar as trilhas e voltar a Villa. Todos os prisioneiros haviam sido abandonados na floresta.

— Mas o que é isso que vos mercê nos diz s.r. João Dias? Nossos homens estão sendo dizimados por esta gente e nem sabemos como enfrentá-los nestes sertões! — Disse um dos vereadores da Villa.

— Sim senhor... E a cada dia parece que se fortalecem mais...

— Kaluanã é um demônio que surge nas sombras e desaparece em seguida. Nunca vi criatura tão forte e terrível... Até aos mestiços faz tremer! O mosquete não o amedronta e as espadas são inúteis! Suas setas são certeiras...  E a morte está estampada em seus olhos negros!

— Sabemos quão grave é a situação s.r. João, e faremos relatos a São Vicente. Alguém terá de tomar providências.

— Agradeço vossa atenção conselheiro, e espero sinceramente que vos mercê consiga algo da Capitania!

 João Dias parecia estar suplicando ao conselheiro.

— Vá para casa, sua missão acabou...!

— Obrigado padre Nicolau, e também pela ajuda com os feridos!

— Não se preocupe, estão em boas mãos agora.

Assim que saiu, padre Nicolau e as autoridades se reuniram.

— Foram muitas baixas... Certamente nos fará muita falta! — Disse um deles, abanando a cabeça como a discordar da situação.

— Precisamos informar a São Vicente. O capitão Mor precisa saber o que está acontecendo... — Disse outro.

— Padre Botelho, o senhor tem mais intimidade com as autoridades da capitania, pode falar com eles?

— Até poderia... Mas o que lhes direi? Estamos numa situação um tanto delicada senhores, é do conhecimento de todos na Villa a nossa posição em relação aos apresamentos. E há muito tempo estamos tentando uma solução humana e pacífica sobre o tema. Há certa indisposição quanto as nossas demandas e mais ainda depois das últimas noticias que tivemos das missões que se rebelaram no sul. Deste modo, acho um tanto difícil alguém atender a um pedido deste simples padre.

— Diga que a Villa corre perigo... E que precisamos de ajuda!

— Que mandem homens e se possível até canhões...

— Canhões meu caro... Acho um tanto difícil transportá-los muralha acima... — Disse outro dos conselheiros.

— Que seja, mas que mandem reforços!  Onde está Raposo?

— Está a serviço da Coroa, a caminho de combater os Holandeses no nordeste... Partiu algumas semanas atrás. Foram às últimas noticias que tivemos dele.

Padre Nicolau então continuou:

 – Enviem vossas mercês as mensagens a capitania... Sabem fazer isso... Não vou me intrometer num assunto que sabem, eu mesmo não apreciar.

— Entendemos vossa posição Padre, e a de todos aqui deste colégio... Sabemos também que tanto São Vicente, quanto o Rio de Janeiro, está se mobilizando contra os inacianos...

—Sabemos disso Sr. Matias, o povo da Villa de São Paulo está no mesmo caminho... Estamos sofrendo muita pressão dos colonos e da Capitania. Não nos resta senão pedir a Deus que faça com que esta gente mude de ideia.

— Será preciso mais do que simples orações padre Botelho... Os colonos parecem irredutíveis em buscar mais escravos. Mesmo a revelia da Coroa e da Igreja!

— Sabemos que esta gente de Piratininga não respeita autoridade alguma, mesmo vinda da Coroa, o que dizer da igreja... Assassinam missionários como abatem animais... O homem foi criado por Deus para ser livre senhores... Viemos a esta terra para catequizar esta gente e não pra subjugá-los e dizimá-los como bichos! É isso que defendemos!

 O momento de desabafo do padre surpreendeu aos que estavam ali.

— Espero que o senhor esteja certo caro padre Nicolau... Faremos o que nos orientou e mandaremos nós mesmos as noticias a capitania para que chegue até o Sr. Ouvidor.

— Que assim seja senhores, e tenham um ótimo dia! Preciso agora ajudar com os feridos!

E padre Nicolau saindo da presença dos conselheiros, foi caminhando entre os corredores até onde estavam os enfermos. Pelo caminho pensava em Kaluanã. Quem era realmente este homem? Seria ele um contraponto colocado pelo diabo para assolar a alma dos Paulistas? Ou era ele um mensageiro divino, enviado e capacitado pelo próprio Deus para defender sua gente? Estas perguntas ficaram as voltas da mente do padre por muitos dias. De qualquer forma, estavam do mesmo lado.

As noticias enfim acabaram se espalhando entre a Villa, e os colonos, enraivecidos, queriam a todo custo montar e equipar uma nova bandeira, mais efetiva. Desta vez, porém, para ir à captura de Kaluanã. Não aceitavam mais uma derrota imposta pelos Guaicurus e assim, sob consenso da maioria, resolveram que partiriam novamente para os confins do sertão. Os ricos fazendeiros seriam, como sempre, os financiadores desta nova empreitada. Armas e equipamentos seriam trazidos de São Vicente.

