Capítulo 4

Uma semana... Uma merda de semana... Uma semana de merda... Nessa brincadeira ela ficou quase um mês mais longe da aguardada vingança. Ela sentia seu corpo todo pedindo socorro enquanto olhava pela janela e sentia os músculos latejando sem muita vontade de continuar vivendo. É, ela estava na merda. Seus sentidos registraram a movimentação dos lupinos entrando no galpão com Raoul em seu encalço, ela estava frustrada de não poder sair para caçar e conversar com os gentis amigos não-mortos, mas, seu propósito era maior do que simplesmente torturar vampiros. 

Precisava continuar no foco e trabalhar firmemente. Nesse meio tempo, ela não fui capaz de iniciar a transformação por conta própria. Frustração não chegava perto do que sentia naqueles momentos em que eles a encaravam com desaprovação. Eles que se fodessem, ela poderia continuar sozinha, certo?

– Ranielle! – Raoul entrou sorridente e cortês, a saudando como sempre. Ela estava se acostumando com as chegadas dele. 

Seu treinamento consistia em lutas sem armas, para subir a adrenalina ao nível de transformação. Até o momento não tinha funcionado.

– Hoje vamos tentar uma tática diferente. – Louis disse caminhando para o sofá onde ela estava sentada passivamente encarando aqueles que naquele momento via como seus carrascos. Sem mais palavras, ele chegou diante dela e lhe deu um tapa na cara. Isso estava ficando fora de controle.

– Melhor ter um bom motivo para ter feito isso. – Ainda que sem suas armas, eles descobriram durante essa semana que a incitar à violência é pedir para ter os traseiros chutados e ela era fantástica nisso.

– Princesa, vamos tratá-la como uma lupina comum, já que é o que você nos pede desde o início. - Raoul olhou diretamente em seus olhos enquanto levantava uma lâmina de seu casaco e o tirava para se sentir mais à vontade. Eles queriam brigar, então vamos lá.

Antes de ela conseguir se mover, Matteo a segurou ao sofá, puxando seus braços e a forçando à imobilidade e impotência aparente, enquanto Louis o auxiliava a amarrar seus braços e pernas..

– Olha, eu nunca fui muito fã de BDSM, então melhor me soltarem.

Em silêncio eles continuaram o que estavam fazendo. Impotência é uma vadia que morde a gente nos calcanhares enquanto achamos que estamos com os pés fincados no chão, ela se sentia extremamente impotente enquanto observava esses putos amarrando apertado demais. Será que o intuito todo foi esse? Conseguir eliminar a resistência dela e poder alegar posteriormente que fizeram o que podiam para lhe proteger?

– Eu vou dar um minuto para alguém me explicar o que diabos está acontecendo antes de fatiar vocês começando pelo pedaço de carne podre.

Ódio brilhava em seus olhos que começaram a ficar vermelhos, a cor natural do seu nascimento. Sem mais palavras, os três a cercaram enquanto ela estava naquela posição inferior. Louis a estapeou novamente, fazendo encará-lo com desdém… Se era o melhor que podiam fazer, estávamos fodidos. Matteo foi menos gentil e lhe deu um soco no estômago enquanto Raoul parecia distraído avaliando o fio de corte da sua faca.

– Sabe o quanto a Encantadora está pagando pela sua cabeça neste exato momento? E nem precisamos levá-la viva.

Seus olhos arregalaram ao perceber que eles vão eliminá-la para receber uma recompensa. Pensem numa pessoa possessa e multipliquem pela intensidade lupina da coisa? Ela estava encarnando o próprio diabo por causa dessa traição. Os faria pagar com sangue.

Raoul posicionou a faca sobre o seu joelho e foi a afundando com pouca vontade, ele queria lhe torturar. Suando frio a mulher cerrou os dentes e respirou para acalmar seu coração, mas quando ele girou a faca e o sangue começou a escorrer ela resmungou em protesto. Enquanto sua carne era dilacerada, levou mais alguns socos e teve a cabeça puxada com força para trás.

– Vocês vão manchar a porra do sofá com o meu sangue e eu vou obrigá-los a lamber!

