Sr. Fonseca
Sr. Fonseca
Por: Vania Grah
Capítulo 01

Marcela Andrade

Todas as manhãs queria passar longe dos espelhos, entretanto, era irremediável. Depois de escovar os dentes, fiquei amassando meu rosto na frente do espelho. Eu era uma mulher acima do peso, não preciso nem mencionar o quanto foi difícil e ainda era, ouvir tudo que ouvia e fingir que era normal, mas não era, nenhum ser humano deveria ser tratado como se fosse uma atração de circo, apenas por ser diferente do padrão de beleza determinado pela sociedade.

— Com óculos? Ou sem? — murmurei, tocando no meu óculos de grau. Minha miopia foi mais uma razão pra ser insultada, tudo era motivo para zombarem de mim, isso foi piorando com o passar dos anos. Passei a sofrer desde cedo, nunca pouparam a língua afiada na época que eu era somente uma criança, mesmo sem entender direito me machucava muito, tantas vezes saí correndo para chorar escondido em algum lugar.

Tornei-me uma adulta insegura e envergonhada do próprio corpo. Ninguém nunca levou a sério, meus sentimentos, uma vez acreditei que tinha encontrado um homem de caráter para construir uma família em um futuro próximo, no entanto, ele me usou e abusou de mim. Suas palavras ficaram marcadas na minha memória, não foi nada fácil ouvir tantas vezes que era uma porca gorda. Doeu muito gostar de alguém que não tinha nenhuma consideração por mim. Durante seis meses vivi encurralada em um relacionamento de merda, não conseguia sair daquela relação tóxica. Eu era ameaçada toda vez que tocava no assunto término. Lembro muito bem do dia em que ele colocou a faca no meu pescoço, pela primeira vez, a partir daquele momento decidi nunca mais abri a boca para dizer qualquer coisa que fosse contra o que ele queria. Um dia ele simplesmente cansou e me deixou, mas isso não apagaria tudo que havia vivenciado de ruim do seu lado. Às vezes pensava em procurar ajuda psicológica, porém, não tinha coragem, sentia medo de abrir meu coração para uma pessoa estranha.

A decisão de morar em outro estado teve um impacto na minha vida e não foi exatamente como imaginei que seria. Fui ingênua em ter pensado que morando em São Paulo as coisas mudassem, todavia isso não aconteceu. Longe de casa meu emocional oscilava, entre a tristeza e uma falsa alegria, porque não sabia o que era felicidade há bastante tempo. Não queria demonstrar fraqueza, muito menos desistir de conquistar meus objetivos. Ter um diploma não significava nada, a realidade estava distante do que sonhei. O destino tinha outros planos para mim, dificultando minhas esperanças de trabalhar no que mais amava fazer, sem opções, acabei aceitando um trabalho que nada tinha a ver com minha formação.

Trabalhava na copa de uma das maiores empresas do Brasil de cosméticos. Todos os dias sentia saudades de quase todos da minha família, quase, porque não existe uma família perfeita. Meus amados pais moravam no Nordeste, em uma pequena cidade do interior do Ceará. Eles acreditavam nas mentiras que contava nas nossas ligações, para eles a filha trabalhava em um bom escritório de advocacia. Meu emprego era pra ser provisório, algo para manter minhas contas em dia, contudo, tinha quase três anos trabalhando duro e sendo vítima de piadinhas por causa do meu peso. Houve uma época que consegui emagrecer alguns quilos, mas foi porque passei dias internada em um hospital por quase morrer ao ter ingerido uma droga na minha bebida. Alguém tinha batizado meu suco de abacaxi em uma festa da faculdade e isso quase me matou.

Suspirei encarando o espelho uma última vez, infelizmente precisava daquele emprego, não tinha como eu jogar tudo para o alto. Vontade nunca me faltou de largar tudo, e falar umas verdades na cara de todos que gostavam de zombar de mim naquela empresa, mas precisava aguentar firme, porque eu não era ninguém, também não queria ser desempregada.