Durante mais de três meses, recrutaram cerca de mil e trezentos índios domesticados, oitenta e cinco homens brancos e trezentos mestiços. Era realmente uma grande companhia. A revelia da capitania, mas com as salvas de toda Villa de São Paulo, sairiam em busca de Kaluanã. Já era hora de acabar com os ataques dos Guaicurus.  Muitos fazendeiros e moradores da Villa se alistaram para a tal bandeira.

 Entre eles havia um mestiço de nome Acauã, um jovem de uns vinte e três anos, vindo de uma das fazendas Paulistas de trigo. Era um típico negro da terra, mas de olhos castanhos claros. Destacava-se entre todos devido ao seu porte físico. Com mais de um metro e noventa, cabelos longos aos ombros e olhar ameaçador, parecia sempre estar pronto ao confronto. Possuidor de extrema força, acabou sendo requisitado pelo próprio Capitão da bandeira, o Sr. Felipe Santa Cruz. Santa Cruz era um homem experiente e anos atrás, participara das bandeiras gloriosas de Raposo as terras dos Goyá e no desmonte das missões do Paraná.

Acauã, já era conhecido do Capitão de tropa Felipe Santa Cruz há alguns anos, quando este se casou com a filha de um grande fazendeiro e também ex-bandeirante, o Sr. Quintilho Bueno, homem de muitos escravos. Comprara do próprio Raposo a mãe de Acauã e a levou para suas terras. Esta, ainda jovem e formosa, acabou sendo desposada por um dos portugueses que o servia na fazenda. E assim Acauã foi criado entre os brancos e os vários mestiços que havia naquelas terras. Crescera aprendendo a lutar como seu pai e viver nas matas com as tradições nativas de sua mãe. Tinha na verdade sangue da terra. Da gente do mato. Sabia andar pela floresta e se embrenhar pelos rios.

 Conhecia bem as trilhas antigas e suas peculiaridades, mais do que qualquer branco. Andava descalço, e portava sempre um punhal na cintura. Além de ser mestre no arco e no machado, sabia manejar a pistola e o mosquete.

Conhecia os segredos das plantas e ervas, e se sentia mais nativo do que branco. Evitava falar o português, apesar de sabê-lo muito bem. Gostava do guarani, o que a maioria ali praticava e da língua materna, que poucos, aliás, conheciam. Havia em seu íntimo, um desejo adolescente de participar de uma grande bandeira.

Ele, como tantos outros jovens mestiços, sentiam-se orgulhosos em fazer parte delas. Foram doutrinados, desde pequenos, a enxergar as bandeiras como uma missão de coragem e honra. E assim, também aprenderam a odiar as tribos inimigas dos brancos e da Villa, apesar de ser “gente” de sua própria raça. Para aqueles meninos, as bandeiras eram como o rito de passar da adolescência para a maioridade. Sentiam-se homens ao entrarem nas fileiras Paulistas rumo ao sertão. Conhecedores do mato como os próprios indígenas que os acompanhavam, tinham, porém, a vantagem de possuir maior resistência às caminhadas intermináveis.

 Os mestiços eram fisicamente mais fortes, além de ordeiros e obedientes, coisa que muitas vezes os nativos não o eram. Acauã, com os anos, passou a ser um tipo de capataz do Sr Quintilho Bueno. Devido à fidelidade e coragem que forjou seu caráter até então, galgou este cargo sob o olhar rígido do patrão, que deixara praticamente a fazenda sob seus cuidados. Acauã passou a ser respeitado por todos na Villa, além de temido devido ao seu porte físico avantajado e sua intrepidez.

Agora era sua chance de estar numa tropa. Estava orgulhoso em rumar para os sertões em busca de Kaluanã. Cerca de quatro meses se passou até que partiram, saindo do pátio do colégio ao som dos sinos e aclamados pelo povo.

Padre Bento, um dos Inacianos do colégio, foi quem rezou uma pequena missa, pedindo proteção aos céus pela vida de todos, e o povo então se despediu de seus habitantes.  Felipe Santa Cruz ia à frente com sua bandeira e ao seu lado e atrás de si, fortemente armados, os brancos, montados em seus respectivos animais. Vestiam seus trajes com chapéus de abas largas, coletes de pele, couro e algodão, cintas de couro e botas de cano longo. Logo atrás, Acauã, com ar sério e orgulhoso, trajava seu chapéu largo, calças e coletes de couro e algodão.

 Descalço, encabeçava os mestiços igualmente vestidos e armados com seus mosquetes, pistolas e adagas. E no final, os nativos em fila, portando seus arcos, seus tacapes e aljavas. Saíram em marcha rumo ao norte, levando suas mulas e seus mantimentos ao encontro do grande rio. Sabiam que naquelas terras estariam à mercê de muitos perigos, entre eles o mais temível, que era encontrar-se com Kaluanã e os Guaicurus.

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