– Belas palavras pra quem está amarrada e impotente nesse momento, princesa.

Nunca havia visto Matteo tão cruel, seus olhos estavam sem emoção alguma enquanto falava com ela.

– Eu já te perdoei uma traição e não vai acontecer novamente, Matteo.

Sem alterar sua expressão, ele começou a despejar água em seu rosto. Seus olhos lacrimejaram enquanto ela se sentia afogar e sofria agressões que lhe tiravam o ar dos pulmões. Esses putos estão mortos!

Seus instintos de sobrevivência falaram alto enquanto suas unhas cresciam ela cortei a corda que prendia seus braços e rapidamente arrancou dois dos dedos de Matteo que seguravam a mangueira com a qual ele tentava afogá-la, no susto ele largou sua cabeça e ela segurou Raoul pelo pescoço, fazendo a faca que a perfurava ser arrancada de sua pele, Louis teve o peito rasgado pelo seu outro braço, enquanto ela se levantava como uma rainha do sofá modesto.

– Vamos começar essa palhaçada de novo… Quem quer morrer primeiro? – Disse apertando o pescoço de Raoul que começou a se debater e tentar chutá-la para soltar seu corpo no chão. Seus olhos enxergavam tudo em vermelho e ela estava começando a apertar com mais força quando levantou o não-morto do chão. E, num clique, uma risada forte e profunda toma conta do galpão. Louis estava quase gargalhando e começou a bater palmas. Quando ela o fitou, pode ver seu corpo sangrando levemente.

– Qual a graça?

– Você, sua idiota!

– Repita isso e eu termino com ele rápido o suficiente para te pegar antes do corpo cair no chão.

– Me ouviu? Eu não vou repetir. Que tipo de lupino você é? Deveria se envergonhar, vamos acabar com você!

Jogou o corpo quase sem vida de Raoul no chão, se virando encarou Matteo olhando seus dedos decepados no chão enquanto a encarava com um olhar admirado e furioso. Ela ia matar esses malditos filhos da puta! Seus pés ainda estavam presos pela corda e ela se abaixou para cortá-la com as suas garras, quando percebeu que estava conseguindo ver através da névoa vermelha da transformação. Seus instintos, força e tudo nela estava amplificado, é como se ela tivesse… como se ela fosse uma versão melhor de si.

Observou os três agora de pé, a encarando, e no latão do armazém pode finalmente encarar a sua imagem refletida. Ainda não tinha todos os aspectos de garou, não se transformou completamente, mas, ao contrário das outras vezes, ela conseguia pensar e usar a sua força de maneira racional. Encarando novamente o trio, estavam ajoelhados numa reverência e com as cabeças baixas. A mudança de tática a beneficiou de uma maneira como ainda não havia acontecido e ela finalmente conseguiu compreender a importância de dominar a arte da transformação. Louis se levantou sendo seguido pelos demais. A vontade de matá-los ainda pulsava forte dentro dela, mas, o reconhecimento pelos seus sacrifícios pela sua evolução disseram muito mais que essa vontade.

– Imaginamos que como você não aceita flores, a abordagem ideal para te fazer transformar sem matar ninguém propositalmente fosse te forçar a sobreviver. Precisávamos que acreditasse que estava realmente em risco, caso contrário poderia não funcionar.

– Entendi o conceito… Mas eu me sentiria melhor se não tentassem me matar a sério. Eu poderia ter matado um de vocês.

– Morreríamos por uma causa maior que nós, alteza. – Raoul diz depois de algumas golfadas profundas de ar. Ele ainda tem uma coloração mais pálida que o seu normal. – Seria uma honra.

– Digam isso ao pobre Matteo que teve os dedos arrancados.

– Ran… Eu te devo minha vida, o que são dois dedos comparados a isso, bambina?

Ela nunca teve amigos, não raro entre os lupinos amizade não existe. Porém descobriu nesses aliados, que não estava sozinha na causa e podia usar disso para evoluir bastante.

– Agradeço bastante, vocês são os verdadeiros heróis! - Com um aceno de cabeça ela os reverenciou pelo apoio. Não é algo comum de se ver na morena, então era melhor eles entenderem que são realmente importantes para ela.