Saí do banheiro do corredor, caminhando até à sala de estar. Após pegar minha bolsa dá vinte cinco de março, que estava em cima do sofá de dois lugares, passou novamente pela minha cabeça desistir de ir, entretanto, criei coragem saindo pela porta logo em seguida. Tranquei a porta e enfiei as chaves na minha bolsa falsificada da Louis Vuitton. Caminhei em direção ao elevador, pisando duro, qualquer um que visse a cena constataria meu mau-humor.

O condomínio era de certa forma, o que poderia ter de melhor por um preço acessível, contudo, quem bancava meus gastos naquele lugar eram meus pais. Quase vinte oito anos, e dependente dos pais para não dormir debaixo da ponte. Essa era eu, uma decadência, eu sei! O aluguel foi o jeito que eles encontraram de ajudar a filha advogada. Mal sabia eles que se não pagassem, eu estaria nas ruas da cidade porque meu salário não era grande coisa, apenas conseguia manter o básico do básico para sobreviver.

Próxima ao elevador olhei em volta para ter certeza que não encontraria ninguém pelo caminho. Por acaso eu tinha medo das pessoas? Com certeza! Adentrei o elevador e sem perder muito tempo, apertei o botão para térreo. Não gostava dos olhares de reprovação, uma vez uma das moradoras do condomínio me viu e saiu arrastando o filho pelo braço para fora do elevador. Paralisei observando tudo e ouvi muito bem quando ela disse que estar comigo no elevador era suicídio. Gravei aquelas palavras no meu coração, sempre que recordava ficava triste.

— Finalmente. — sussurrei, respirando aliviada quando as portas abriram-se e vi de longe Rafael, ele e eu meio que tínhamos um lance, mas ele não sabia ainda.

Caminhei em direção a saída e coloquei meu melhor sorriso no rosto. Éramos amigos e essa amizade nasceu de tanto precisar dos seus serviços de Uber. Minhas mãos suavam só de estar perto dele e algumas vezes pensei em atacá-lo, talvez ele correspondesse, no entanto, guardava minhas loucuras somente na minha cabeça.

— Mah. — ele disse, abrindo a porta do carro pra mim e continuou. — Bom dia, minha melhor cliente!

Ele era aquele tipo de pessoa que tentava ganhar pontos com elogios.

— Você diz isso para todas. — brinquei, olhando em seus olhos cor de mel. — Que hoje seja um dia melhor que ontem. — resmunguei, recordando do dia anterior, precisei limpar quatro vezes a sala de uma fresca que fez propositalmente a sujeira, enquanto eu me matava para limpar, ela ficava de cochichos com suas colegas de trabalho e riam juntas de mim.

— Já te disse para conseguir outro emprego. — sim, ele disse e não foram poucas vezes, quase todos os dias falava sobre eu merecer algo melhor. Eu era uma faz tudo e nunca tinha um dinheiro extra.

Entrei no carro e ele fechou a porta do passageiro e foi para o lado do motorista. Gostava de estar ao seu lado todas as vezes, aproveitávamos aqueles momentos para conversar. Ele era tão cheiroso e me lembrava um ator de novela, não era nenhum marombado, porém, não tinha como não fitar seu corpo esbelto e desejar tocá-lo. Me perguntei tantas vezes qual tipo de mulher ele sentia atração. Nunca tive audácia suficiente para perguntar.

Após alguns minutos cheguei para mais um dia de trabalho, despedi-me de Rafael com um beijo no rosto. Éramos quase da mesma altura, nos conhecíamos há quase dois anos e eu nunca tive coragem de convidá-lo para sair, digo, em um encontro.

Eram quase seis da manhã e eu estava prestes a iniciar mais um turno de trabalho, mas antes que eu colocasse meus pés do lado de dentro do edifício, escutei gritos, então me virei para ver quem era. Segurei o riso enquanto observava cada passo desengonçado seu.