– Agora, vamos voltar ao seu treinamento, princesa. Encantadora acha que vai lidar com uma criança e vamos esfregar uma garou de primeira grandeza na cara dela. –  Raoul começou a respirar mais aliviado quando viu que os sinais da transformação tinham se ido embora assim que ela entendeu a situação, seria um banho de sangue se a tivessem incitado a continuar ou se ela se descontrolasse completamente.

– Ran, vou tentar remendar isso aqui e volto em breve para ver como está o treinamento. –  Matteo se retirou estrategicamente, provavelmente vai tentar colar com a saliva e quilos de fé, os dedos cortados. Com o canto do olho viu Louis se direcionando para o pequeno quarto improvisado, arrastando os pés como se tivesse mais do que a perda de sangue drenando sua energia. Ele tinha aquele ar sério, mas, ela podia ver que estava tão quebrado e preocupado quanto ela mesma. Não tínham evoluído muito desde o rompante na boate e ela estava se pondo nervosa sem razão ou teriam problemas em breve.

– Vamos nos sentar, princesa. – Ela odiava que ele a chamasse assim, mas hoje não ia questionar nada. – Você tem um dom, uma capacidade mas sem treino é como uma flecha sem o arco. É necessário que consigamos impulsionar a sua fúria do jeito certo, antes de fazer com que tu encare os desafios que serão impostos. A sensação de urgência e a iminência da morte são ferramentas poderosas para vocês, agora imagine conseguir dominar esse sentimento, controlá-lo com a sua mente e fazer com que esteja sempre à mão como uma de suas lâminas ou armas?

– Eu entendi isso nas primeiras duzentas e cinquenta vezes que explicou Raoul, só não consigo entender como funciona na prática. O exemplo que me deram foi ótimo apesar de poder ter custado a vida de um de vocês.

– A sua força, pela sua linhagem, não raro te coloca num nível acima do nosso. É como se em um nível comparado de força bruta, você fosse um elefante e nós fôssemos leões. – A testa dela franziu pela declaração e lógica que ele utilizou para explicar, conseguiu compreender com sucesso que três leões por mais fortes que sejam, jamais derrubariam um elefante sozinhos. – Compreende que o problema contigo na verdade, é não conseguir atingir toda a tua força por limitações criadas pela sua mente?

– Raoul…

– Nada de Raoul, vamos começar com o jogo de estratégia mais importante do mundo.

– Eu não quero jogar war... – observando no entanto um tabuleiro quadrado com casas brancas e negras, ela teve o vislumbre de algumas das várias vezes em que entrou com o joelho ralado e pediu colo ao vovô. Com os olhos marejados por lágrimas que ela não derramaria nem sob tortura, observou Raoul posicionar as peças de maneira a iniciarem o jogo. - Xadrez…

– Sim, princesa. Vamos aprender onde bater para causar mais dor, dominar a sua mente e compreender como derrubar a defesa dos inimigos antes mesmo de o jogo estar finalizado. Visualize que o xadrez é um jogo de estratégia onde o propósito não é acabar com as peças do inimigo, mas, dominar e encurralar o rei. Agora, qual é a peça mais poderosa do tabuleiro?

– A Rainha.

– Exato, e, quem melhor que você para nos lembrar disso. - Uma curta reverência e ele estava olhando novamente nos olhos castanhos dela. Era uma verdade universal que as mulheres eram uma potência subestimada pelo mundo, no entanto, Ran via melhor que ninguém essa força, principalmente em sua avó. – A verdade, princesa, é que a Rainha é a peça mais poderosa, mas sem o apoio das demais peças, ela não consegue proteger o rei e se digladiar com todo o tabuleiro. Para uma vitória completa, é necessário que todas as peças saibam suas posições e você consiga gerí-las de maneira a lhe beneficiar.

– Correto… Vamos começar? –  Tédio estava se tornando um companheiro constante dos seus dias. Ela entendia que precisava desses treinamentos, o problema real era que não tinha a paciência necessária para reconhecer isso.

– Ainda não. Medite sobre as peças, vou ver como estão Matteo e Louis e depois iniciaremos.

Sem reverências desta vez, ele se levantou e foi procurar por seus companheiros. Não se sentia culpada pelo que aconteceu, só preferia que não tivesse acontecido. Seria mais fácil encará-los sem saber o monstro que pode se voltar contra seus próprios aliados. Alguns minutos depois, Raoul retornou um pouco mais corado e iniciaram o que seria o maior massacre da história de sua vida. Oito vitórias para ele e alguns sermões sobre concentração depois, ela não conseguia nem mesmo encarar o tabuleiro. Derrotas em doze, quinze e até oito movimentos e ela me sentia um lixo completo no quesito estratégia, pelo que parecia ela precisaria praticar muito mais se quisesse vencer um vampiro no jogo.

Passava das nove quando Raoul teve que ir gerir seu negócio e a morena ficou para trás encarando um tabuleiro que agora era um novo tipo de pesadelo, ela seriamente não queria ficar por ali mais tempo, gastando dias preciosos ao invés de encarar a não-morta maldita. Mas, suas opções estavam escassas desde seu descontrole, ela já não podia ver o brilho do sol a uma semana e isso a colocava doente.

Ao levantar os olhos fitou Matteo se retirando para seu quarto, ainda segurando os dedos que haviam sido arrancados, junto aos cotocos em sua mão. Ela sabia que deveria se desculpar, mas não era a prioridade no momento.

No outro quarto de portas fechadas estava Louis. Não seria de todo mal ver como ele estava. Caminhando a passos decididos, deu um toque na porta antes de abrí-la e se deparar com o companheiro sem camisa sentado na cama, com a cabeça baixa. Seu peito tinha a marca das quatro garras dela e apesar dos cortes já estarem num tom rosa escuro ainda não haviam se fechado por completo. Seu dorso forte a lembrou o quanto sentia falta de casa e dos seus irmãos, ela tinha que acabar logo essa cruzada para voltar para os seus.

– Louis? – Ele levantou a cabeça e ela pode ver confusão em seu olhar enquanto entrava no quarto, sua roupa negra destoava bastante do quarto em cores claras e praticamente vazio, ela era uma sombra no meio do aposento. – Vim ver como estava.

– Estou bem, Ran… Muito bem.

Sua voz soava tranquila, mas ela podia sentir a tensão que a dor estava causando. Em dois passos estava diante dele na cama, seus olhos na altura do estômago dela enquanto sua cabeça foi se levantando para a encarar, calafrios percorreram a espinha da mulher quando sentiu seu olhar queimando seu corpo sob a roupa, a indagação implícita em seu olhar a estremeceu por dentro, enquanto calmamente ela se abaixou ajoelhada à sua frente.

– Vocês poderiam estar todos mortos agora, imbecís. Eu acredito que talvez seja melhor para todos que eu continue essa caminhada sozinha como decidi à princípio.

– Seria suicídio e você sabe, criança… – Com os dedos trêmulos ele tocou aquela face de anjo, a pele macia e acetinada dela tocando seus dedos, causou um choque inesperado mas ele não os tirou e nem forçou mais o contato.

– Mas, pelo menos eu teria a certeza de morrer só.

Olhando para baixo, para as linhas causadas por suas garras ela se permitiu pensar que deveria tomar muito mais cuidado do que havia tomado até o momento. Sem mais palavras aproximou o rosto do corpo dele, tocando com a língua diretamente sobre os rasgos, selando as feridas causadas pelo rompante de fúria. Um rosnado baixo retumbou entre eles, vindo diretamente da garganta de Louis, seu olhar demonstrava fome e necessidade. Com destreza, Ran lambeu cada um dos riscos e se postou de pé. O que havia mesmo em sua mente que derreteu com pena daquele aliado?

– Espero que fique bem.

– Ran…

– Vou me deitar e amanhã pela manhã falamos.

Sem sono algum em seu corpo sua mente agora se ocupava de dois enigmas: O que havia escondido naquele olhar desejoso de Louis e como faria para chutar a bunda de Raoul no próximo jogo?

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