— Marcelaaaaa... — berrou, quase tropeçando nos próprios pés. Talita não caminhava muito bem de salto alto, no entanto, precisava usar por ser secretária de um dos irmãos Fonseca.

Nos conhecemos em um momento péssimo por sinal, encontrei ela chorando no banheiro feminino, naquele dia fiquei encarregada da limpeza dos banheiros. Não consegui virar as costas e ir embora, acabei sendo um tanto quanto inconveniente, perguntando a razão dela estar daquele jeito. Ela poderia simplesmente ter me ignorado ou coisa pior, mas para minha surpresa ela me contou tudo em detalhes. Alguém tinha desrespeitado ela na frente de várias pessoas, pra ela aquilo foi novidade porque nunca antes tinha acontecido. Desde aquele dia nos tornamos grandes amigas dentro e fora da empresa.

— Cuidado, ou vai cair no chão. — disse preocupada. Minha amiga quando chegou perto de mim, parou ofegante.

Ela era uma mulher magra e bem alta de pele alva e cabelos cacheados pintados de rosa. No dia que vi que ela tinha pintado os cabelos daquela cor, fiquei preocupada com o que os outros pudessem fazer com ela, entretanto, ninguém se importou, talvez fosse porque ela era linda de qualquer jeito.

— Ele voltou, Marcela. — murmurou, apoiando suas mãos nos joelhos. Olhou para os lados e depois pra mim.

— Quem voltou, Talita? — questionei, sacudindo seus ombros. Minha indelicadeza quase fez ela cair para trás.

— Aí! — resmungou, recompondo-se. — Bernardo Fonseca. Ele voltou!

Ouvi-la pronunciar aquele nome me fez sentir um frio na espinha. O desgraçado que mais zombava de mim estava de volta.

A última vez que nos encontramos tinha mais de um ano...

Como de costume depois de fazer a limpeza retornei à copa para levar o café do homem mais arrogante e merda que tornava meus dias um tormento sem fim. Por que eu tinha que levar seu café preto todas as manhãs? Porque ele exigia minha presença! O filho da mãe sempre arrumava um tempo para pegar no meu pé propositalmente. Eu não era a única que sofria com suas grosserias, perdi a conta de quantas secretarias pediram demissão por não aguentar todas suas exigências e sarcasmo.

— Com licença. — falei, abrindo a porta e adentrando o escritório. Tentei ao máximo evitar contato visual. — Trouxe o café do senhor.

— Por que demorou tanto? — perguntou, me olhando dos pés a cabeça e continuou. — Pensei que dessa vez tivesse afundado o elevador. Te olhando agora, parece mais gorda do que ontem!

Queria tanto lhe dizer umas boas verdades, mas se falasse perderia o emprego. Entendia muito bem de leis e sabia que o que ele sempre fazia comigo era crime.

— Desculpe. — sim, eu pedi desculpas em vez de lhe socar o nariz por me ofender. Apertei a bandeja que trazia comigo com força. Aproximei-me da sua escrivaninha e coloquei a xícara de café.

Ele me humilhava tanto e algumas vezes na frente de todo mundo. Saber de sua volta tirou o que tinha me restado de alegria.

— Tem certeza? — questionei, sacudindo seus ombros novamente. Esperava que Talita dissesse que tudo não passou de uma brincadeira.

— Sim, ouvi o senhor Caleb falando no telefone.

Caleb ao contrário do irmão tratava todos com respeito. Ela era sortuda por trabalhar com o irmão bonzinho. Talita tinha a mania de ouvir as conversas por detrás das portas. Se ela tinha escutado que ele estava de volta, era realmente verdade. Tudo voltaria outra vez, Bernardo Fonseca era o pior de todos que zombavam de mim naquele lugar. Talvez fosse a hora de começar a procurar outro emprego, porque não aguentaria muito tempo sendo maltratada de novo.

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